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Conversas Cruzadas

“O lastro de Trump vai ficar”

06 nov, 2016 - 16:12 • José Bastos

“Trump pode perder, mas o protesto vai ficar”, diz Daniel Bessa que analisou as eleições norte-americanas com Álvaro Almeida e Luís Aguiar-Conraria no programa Conversas Cruzadas da Renascença.

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A dois dias das presidenciais, Donald Trump continua a encurtar distâncias nos chamados “swing states”, os que oscilam entre democratas e republicanos. Ohio e Florida são exemplos. Apesar do favoritismo de Hillary Clinton, o resultado das presidenciais 2016 está longe de poder ser dado como fechado.

Desde que a Convenção republicana de Cleveland declarou Trump candidato à Casa Branca, o multimilionário reclama ser o ícone do êxito dos Estados Unidos assente no dólar. Trump propõe reconfigurar uma velha ordem social e económica, percepcionada como injusta por boa parte do eleitorado.

Não por acaso o empresário que chegou a comprar – e vender – o Empire State Building de Nova Iorque, um dos símbolos do “sonho americano” teve como mantra de campanha “Make America Great Again”, surgido em 1979 e usado por Ronald Regan em 1980.

Será Trump a máxima expressão do movimento populista que apresenta riscos de inflexão para as democracias ocidentais? Tem Trump elementos comuns com as forças europeias demagógicas em alta também na Europa? São os populismos a expressão da crise dos sistemas liberais-democráticos resultado da convergência de vários fenómenos? Estão a afectar as condições de exercício da democracia?

Daniel Bessa: “Se Hillary vencer não festejo. Da próxima será pior”

“No fundo o que nós temos é um protesto”, afirma Daniel Bessa no programa Conversas Cruzadas. “A figura do sr. Trump está nos antípodas do perfil que deva ocupar um cargo como o de presidente dos Estados Unidos”, prossegue o economista.

“Temos um protesto. Não sei se da América profunda. Há quem diga que é da classe média americana. Está aqui uma recusa do caminho que as nossas sociedades levaram e que tem - basicamente - a ver com o tema da abertura e da globalização em múltiplas manifestações”, nota Daniel Bessa.

“Não quero acreditar que o sr. Trump ganhe as eleições, mas mesmo perdendo o protesto fica lá”, alerta o antigo ministro.

“Esse movimento de fundo fica expresso. Um movimento que não andará muito longe do que levou o Reino Unido a propor-se abandonar a União Europeia. Um movimento que não estará muito longe do que se passa em França - até ver com uma expressão menor, mas o voto de protesto antes absorvido pelo PC francês está hoje com a sra. Marine Le Pen - e por aí adiante”, indica Daniel Bessa.

“Mesmo que o sr. Trump perca, como espero, mais de 40% dos norte-americanos - a que se juntam os que apoiaram Bernie Sanders - vão lá ficar nesse registo de protesto”, sublinha.

“Eu nunca festejo eleições. Quando ganho eleições fico sempre a pensar no trabalho que vou ter e nas eleições seguintes. Portanto, se a sra. Hillary Clinton vencer - e quero que vença - não vou festejar muito porque, já sei, que, para a próxima vai ser pior”, nota Daniel Bessa.

Álvaro Santos Almeida: “Trump aproveita a percepção – errada – de que tudo corre mal”

O economista Álvaro Santos Almeida tem dificuldade em identificar na maioria de apoiantes de Donald Trump uma classe média norte-americana em pleno processo de precarização e pauperização.

“Se analisarmos em detalhe a demografia dos apoiantes de Trump não são os desfavorecidos da globalização que votam no Partido Republicano. São aqueles que estão nas regiões desfavorecidas pela globalização, mas não são os que foram afectados”, refere o economista.

“Estou a falar de uma classe média que, apesar da crise do ‘subprime’ e não apesar da globalização, manteve o seu rendimento neste período. Em Portugal, podemos não ter essa percepção, porque os últimos 10 anos foram maus, mas nos Estados Unidos, apesar de ter passado pela crise do ‘subprime’, já se vive um quadro melhor que há 10 anos”, indica o antigo quadro superior do FMI em Washington.

“A situação económica dos Estados Unidos não é nada má quer em termos absolutos quer em termos relativos. O que acontece é que Trump consegue captar o voto de descontentes que provavelmente não conseguem justificar o seu próprio descontentamento”, diz o professor da Universidade do Porto.

