26 out, 2017 - 16:50
O Presidente da Turquia não representa uma ameaça imediata aos interesses da Europa ou à estabilidade regional, mas é sem dúvida uma fonte de preocupação, considera André Barrinha, professor de Relações Internacionais e especializado na Turquia.
Nesta entrevista, o professor da Universidade de Bath fala do papel que a Turquia procura desempenhar no Médio Oriente, das relações com a Rússia e da importância do islão para a um regime que procura reavivar um certo legado do Império Otomano.
Erdogan é perigoso?
É uma questão difícil. Se é uma fonte de preocupação? É.
Era uma fonte de esperança em 2002, até 2007 ou 2008, mas hoje em dia é uma fonte de preocupação. As coisas obviamente evoluíram à medida que ele foi consolidando o seu poder na Turquia e hoje em dia essa esperança e esse contributo positivo que se pensava que Erdogan podia trazer não só em termos de relações com a Europa, mas também para estabilizar o Médio Oriente estão obviamente em risco.
Isso não significa que Erdogan seja necessariamente uma ameaça. O que pode fazer é com que a Turquia possa não desempenhar um papel tão positivo como poderia ter noutro contexto. Ameaça ou perigo são termos um pouco fortes, mas certamente a Turquia é uma fonte de preocupação neste momento para os parceiros europeus, até porque a União Europeia e a Europa em geral está dependente da Turquia numa série de áreas, incluindo a questão dos refugiados, o papel na Síria, questões energéticas, que torna essa preocupação não só uma questão de concordar ou discordar com as políticas internas de Erdogan, mas de receio das possíveis consequências negativas que essas políticas possam ter a nível externo.
O partido de Erdogan (AKP) é por vezes descrito como “moderadamente islamita”. Até que ponto o islão é importante para ele e para os seus planos para o país?
O islão oferece três elementos importantes para Erodgan, um externo e dois internos. O primeiro é a questão dos valores. A agenda com que Erdogan tem ganho eleições consecutivas é uma agenda socialmente conservadora, e o islão é a base desses valores.
A outra dimensão interna é o simbolismo do islão. Uma das grandes questões que levou às manifestações em 2013 em Istambul foi o facto e quererem destruir o parque para construir uma mesquita, que de resto foi construída e vai ser a maior mesquita da Turquia. Isto estabelece uma ligação ao passado otomano, o que é obviamente importante para a imagem de poder que Erdogan gosta de transmitir.
O terceiro aspecto tem a ver com as relações com os países do Médio Oriente e também um pouco com a Ásia Central. A Turquia, em termos de política externa sempre teve alguma relutância em utilizar a carta religiosa, até porque um dos aspectos definidores da república turca era o seu secularismo. Mas na última década isso tem mudado bastante e a linguagem de Erdogan a falar dos seus irmãos muçulmanos tem feito com que a dimensão religiosa também seja um aspecto importante da sua política externa, o que acaba por ter implicações nos seus alinhamentos estratégicos com outros países no Golfo.
Há anos que a Turquia bate à porta da UE. Terá finalmente desistido de entrar para a União?
A questão é mais complicada do que isso. A Turquia não desistiu da União Europeia em termos oficiais, aliás, não só não desistiu como em breves momentos diferentes membros do Governo salientam a importância fundamental das relações com a União Europeia. A Turquia tem um envolvimento com a União Europeia muito significativo para um Estado que não é membro. É dos Estados que tem a ligação mais avançada...
Uma coisa é ter essa ligação, que pode ser comercial, diplomática ou política, mas desistiram da ideia de integrar a União Europeia?
Como ia a dizer, oficialmente não, mas na prática parece-me que sim.
Isso explica o facto de a Turquia se ter virado mais para Oriente?
A política externa do AKP não foi exclusivamente uma viragem para o Oriente, foi uma abertura ao mundo. A política externa da Turquia, a partir de 2004, fez-se acompanhar e um forte crescimento económico do país. O que aconteceu até 2011 foi a expansão da política externa turca, para outras regiões que não só a Europa e que não só a sua ligação à Aliança Atlântica, que obviamente continua a ser vista, em termos oficiais, como bastante importante.
No passado já houve, em momentos diferentes, um forte investimento noutras regiões, a Ásia Central é um bom exemplo disso, os Balcãs igualmente, com a Rússia as relações também melhoraram significativamente com este governo, depois pioraram significativamente com este governo e entretanto voltaram a melhorar.
