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Entrevista

Gestação de substituição na Ucrânia. "Há mulheres a braços com crianças que nunca quiseram acolher como filhos"

04 abr, 2022 - 06:30 • Ana Catarina André

A presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida alerta para a exploração das mulheres ucranianas e para a situação de orfandade de muitos bebés que nasceram na Ucrânia e têm os pais biológicos noutros países.

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Em entrevista à Renascença, Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), alerta para os riscos da criação de um regime de exceção, na lei, para enquadrar gestações de substituição que envolvam mulheres ucranianas e casais portugueses. “É preciso perceber que este deve ser aplicado num caso muito pontual e não permitir que, tendo Portugal uma lei sobre gestação de substituição, haja procedimentos à margem dessa mesma lei”, sublinha a especialista em bioética.

A semana passada, uma refugiada ucraniana deu à luz um bebé, no Hospital de São João, no Porto, no contexto de uma gestação de substituição. Pela atual lei portuguesa, a mãe da criança é a mulher que a deu à luz e não os pais biológicos. Para salvaguardar situações como esta, o Ministério dos Negócios Estrangeiros está a estudar a criação um regime de exceção.

Desde o início da guerra na Ucrânia, surgiram várias notícias de portugueses que recorreram à gestação de substituição naquele país e que, por causa do conflito, não conseguem contatar as mães, nem saber se os bebés nasceram, entretanto. Como é que olha para esta situação?

É mais uma das situações dramáticas criadas pela guerra. De facto, temos tomado conhecimento pela comunicação social de que vários casais portugueses teriam recorrido a mulheres ucranianas para uma gestação de substituição dos seus filhos biológicos. Também assistimos na televisão a [reportagens sobre] vários locais onde bebés por gestação de substituição nasceram e estão guardados, sem se saber quando é que os seus pais biológicos poderão ir até lá. Temos aqui um gravíssimo problema humano. No caso que foi relatado em Portugal, o de um bebé de uma mãe ucraniana que se prestou à gestação de substituição e deu à luz em Portugal, o drama não é tão grande.

Por que diz isso?

Há outras situações ainda mais dramáticas em que os bebés nasceram e os pais biológicos não têm contacto [com ninguém], ou em que os pais biológicos nem sequer sabem onde estão as crianças e as mães, se estão ou não vivos. Neste caso agora relatado em Portugal, temos uma mulher ucraniana que deu à luz um filho que é biologicamente de um casal português.

Uma das questões é saber quem regista a criança.

A situação é não apenas, mas sobretudo jurídica, porque de facto Portugal já tem uma legislação sobre gestação de substituição que, aliás, foi publicada em Diário da República, a 16 de dezembro de 2021. Na nossa legislação que se aplica a cidadãos nacionais e estrangeiros, mas com residência permanente em Portugal – o que não é o caso –, só é admitida a gestação de substituição em situações excecionais e sempre com natureza gratuita, o que também não será o caso aqui. Além disso, os contratos têm que ser apresentados ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida para receber a sua aprovação, o que também não é o caso. A situação relatada, sendo primariamente uma questão jurídica, não tem abrigo na legislação portuguesa. Daí o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) já ter ponderado a criação de um regime de exceção, porque certamente percebe que, para além da questão jurídica, temos aqui efetivamente um problema ético.

Qual é o parecer do Conselho Nacional de Ética?

O Conselho Nacional de Ética não se pronunciou especificamente sobre esta matéria, mas é evidente que, dentro daquilo que é a nossa orientação, a questão fundamental é o cumprimento da lei, o que aqui não se verificou. Temos, depois, a questão ética mais gravosa que é, no fundo, o destino a dar a esta criança que tem pais biológicos e cuja mãe gestante aceitou sê-lo em prol dos pais biológicos. Há aqui uma questão ética a resolver e, nesse sentido, percebo bem que haja a criação de um regime de exceção. Criado um regime de exceção para um problema de exceção, – há outros pais biológicos que têm gestantes de substituição noutros países e que enfrentam, às vezes, problemas graves para os registar como filhos e até para os fazer viajar para Portugal – é preciso perceber que este deve ser aplicado num caso muito pontual e não permitir que, tendo Portugal uma lei sobre gestação de substituição, haja procedimentos à margem dessa mesma lei.

