01 jan, 2018 - 10:43 • Filipe d'Avillez
António Guterres cumpre esta segunda-feira um ano à frente das Nações Unidas. O actual secretário-geral foi formalmente empossado no dia 12 de Dezembro de 2016, mas apenas começou as suas novas funções no dia 1 de Janeiro de 2017.
A Renascença falou com Mukesh Kapila, que conheceu bem o actual líder da ONU quando ambos trabalhavam na organização. Kapila, que chegou a ser representante da ONU no Sudão, tendo denunciado o genocídio no Darfur, acabaria por sair, e não poupa críticas ao funcionamento das Nações Unidas, mas sobre Guterres apenas tem elogios.
Coragem não lhe falta, diz Kapila, mas ainda assim tem dúvidas de que a própria ONU se deixará reformar pelo português.
“O António Guterres é um homem fantástico. É muito corajoso. Tenho a certeza que ele quer fazer a coisa certa, não tenho dúvidas de que os seus instintos estão orientados para a realização dos direitos humanos e da justiça para todos”, afirma.
Há, contudo, um “mas”. Segundo Mukesh Kapila, “o seu problema, e não é sua culpa, é que está rodeado de um sistema que se serve a si mesmo. Não é só o Conselho de Segurança, em toda a estrutura burocrática das Nações Unidas há demasiados interesses escondidos que não querem a mudança. Quando um sistema está a correr confortavelmente para as pessoas que o compõem, para quê darem-se ao trabalho de mudar?”
“O desafio de Guterres será de ultrapassar isso, o que vai requerer muita coragem. Poderá tornar-se impopular entre muitos dos interessados, mas esse é um sinal de verdadeira liderança e espero que o secretário-geral não nos falhe”, diz o britânico, nascido na Índia, em declarações feitas à Renascença, à margem de uma conferência sobre genocídio, em Londres.
Um doutoramento prático em genocídio
Não foi por vontade, mas pela força das circunstâncias, que Mukesh Kapila acabaria por se tornar um dos maiores especialistas em genocídio no mundo actual. Em 1994, na altura a trabalhar para o Governo britânico, foi dos primeiros estrangeiros a chegar ao Ruanda depois do genocídio.
Na conferência que profere em Londres, a convite da organização Alliance Defending Freedom – International, faz uma pausa quando chega a este assunto e pede desculpa, com a voz embargada, dizendo que sempre que fala no Ruanda fica com um sabor metálico na boca e sente novamente o cheiro a morte.
“Cheguei a Kigali menos de 24 horas depois de ter sido libertada. Toda a cidade tresandava, os cães comiam os cadáveres. Visitámos uma igreja e estava cheia de mortos e moribundos e nas paredes conseguia-se ver arranhões sangrentos de alguém, mesmo no cimo. Pensei para mim, o que é que poderia levar alguém a escalar uma parede vertical… Como é que se chegava sequer lá acima?”
Noutra aldeia marcou-o o silêncio. “Dois quilómetros em redor, até os pássaros estavam em silêncio. Era como se a própria natureza tivesse noção de que se tinha passado algo não natural”.
Menos de uma década depois encontrava-se já a trabalhar para as Nações Unidas e representava a organização no Sudão quando começou o genocídio no Darfur. O seu chefe directo era Kofi Annan, um homem do qual claramente não retém boas memórias. “Fui para o Darfur e vi com os meus próprios olhos o que se estava a passar. Escrevi memorando seguido de memorando para o meu superior, Kofi Annan. Ele tinha sido promovido, depois do seu falhanço em Srebrenica e no Ruanda, onde tinha presidido a dois genocídios”, recorda.
“A diferença entre o Ruanda e o Darfur é que em 1994 as pessoas usavam faxes e telexes. Mas eu estava a sobrevoar o Darfur, a tirar fotografias com o meu smartphone e a enviá-las directamente através do sistema de comunicação por satélite do meu piloto, para o gabinete de Kofi Annan. Foi o primeiro genocídio da era digital. Peguei no meu telefone e liguei directamente para os ministros dos Negócios Estrangeiros de França, Noruega e Dinamarca. Toda a gente sabia”.
Mukesh Kapila é ao mesmo tempo um homem com grande sentido de humor e profundamente desiludido com a resposta da comunidade internacional a estes horrores. “Aquela desculpa de que não sabíamos verdadeiramente o que se estava a passar, era parcialmente verdade no holocausto, parcialmente verdade no Ruanda, mas hoje em dia já não é verdade. Hoje temos a satisfação de gravar, em todos os detalhes, as atrocidades que acontecem e também de documentar as provas dos nossos próprios falhanços.”
E esta realidade conduz a um tremendo pessimismo quanto ao futuro. “Aqueles que dizem ‘jamais’… Desculpem, sei que é o #NeverAgain é um hashtag popular, mas é falso. Vai acontecer outra vez. Olhem só para os rohingya agora”.
O perigo da palavra genocídio
Com tanta experiência no terreno em casos de genocídio – também esteve envolvido em Srebrenica – pode parecer surpreendente, mas Mukesh Kapila defende que a utilização da própria palavra pode fazer mais mal que bem. Isto porque ao abrigo do direito internacional, os países têm uma obrigação de intervir para defender as vítimas de genocídio, e como isso é frequentemente inconveniente a discussão sobre a natureza do crime acaba por dificultar uma solução.
“A responsabilidade de proteger devia chamar-se responsabilidade de adiar. Porquê? Eu não tenho conhecimento de um único grande caso de sucesso nas décadas desde a intervenção”, diz.
“O mais importante é que não demos falsas esperanças às pessoas. Quando as pessoas não pensam que alguém virá ajudá-las tornam-se mais resilientes e começam a tentar salvar-se a si mesmas. Porque é que o genocídio no Darfur não foi completo? Porque as pessoas resistiram. Acontece o mesmo no Médio Oriente com os cristãos e os yazidis.”
Apesar do seu pessimismo e cepticismo, Mukesh Kapila não aceita o conformismo. Se é verdade que o silêncio mata, e que a retórica estéril do Conselho de Segurança – “o instrumento mais ineficiente que existe” – mata ainda mais, para as vítimas não é indiferente que o mundo olhe para o que se está a passar.
“Há uns anos estava a gravar um documentário e entrevistava uma mulher e no fim perguntei-lhe se havia alguma coisa que eu pudesse fazer por ela. Foi uma daquelas coisas parvas que se dizem naquelas ocasiões”, recorda.
A mulher olhou para ele e perguntou. “O que é que você poderia fazer por mim? Você vem, e depois vai-se embora. Mas olha bem para mim. Filme-me. Este é o meu nome”, disse a mulher, dizendo como se chamava. “Garante que o meu nome seja transmitido para o mundo. Diz-lhes que fui violada, que a minha filha foi violada e que estamos a sofrer aqui uma vida miserável. O meu maior medo é que nasci aqui, morrerei aqui, tendo sido violada aqui, e ninguém vai saber”.
“Ela não estava à espera que eu a salvasse”, conclui Kapila. “Não é parva nenhuma. As pessoas não são assim tão ingénuas. Esqueçam esta ideia de que estão todos simplesmente à espera que aconteça uma intervenção… Eles sabem que ninguém os vai salvar, mas sentem-se confortados e encorajados pelo facto de nós sabermos que estão a sofrer, que têm uma cara e que não os esquecemos”.