O objetivo do novo programa Governo é facilitar o acesso à habitação, num mercado em que a procura excede a oferta e os preços estão muito acima dos salários médios. Mas o advogado fiscalista Samuel Fernandes de Almeida não tem dúvidas de que Portugal fica pior.

Em declarações à Renascença, diz mesmo que o programa “Mais Habitação” é “a coletivização e socialização da pobreza”, em vez de atacar as assimetrias regionais, torna-nos “cada vez mais pobres”.

O advogado fiscalista até admite que algumas medidas podem fazer sentido, mas “não faz um juízo muito favorável” do programa”. Sublinha que “algumas medidas são de discutível legalidade e constitucionalidade, outras a sua exequibilidade parece difícil”. Conclui, assim, que “traz mais complexidade e os estímulos errados”.

A fiscalidade é um bom exemplo, uma área onde as alterações passam pela criação de mais uma contribuição sobre o alojamento local, o “que é difícil de entender”, porque são uma entorse ao sistema fiscal”, diz.

“Erro total” no alojamento local

Ainda pelo alojamento local, o advogado e fiscalista João Taborda da Gama fala em medidas “panfletárias” e “erro total” do Governo, ao avançar com “alterações fiscais aberrantes”, que visam “exterminar” estes negócios, conjugadas com a abolição de novas licenças.

Também ouvido pela Renascença, Rogério Fernandes Ferreira, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, deixa duras críticas à nova contribuição. Defende que estas taxas são já um dos maiores impostos do sistema e desafia que sejam contabilizadas: “isto não para, é mais fácil tributar empresas de determinados setores, evocando externalidades negativas, do que aumentar outros impostos”.

Por outro lado, “os tribunais também não têm tido a coragem de observar estas novas contribuições extraordinárias, sobre pontos de vista menos tradicionais”, denuncia.

Rogério Fernandes Ferreira conclui que os impostos vão continuar a aumentar, através destas contribuições sectoriais, que ainda vão superar as taxas tradicionais e mais conhecidas.

O ex-governante destaca ainda uma medida que “tem passado despercebida”: o IVA à taxa reduzida para reabilitação urbana. Uma alteração que “devia ser clarificada”, defende o fiscalista, que teme que não passe de “uma tentativa de ultrapassar alguns acórdãos dos tribunais arbitrais, que têm tido um entendimento mais abrangente da aplicação da taxa reduzida do que a administração tributária”. Ou seja, pretendem apenas limitar a aplicação do IVA reduzido.

Já as alterações nas mais-valias não geram consenso. Enquanto Rogério Fernandes Ferreira considera positiva a isenção de mais-valias na venda das casas ao Estado ou na liquidação dos empréstimos, João Taborda da Gama critica a “restrição no reinvestimento das mais-valias, quando se reduz o empréstimo”. Para o advogado, esta era “uma medida importante, na medida em que permitia desalavancar as famílias portuguesas”.

Rogério Fernandes Ferreira aponta ainda como positivo, no Programa “Mais Habitação”, os incentivos fiscais para a passagem de alojamento local para arrendamento tradicional ou ainda a redução de IRS para casas em arrendamento de longa duração.

O que falta nas medidas do Governo?

Uma das grandes ausências neste pacote de medidas são as deduções de juros e rendas em sede de IRS, denuncia João Taborda da Gama. O advogado lembra que a medida já foi aplicada durante anos em Portugal e continua a existir em muitos países.

“Pode ser uma medida com grande impacto financeiro, mas aqui o objetivo é que tenha grande impacto financeiro”, diz João Taborda da Gama, para “reduzir os custos de habitação dos portugueses”. Por isso pergunta: “Por que não foram ponderadas medidas desse tipo?”

Faltam ainda incentivos reais à “construção a preços controlados e incentivos corretos ao arrendamento”, diz Samuel Fernandes de Almeida, em vez de “arrendamentos compulsivos”.