“Se lhes perguntar porque é que a América é agora tão má que se torna necessário regressar ao tempo em que a América era grande - slogan de campanha de Trump - não respondem com nada objectivo. Podem dizer que é porque a economia está a cair. Não está. Está melhor do que nunca. Podem dizer que os rendimentos estão a diminuir. Não estão. Estão a aumentar. Trump aproveita a percepção - errada - de que tudo está a correr mal”, afirma Álvaro Santos Almeida.

Luís Aguiar-Conraria: “Maioria branca vota Trump"

E o papel da demografia nestas eleições? Estará aí também mais uma pista para entender um dos ciclos eleitorais mais transcendentes de sempre nos Estados Unidos?

Uma sondagem ABC/Washington Post coloca Trump 12 pontos à frente de Clinton entre eleitores de raça branca. Se subdividido em eleitores brancos/homens são 30 pontos. Se seccionado ainda mais em ‘brancos/homens/sem formação universitária a percentagem a favor de Trump é de 40 pontos. Ao contrário, nas preferências de eleitores não brancos (de todos os sexos) Clinton bate Trump por 60 pontos.

Luís Aguiar-Conraria analisa esta pista eleitoral, única forma de garantir ao Partido Republicano aspirações eleitorais. “Gostaria de falar de um episódio que se passou há oito anos pouco depois da eleição de Obama. Participei num Congresso de ciência política nos Estados Unidos e numa mesa redonda analisava-se o quadro de expectativas eleitorais para as próximas décadas”, relata.

“Era uma conferência científica, mas para quem estava de fora parecia ser um veículo para celebrar Obama. Um ponto muito debatido era a questão das alterações demográficas. Foi dito várias vezes que com as minorias a ganhar um peso crescente aos republicanos ia ser cada vez mais difícil ganhar eleições”, diz.

“Previa-se que, oito anos depois, as eleições iam ser um passeio para os democratas porque as minorias já teriam um peso tão grande que facilmente um democrata ganharia. Julgo que é um pouco este cenário que se está a passar, mas na inversa, ao contrário”, nota.

“Ou seja, a forma que o Partido Republicano tem de ganhar estas eleições é - não tanto apelar ao voto de minorias onde, para já, não teria hipótese - garantir que a 'maioria branca' vota massivamente no seu candidato, neste caso Donald Trump.

“Há este aspecto de mobilização deste tipo de eleitorado e há o outro lado do discurso anti-globalização que vimos essencialmente em dois candidatos a estas presidenciais: Bernie Sanders à esquerda e Donald Trump à direita”, afirma Luís Aguiar-Conraria.

Daniel Bessa: “Há duas Américas”

Daniel Bessa olha para a dualidade da realidade social e política dos Estados Unidos. “Há duas Américas. Gosto muito de ver a implantação de republicanos e democratas no terreno. Aquele mapa colorido a vermelho e azul. Os Estados Unidos estão quase na totalidade cobertos de vermelho.

“A faixa central do território americano está ocupada por apoiantes do Partido Republicano e os do Partido Democrático estão nas duas costas. Este mapa corresponde a duas Américas. Os democratas nas duas costas são mais jovens e olham para a globalização como uma oportunidade. A grande maioria tem a sua cabeça feita de maneira diferente”, afirma Daniel Bessa.

Já Álvaro Santos Almeida alerta para um dado novo surgido neste ciclo eleitoral: os eleitores republicanos tradicionais não se identificam necessariamente com Trump.

“Eu analisava essas duas Américas, não tanto na análise dessa diferença que sempre existiu entre Partido Democrático e Partido Republicano, mas sublinhando que Trump apela a um universo diferente do que aquele a que o eleitor republicano tradicional estava habituado. Apesar dos 40% nas primárias o eleitor republicano tradicional não se identifica com Trump”, defende Álvaro Santos Almeida.

Apesar de Trump diminuir distâncias dos estudos de opinião Hillary Rodham Clinton não perdeu a aura de favorita para as eleições de terça-feira. Nem mesmo depois do caso dos e-mails, parte 2. Ainda assim, no Conversas Cruzadas deste domingo não se deu por adquirido a vitória de Hillary.

Luís Aguiar-Conraria: “Não dada como assumida vitória de Clinton”

“Não dava como assumida a vitória de Clinton”, sustenta Luís Aguiar-Conraria. ”Já vi pessoas inteligentes a cometer erros básicos de interpretação de probabilidades em relação a sondagens que tem vindo a ser divulgadas.