Estas crianças podem estar num limbo. São filhas de mulheres que as deixaram ao cuidado de outras e que podem não estar a ser acolhidas por essas mulheres as deram à luz.

Ainda sobre o caso da mulher ucraniana que deu à luz um bebé de uma gestação de substituição, no Hospital de São João, no Porto, esse regime de exceção na lei seria no sentido de permitir que os pais biológicos ficassem com o bebé? À luz da atual lei, a mãe é a gestante de substituição.

Tendo dado à luz em Portugal, será ela a mãe da criança, até porque não houve qualquer contrato para gestação de substituição que tivesse passado e tivesse sido aprovado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. É um regime de exceção que, a ser criado, terá que contemplar estes aspetos. Aquilo que me preocupa em termos pessoais – não falo aqui em nome do Conselho, uma vez que a questão não foi debatida em Conselho – é que temos aqui múltiplos problemas éticos.

Quais?

Temos o dos pais biológicos que recorreram a mulheres ucranianas e querem os seus filhos biológicos. Por isso, estamos muito focados no problema dos casais portugueses que tinham uma gestação em curso e querem efetivamente ter, abraçar, acolher os seus filhos biológicos. Não temos pensado muito e, devíamos pensar muito mais, nestas crianças que estão na Ucrânia. Há mulheres que estão a braços com crianças que nunca quiseram acolher como filhos. Aceitaram disponibilizar o seu útero para entregar depois [os bebés] aos pais biológicos. Estas crianças podem estar num limbo. São filhas de mulheres que as deixaram ao cuidado de outras e que podem não estar a ser acolhidas por essas mulheres as deram à luz. Estão numa situação de orfandade.

Espero que seja possível manter os registos para saber quem são os pais biológicos – muitas terão sido já abandonadas pelas mães gestantes.

O que é que pode acontecer a estes bebés?

A informação que tenho é a dada pela comunicação social. Algumas destas mulheres ucranianas que foram angariadas para a gestação de substituição já deram à luz. Muitas destas crianças estão em bunkers à guarda de enfermeiras. Espero que seja possível manter os registos para saber quem são os pais biológicos – muitas terão sido já abandonadas pelas mães gestantes. [Não sabemos] se haverá, no futuro, condições para os pais biológicos as recuperarem. Não sabemos quanto tempo dura a guerra, não sabemos até quando é que vão ser cuidadas. Não sabemos se os registos se mantêm para identificação dos pais biológicos. Não sabemos se os pais biológicos, uma vez com capacidade de ir à Ucrânia procurar os filhos, terão ainda esse interesse, se passar muito tempo e, entretanto, crescerem, quando a expectativa era ter um recém-nascido. Temos imensas perguntas e pouquíssimas respostas e, por isso, é que chamo a atenção: não temos apenas o problema dos pais biológicos portugueses à procura dos seus filhos. Temos, também, o problema das crianças que nasceram e de outras que vão nascer e estão neste limbo.


Algumas podem ficar órfãs.

Exatamente. Foram deixadas depois do parto, porque as mães gestantes nunca tencionaram ficar com elas. Neste momento, estão à guarda de alguém. Até quando estarão seguras? Até quando há meios para cuidar delas? É mais um drama humano provocado pela guerra. Mas atenção: quando falamos do problema humano, no âmbito da gestação de substituição, não nos concentremos apenas nos pais portugueses que recorreram a mulheres ucranianas para a gestação dos seus filhos biológicos, mas pensemos também noutros problemas. Se calhar não os conseguimos resolver e conseguimos mais facilmente resolver o [problema] da mulher ucraniana que deu à luz em Portugal este filho de pais biológicos portugueses, mas os outros problemas também são reais e dramáticos e merecem a nossa atenção.


Há também a questão das mulheres ucranianas, país onde a gestação de substituição é legal a troco de dinheiro.

