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Acordo sobre transferência de dados entre UE e EUA. Vem aí um Schrems III?

28 mar, 2022 - 12:56 • Inês Rocha

Max Schrems, ativista pela privacidade que já “deitou abaixo” dois acordos semelhantes, classifica o novo acordo como "puramente político" e ameaça voltar ao tribunal após ser publicado. “Clientes e empresas enfrentam mais alguns anos de incerteza jurídica”, diz.

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Max Schrems, o ativista pela privacidade austríaco responsável por invalidar, em tribunal, dois acordos sobre transferência de dados entre a União Europeia e os Estados Unidos, ameaça voltar ao tribunal, uma terceira vez, para denunciar o novo acordo.

A reação do fundador da ONG Noyb surge após o anúncio, na sexta-feira, de que Estados Unidos e União Europeia chegaram a um novo acordo sobre transferência de dados pessoais a nível transatlântico.

Já tínhamos um acordo puramente político em 2015, que não tinha base legal. Pelo que ouvimos, podemos estar a jogar o mesmo jogo pela terceira vez”, diz o ativista, em comunicado.

“O acordo era, aparentemente, um símbolo que von der Leyen queria, mas não tem apoio entre peritos em Bruxelas, uma vez que os EUA não mudaram nada”, acusa Schrems, ameaçando voltar ao tribunal.

"O texto final precisará de mais tempo, mas quando chegar, iremos analisá-lo em profundidade, juntamente com os nossos peritos em jurisdição norte-americana. Se não estiver em conformidade com a legislação da UE, nós ou outro grupo provavelmente iremos desafiá-la. No final, o Tribunal de Justiça decidirá uma terceira vez. Esperamos que o assunto volte ao Tribunal no prazo de meses após uma decisão final”, ameaça o ativista.

O que está em causa neste acordo?

Nos últimos anos, União Europeia e Estados Unidos têm estado num impasse político acerca da transferência de dados pessoais entre os dois continentes.

Porquê? A União Europeia só permite a exportação de dados pessoais se o país de destino garantir o mesmo nível de proteção dos dados que o regime da UE - algo que não acontece nos Estados Unidos, tendo em conta as leis e as conhecidas práticas do Governo de vigilância sobre a população, incluindo sobre estrangeiros.

No entanto, os dois blocos já tiveram diferentes acordos a regular estas transferências - todos considerados, entretanto, ilegais por tribunais europeus.

O responsável por estas decisões: Max Schrems, um ativista austríaco que denunciou a ilegalidade dos acordos perante o Tribunal de Justiça da União Europeia.

No processo “Schrems I”, em outubro de 2015, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu invalidar a Decisão “Porto Seguro” (Safe Harbour Decision), que até então regulava as transferências de dados pessoais da UE para organizações norte-americanas, por considerar que não oferecia um nível de proteção suficiente.

Com o acordo invalidado, EUA e UE voltaram à mesa das negociações e, em julho de 2016, voltaram a chegar a acordo - surgiu o “Escudo de Proteção da Privacidade UE-EUA” (EU-U.S. Privacy Shield). Mas em julho de 2020, o tribunal invalidou também este acordo, na decisão “Schrems II”.

Por isso, nos últimos dois anos, todas as transferências de dados pessoais para os Estados Unidos passaram a ser consideradas ilegais - apesar de acontecerem diariamente, a cada minuto, sempre que um cidadão europeu utiliza serviços digitais norte-americanos, como a Google, a Microsoft ou o Facebook.

Qual a solução, então, para os defensores da privacidade?

Em entrevista à Renascença, no último ano, o ativista explicou qual o grande problema da transferência de dados europeus para os EUA: “eles têm uma diferenciação entre cidadãos e não-cidadãos. Quando não se é cidadão, basicamente não se tem direitos. E isso é algo que penso ser a questão central que temos de resolver - os EUA precisam de alterar as suas leis para que também os estrangeiros tenham algum tipo de direitos básicos”.

Para Max, casos como o Wikileaks vieram provar que a espionagem é uma realidade dos Estados Unidos. “É muitas vezes para espionar governos estrangeiros, indústrias estrangeiras, académicos, jornalistas”.

Por isso, o ativista diz que a única forma de resolver o impasse seria através de “um acordo internacional contra a espionagem”, com algumas regras. Por exemplo, “que diga que só se pode espiar as pessoas se houver um juiz que o tenha aprovado”. Ou que obrigue a que as pessoas sejam informadas de que foram espiadas, uma vez terminada a operação, caso se conclua que a investigação não se justificou, sugere o ativista.

No entanto, Max Schrems considera que isso não irá acontecer enquanto não houver pressão por parte das próprias empresas norte-americanas.

“A indústria tem-me dito que pode pressionar Washington a mudar a lei, mas não vê necessidade. De qualquer modo, a Europa não está a fazer nada a esse respeito”, diz o advogado.

A indústria diz: “porque havíamos de desperdiçar o nosso capital político para a reforma da vigilância sobre estrangeiros, quando preferimos fazer lobby por menos impostos?”

Quanto ao novo acordo, anunciado na última semana, Max Schrems diz que é “lamentável” que a UE e os EUA “não tenham aproveitado esta situação para chegar a um acordo de ‘não espionagem’, com garantias de base entre democracias que pensam da mesma maneira”.

“Clientes e empresas enfrentam mais anos de incerteza jurídica”, atira o ativista.

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