“Gente a não perceber que quando temos Nate Silver - o maior especialista norte-americano na previsão de resultados - a antecipar Hillary Clinton com uma probabilidade de 65% e Trump poderá ganhar com 35% de probabilidades as pessoas pensam que Clinton já ganhou. Mas não. 35% de probabilidade para ganhar é uma grande probabilidade”, observa Luís Aguiar-Conraria.

“Dou um exemplo, mesmo quando atribuíam, há semanas, uma probabilidade de vitória de 90% a Clinton e 10% a Trump, 10% é muito. 10% é a probabilidade de Cristiano Ronaldo falhar um penalty e ele falhou a semana passada”, refere o professor de economia da Universidade do Minho.

Álvaro Almeida: “Há gente que vota em Trump, mas não o admite”

Já Álvaro Santos Almeida recorda o recente referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia para deixar em aberto todas as possibilidades para a próxima terça-feira.

“Há um problema nas sondagens que aconteceu no Brexit. Nos Estados Unidos não deve haver ninguém que goste de se pensar como pessoa inteligente e sensata que se assuma como apoiante de Trump. Portanto há muita gente que até vota Trump, mas não o assume em sondagens por vergonha”, diz.

“Foi o que aconteceu no Brexit. Suspeito que há um risco de enviesamento das sondagens por esta razão. Se as sondagens estão a dar grande proximidade Clinton/Trump, provavelmente, Donald Trump poderá ter alguma vantagem”, admite Álvaro Santos Almeida.

Daniel Bessa vai mais longe. “Eu tenho medo. Não durmo descansado”, assume o antigo ministro.

“Não dormirei qualquer que seja o resultado. Acho que qualquer que seja o resultado o lastro de Trump lá ficará”.

Comentários
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  • Cardoso da Silva
    07 nov, 2016 Lisboa 13:24
    Hillary Clinton é uma vigarista e uma belicista que nos lançaria todos numa guerra se viesse a ser eleita Presidente. Trump é um rústico desbocado mas não poria em risco as nossas vidas.
  • Urgel Torres
    07 nov, 2016 Oliveira do Hospital 00:21
    Os defensores das oligarquias e das multinacionais parecem estar incomodados com Trump!
  • Repugnante
    06 nov, 2016 Gouveia 23:19
    Hillary é uma péssima candidata. O modo repugnante como Sanders foi tratado por ela não tem paralelo na história dos Eua. Ela desencadeou uma campanha sórdida contra Sanders ao mais baixo nível. Esta Hillary é politicamente repugnante.
  • Fernando Ferreira
    06 nov, 2016 Porto 21:25
    Penso que Clinton acabará por vencer, com mais ou menos dificuldade. Trump até poderá ter mais votos que Clinton - o que não acredito - mas o sistema eleitoral americano dará a presidência a Clinton. Não aceito este sistema, mas é democracia à americana. Agora o que me parece evidente é que Clinton não gera empatia na maioria do povo americano. A sua eventual vitória assentará sobretudo na figura do seu adversário. Quero com isto dizer que Clinton provavelmente perderia a eleição caso o Partido Republicano, cujos princípios não subscrevo, apresentasse um candidato mais credível. Por outras palavras, não é Hillary Clinton que ganha, é Donald Trump que perde!
  • Guillaume
    06 nov, 2016 Poitiers 20:40
    Os mais fanáticos já votaram, faltam os indecisos, não se esqueçam ou fiquem a saber que nos EUA os votos não são feitos como em Portugal, num só dia. Já votam desde o ultimo debate televisivo... no dia seguinte.
  • umpalumpa
    06 nov, 2016 Lisboa 16:53
    Até compreendo que não gostem de Trump...Não é fácil, de facto. Agora, dai a branquear a corrupção associada a Hillary (eliminar emails depois de instada por um "tribunal", as suas associações ao governo saudita financiador do ISIS, o afastamento de Sanders dentro do DNC, a sua intervenção na Libia, etc.) e inventar "factos" não provados (Trump assedia mulheres e origem dos emails Putin), também não ajudam à argumentação. Moral da história, houvesse nos mainstream media enfoque em Hillary em metade das suas "trafulhices" comparativamente a Trump, e os americanos (e portugueses) estariam com uma visão bem diferente sobre os candidatos. O jornalismo está nas ruas da amargura.

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