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Coronavírus em Itália. Roma tornou-se para Duarte um "filme de terror"

11 mar, 2020 - 06:38 • Beatriz Lopes

Empregado de mesa, este português a viver na capital italiana há quase dois anos diz temer, mais até do que ficar sem emprego (porque clientes são hoje poucos e cada vez menos), "apanhar uma coisa que nem se vê". Ao Governo português deixa um apelo, em jeito quase de alerta: "Tomem o exemplo de Itália para tomar outras medidas". Ou então, como lá, poderemos acabar "a correr atrás de uma avalanche".

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Tira os sapatos, desinfeta as mãos, vai tomar banho e troca de roupa. Chegado do trabalho, parece até ser um ritual simples para Duarte Godinho, mas a "esquizofrenia" que se vive hoje em Roma não lhe permite desligar do que diz parecer "um filme de terror", no qual "toda a gente tem medo de uma coisa que não se vê".

A viver há cerca de dois anos na capital italiana, Duarte é empregado de mesa de um restaurante que fica perto da estação ferroviária de Termini, em Roma, uma das maiores estações da Europa – e onde, num dia normal, circulam quase meio milhão de pessoas. Mas estes não são dias normais.

Na estação, ainda se avistam pessoas; o mesmo não se pode dizer do local onde trabalha. "Começámos a ter um máximo de oito clientes por dia, quando normalmente temos mais de 60 só à hora de almoço", explica.

Numa tentativa de conter a epidemia do Covid-19, o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, só permitiu que os restaurantes e restantes estabelecimentos comerciais continuassem abertos com uma condição: a de que os clientes e funcionários mantivessem uma distância mínima de um metro entre si. E a medida está a ser cumprida, garante Duarte.

No entanto, e mesmo com o uso de luvas e desinfetantes, tentar manter-se "saudável" ou simplesmente apelar à calma dos clientes parece ser quase uma luta diária.

"É uma situação de máxima vulnerabilidade, porque temos que segurar os pratos, os talheres, os copos, limpar os assentos. Estes são locais com ar condicionado, com filtros que vão buscar o ar lá fora, onde todo a gente passa. Nos clientes também se nota que não querem aproximar-se nem tocar-nos. Muitas vezes preferem passar o cartão quase como se fosse um testemunho, como se fossemos um estafeta. Ou então deixar o dinheiro em cima da mesa. Hoje tive o caso de dois clientes que perguntaram se não tínhamos uma mesa maior para eles próprios estarem mais longe um do outro", conta.

Nesta altura, a correria às farmácias e supermercados mantém-se, mas este é já um problema "menor", diz Duarte Godinho, tendo em conta os desafios diários para quem ainda trabalha ou, pelo menos, para quem ainda não foi despedido.

"Há imensos negócios e restaurantes que estão a fechar, a mandar os empregados para casa, porque além do prejuízo económico é claro que há o medo de as pessoas apanharem alguma coisa. Eu, por exemplo, saio de casa, vou para o trabalho, mas nunca sei se pelo caminho, dentro de um autocarro ou no metro, posso apanhar alguma coisa", explica, receoso.

E acrescenta: "Mesmo dentro dos transportes públicos, começas a ver muito menos pessoas ou pessoas a optarem por se sentar a uma grande distância; há imensas pessoas com máscaras e luvas, sentes o cheiro dos desinfetantes, ouves sempre alguém a usar os frasquinhos de desinfetantes nos restaurantes. E parece que só agora é que toda a gente se lembrou das regras de lavar e desinfetar as mãos antes de comer".



O português a viver em Roma critica ainda que, desde o início do surto de coronavírus, os italianos tenham desvalorizado a dimensão do problema, dizendo que não passaria de uma "mera gripe". Depois, instalou-se "um pânico geral". "As pessoas no início brincavam, mas agora toda a gente está com medo de realmente apanhar alguma coisa. E toda a gente diz que isto parece uma cena de um filme de terror, porque não vês pessoas nas ruas – e as que vês, parece que houve algum desastre nuclear, porque está tudo com máscaras. As pessoas afastam-se umas das outras ou tapam a cara quando passa alguém", descreve.

Terá Itália acordado demasiado tarde para o problema?

É uma pergunta de difícil resposta.

"Eu não sei se foi uma questão de a Itália reagir tarde ou se foi tudo uma questão de mau 'timing'. Não nos podemos esquecer que isto começou a explodir em Itália pouco antes da altura do Carnaval. Tivemos o Carnaval de Veneza e imensas pessoas a mover-se de um lado para outro, num período em que não se sabia assim tão bem qual seria o nível de contágio. E depois foi uma questão de correr atrás de uma avalanche. Até porque sabemos que o vírus pode demorar vários dias até dar sintomas e nesse espaço de tempo podemos estar a infetar outras pessoas", explica.

Nesta altura, os hospitais da zona Norte de Itália, a zona mais atingida pelo Covid-19, estão à beira do colapso. E é com "preocupação e medo" que Duarte vai lendo os relatos de médicos italianos – que falam num caos total, na escassez de material clínico e, em consequência de tudo isso, na impossibilidade de tratar alguns pacientes.

"O pior mesmo é que os hospitais não têm o número de ventiladores suficientes face ao número de infetados. Do que eu vi de uma mensagem de uma técnica de saúde no hospital em Milão, se não há ventiladores suficientes para toda a gente e precisares de ajuda a respirar, têm de 'escolher'. Espero que nunca cheguemos a esse ponto, de termos de escolher quem vive e quem morre. É uma escolha que ninguém quer ter de tomar", lamenta.

A terminar, Duarte Godinho deixa um repto a Portugal e demais países onde o vírus terá chegado mais tarde: "Tomem o exemplo de Itália para tomar outras medidas. Mais vale fazer antes do que, depois, ser contagiado a larga escala e não saber o que fazer".

Os mortos pelo novo coronavírus em Itália são já 631. As autoridades italianas registaram 8.514 casos positivos de vírus, tendo 1.004 sido já curados, o que perfaz um total de 10.149 infetados desde o início da crise em Itália, fazendo deste país o mais afetado pelo surto na Europa.

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