O sinal que estamos a dar para fora, para quem quer investir, é que isto não é um país credível, não é um país sério

Rogério Fernandes Ferreira fala num processo “apressado” e “pouco refletido”. O advogado critica ainda as “sucessivas declarações de membros do Governo pouco coordenadas, algumas até contraditórias” e o pouco tempo dado para consulta pública das medidas. Conclui que falta “clarificação, maior capacidade de comunicação e tempo” neste Programa.

Samuel Fernandes de Almeida lamenta que o debate sobre a habitação em Portugal esteja centrado no “preço exagerado” dos imóveis, sem que se discuta os baixos salários, somos “o quarto país com os salários médios mais baixos da Europa”, ou a carga fiscal, que é uma das mais altas da OCDE. Qualquer melhoria nestas áreas facilitava o acesso à habitação.

Fim dos Vistos Gold. “Isto não é um país credível, não é um país sério”

É a imagem externa de Portugal que fica em risco com o fim dos Vistos Gold, defende o advogado Samuel Fernandes de Almeida, que lembra que esta medida é responsável por apenas 3% do investimento imobiliário no país nos últimos 10 anos.

Acabarem com estes vistos e limitarem as renovações “é verdadeiramente um atentado num Estado sério, que salvaguarda os direitos dos investidores, nomeadamente os internacionais, que fizeram o seu acordo com um quadro legal claro”, defende este advogado. Agora, estes investidores “correm o risco de verem as suas legítimas expectativas defraudadas, com base numa legislação nova, que visa apanhar os processos em curso”, acrescenta.

Um cenário que se agrava se pensarmos que “o Estado Português não assegura capacidade de resposta em tempo devido aos pedidos atempadamente formulados”, mas o mesmo Estado “já arrecadou a receita dos investimentos realizados”.

Isso irá certamente despoletar uma litigância em série e tenho sérias reservas que o Estado não venha a pagar um preço elevado pela frustração destes mesmos investidores

“O sinal que estamos a dar para fora, para quem quer investir, é que isto não é um país credível, não é um país sério”, diz Samuel Fernandes de Almeida. O advogado sublinha ainda que “este é um capital que custa muito a conquistar e que pode ser destruído com este tipo de medidas”.

Rogério Fernandes Ferreira teme que “os nossos governantes não se apercebam das repercussões que estes anúncios têm no investimento externo no nosso país, mas de facto têm e é facilmente verificável”, lendo a imprensa estrangeira.

Este fiscalista acrescenta ainda que a comunicação externa chumbou em toda a linha, “entende-se o sinal político”, mas “surpreendeu os investidores internacionais” e levanta questões sobre expetativas criadas pelo Estado.

É de esperar “litigância em série” com “custos para o Estado”

Desde os arrendamentos compulsivos, aos atrasos na justiça que arrastam a indefinição jurídica dos imóveis, aos direitos dos investidores estrangeiros no país com aplicações retroativas da lei, tudo é matéria inflamável pronta a queimar na justiça.

A contribuição extraordinária sobre o alojamento local, por exemplo, além de levantar dúvidas constitucionais, pode ser questionada "à luz de outros princípios que também resultam da Constituição”, defende Rogério Fernandes Ferreira, como “regras financeiras e regras orçamentais”.

Segundo o advogado fiscalista Samuel Fernandes de Almeida, se o programa “Mais Habitação” for aplicado como está a ser apresentado, “obviamente que isso irá certamente despoletar uma litigância em série e tenho sérias reservas que o Estado não venha a pagar um preço elevado pela frustração destes mesmos investidores”.

Avisa ainda que “a gestão da política e do quadro legislativo não pode ser feita ao sabor do humor do legislador ou da ideologia de quem rege o país.”

João Taborda da Gama acredita que “vai haver alterações neste pacote, em geral”. Lembra que as medidas foram “muito mal recebidas” e acredita “que nem sequer o governo estava à espera de tão má receção deste pacote, mesmo à esquerda, que conseguiu irritar toda a gente”.