Essa diversificação da política externa turca também teve no Médio Oriente um aspecto importante, mas esse aspecto importante era também uma forma de poder vender a importância da Turquia para o resto do mundo, isto é, o facto de a Turquia ser capaz de interagir de uma forma diferente com os países do Médio Oriente era uma espécie de valor acrescentado.
Parece que o Médio Oriente estava muito polarizado entre a Arábia Saudita e o Irão e que a Turquia está a tentar mostrar que também é um jogador importante na região, a impor-se como uma potência sunita em contraponto à Arábia Saudita...
Sim... A Turquia tem um problema nessa relação, uma vez que continua a ser vista em larga medida como um actor externo na região. É um pouco parte do Médio Oriente, mas não é totalmente um país do Médio Oriente, a começar pelo facto de ser membro da Aliança Atlântica.
Depois há outro aspecto fundamental, o Império Otomano, e essa questão é bidireccional. Existe o ressentimento dos países da região – hoje em dia eventualmente menos, mas o legado histórico está lá – e tradicionalmente a política externa turca sempre foi querer ser aquilo que o Império Otomano não era.
Voltando ao primeiro ponto, a Turquia não é vista como parte integrante do Médio Oriente e isso viu-se de forma clara na questão da Primavera Árabe. A Turquia em 1998 esteve à beira da Guerra com a Síria, entretanto as relações melhoraram substancialmente ao ponto de ver enormes parcerias em múltiplas áreas a partir de 2004. Ancara julgava que tinha uma relação muito próxima com o regime de Bashar al-Assad e tentou muitas vezes que o regime de Assad ouvisse a população aquando das manifestações, e o resultado final mostrou que afinal a Turquia não tinha qualquer influência no país.
Portanto quando a questão foi ao fundo da política de poder, o papel que a Turquia tinha na região acabou por mostrar-se limitado. E há outro elemento ainda, é que a Turquia, pelo menos durante uma década, teve como principal aliado na região Israel e há muitos líderes políticos na região que não perdoam a Turquia por isso. Entretanto as relações com Israel, depois de terem atingido um ponto de ruptura há seis ou sete anos atrás, voltaram a melhorar significativamente.
As relações com a Rússia têm sido acidentadas, com uns incidentes diplomáticos, políticos e militares gravíssimos ao longo dos últimos dois anos. Como é que está a relação entre Moscovo e Ancara, e como é que isso pode afectar o Médio Oriente?
A relação com a Rússia é uma relação curiosa do ponto de vista das relações internacionais, uma espécie de estudo-caso, porque é uma espécie de parceria estratégica que interessa aos dois lados. Há toda uma série de dimensões que fazem com que essa relação oscile, no sentido positivo ou negativo, mas esses interesses estratégicos mantêm-se e a questão energética é fundamental para os dois lados. É fundamental para a Turquia porque depende em larga medida do gás e do petróleo da Rússia, e é também muito importante para a Rússia, porque a Turquia é um excelente cliente e uma excelente base de distribuição.
Para além disso há uma série de questões como investimentos económicos, sectores como construção, etc. Há toda uma série de dimensões que tornam essa relação importante do ponto de vista estratégico. Aquilo a que assistimos durante bastante tempo foi a uma divergência profunda da posição da Turquia e da Rússia relativamente à Síria, sem que isso tivesse necessariamente impacto nas relações entre Moscovo e Ancara. Até que o envolvimento da Rússia na Síria aumentou e o envolvimento da Turquia na Síria aumentou, e chegou-se a um ponto em que deixou de ser possível tapar os olhos a esses problemas. Depois houve incidentes como o abate do avião e mais recentemente o assassinato do embaixador da Rússia na Turquia, se bem que esse caso acabou por ser visto como um caso isolado.
Mas com outros países, outros actores, poderia ter gerado uma crise profunda...
Sem dúvida, e a Rússia obviamente não ficou nada satisfeita. Mas os interesses estratégicos entre os dois países fazem com que as relações necessitem de alguma estabilidade, é preciso muito para que essa relação quebre.
Turquia e Estados Unidos são aliados na Síria?
De certa maneira, sim. Erdogan ficou muito satisfeito com a posição de Trump e acha que pode ver em Trump um importante aliado na região.
Agora, os EUA também apoiam o YPG, o movimento curdo na Síria, que para a Turquia é uma espécie de versão Síria do PKK. O interesse principal da Turquia na Síria é evitar que os curdos criem um Estado curdo na Síria. Portanto temos uma situação em que apesar de EUA e Turquia terem um interesse comum quanto à deposição de Bashar al-Assad, têm uma divergência profunda quanto ao papel dos curdos na região.