Este problema é francamente complexo e não pode ser simplificado, como tem acontecido. As mulheres ucranianas que se prestaram a uma gestação de substituição fizeram-no a troco de dinheiro. Nestes casos, lamentavelmente, é muito mais um aluguer de útero, uma expressão pejorativa usada às vezes neste domínio, mas que aqui parece justificar-se, uma vez que envolve dinheiro. Ora, depois da gestação, será que vão sequer receber? Nestes casos, a gestação é sempre acompanhada medicamente e com todas as despesas pagas também pelos pais biológicos. Este aspeto já não deverá estar a acontecer. É mais uma vertente do problema. Há ainda outra a que penso que não podemos fechar os olhos: quando a gestação de substituição acontece e, na maior parte dos países acontece a troco de dinheiro, trata-se de uma exploração das mulheres. As mulheres que, nestes contextos, aceitam fazer gestação de substituição fazem-no por necessidades económicas. Não o fazem por altruísmo. Fazem-no para casais abastados. E aqui entramos num esquema de exploração dos mais ricos em relação aos mais vulneráveis. Há uma exploração do corpo destas mulheres. Por isso é que a gestação de substituição deve ser enquadrada numa legislação adequada, que previna abusos, como estes que estão a acontecer na Ucrânia. É mais um drama humano e um questionamento ético lancinante nesta área da gestação de substituição.

Estamos a falar de um negócio de exploração do corpo humano e de exploração, sobretudo, das mulheres mais vulneráveis.

Em algumas das agências ucranianas especializadas em gestação de substituição os custos podem oscilar entre 35 e 65 mil euros. Estamos perante um negócio?

É um negócio não só na Ucrânia, não só nos países com mais carências. Nos Estados Unidos, é um negócio absolutamente montado, em que os pais biológicos pagam valores bastante elevados, e muito deste valor financeiro fica nos mediadores. Aquilo que a mulher ucraniana que se presta à gestação de substituição vai receber por uma gestação de nove meses e o parto é uma percentagem bastante reduzida de todo o valor que os candidatos a pais biológicos efetivamente pagam. Estamos a falar de um negócio de exploração do corpo humano e de exploração, sobretudo, das mulheres mais vulneráveis porque, tirando situações de verdadeiro altruísmo, particularmente dentro da família, as outras são quase na totalidade negócios. E obviamente são as pessoas com mais dificuldades económicas que se vão prestar a esta gestação de substituição. Sabemos que este tipo de atitude acontece também na área da transplantação. Ainda há pouco tempo, víamos imagens do Afeganistão em que a miséria tem atirado muitos homens para a venda de rins. Mais uma vez, vendem rins por uma ínfima quantia, um ínfimo valor para as sociedades ricas, para os países ricos, para as pessoas ricas que assim entram dentro deste esquema de exploração dos outros. Este é um problema ético gravíssimo que tem de ser, também, abordado em termos de direito internacional. Se não houver compradores de rins, se não houver candidatos a pais biológicos que procurem mulheres que a troco de dinheiro ofereçam o seu útero, este negócio tenderá a acabar.

Voltando ainda à questão dos portugueses que recorreram à gestação de substituição na Ucrânia, poderão de alguma maneira trazer os filhos para Portugal ao abrigo deste regime de exceção que o MNE está a equacionar?

Tudo depende, em primeiro lugar, se realmente vai haver ou não uma iniciativa legislativa para a criação de um regime de exceção. Os termos em que for criada terão de ser muito ponderados para, por um lado, resolver a questão ética e jurídica desta situação decorrente da guerra e, por outro, não abrir possibilidades para criar um regime paralelo para outras situações de outros pais portugueses com gestações de substituição noutros países. Será também preciso perceber quais são as condições, as facilidades, os canais estabelecidos do ponto de vista diplomático, político e sanitário, para tornar possível este reencontro.

A gestação de substituição pode deixar sequelas psicológicas nas crianças e no seu desenvolvimento?

É uma questão que pediatras e, sobretudo, pedopsiquiatras têm abordado. Não pertenço a esta área. Em todo o caso, acrescentarei que, de acordo com a sensibilidade bioética, amplamente consensual, estas crianças, como as crianças adotadas, devem tomar conhecimento das circunstâncias do seu nascimento e ser acompanhadas. Sendo devidamente acompanhadas, tomando conhecimento da sua realidade, penso que eventuais danos serão perfeitamente ultrapassáveis. Aliás, todos temos consciência de que pais são aqueles que amam, cuidam, acompanham. E neste caso das crianças nascidas por gestação de substituição, esses pais que as têm são não só os seus pais biológicos, mas são os seus pais afetivos.

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