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​Arundhati Roy: “Estamos a seguir uma rota que pode destruir o mundo”

06 set, 2017 - 15:29 • Dina Soares , Teresa Abecasis (vídeo)

A autora de “O Deus das Pequenas Coisas” volta à ficção com “O Ministério da Felicidade Suprema”. Em entrevista, diz recear o racismo e o nacionalismo que “atravessa o mundo”. E mostra-se preocupada com a Índia, onde se matam pessoas suspeitas de terem comido vaca.

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Arundhati Roy: “Estamos a seguir uma rota que pode destruir o mundo”
Arundhati Roy: “Estamos a seguir uma rota que pode destruir o mundo”

Há 20 anos, Arundhati Roy deslumbrou o mundo literário com “O Deus das Pequenas Coisas”. Regressa agora à ficção com “O Ministério da Felicidade Suprema” (ed. Asa), um livro sobre a felicidade improvável de pessoas nascidas para serem infelizes num mundo complexo e perigoso.

Escritora indiana, a primeira a receber o Prémio Man Booker, tem dedicado a sua vida à luta contra a globalização, a corrupção e o nacionalismo hindu. Activista da independência de Caxemira, assume-se como a voz daqueles que ninguém quer ouvir. Tem perto de duas dezenas de ensaios publicados sobre questões sociais, políticas e ambientais. Está agora de volta à ficção e à lista dos possíveis vencedores do Prémio Man Booker, um dos mais importantes prémios literários do mundo.

O seu primeiro livro, “O Deus das Pequenas Coisas”, conta a história de uma família, desenrola-se num universo restrito. “O Ministério da Felicidade Suprema” é muito mais aberto, cheio de personagens diferentes. No entanto, há duas que se destacam: Anjum, uma mulher nascida homem, e Tilo, uma arquitecta, activista. Tilo é o alter-ego de Arundhati?

Eu imaginei-a como a filha que Ammu e Velutha, de “O Deus das Pequenas Coisas”, poderiam ter tido se a história tivesse sido diferente. É a irmã mais nova de Estha e Rahel. Conheça-a muito bem, mas não sou ela. Acho que um dos temas deste livro são as histórias de todas as mulheres que conseguem, apesar de tudo, viver de acordo com as suas próprias regras, mesmo numa sociedade muito castradora. Elas recusam-se a aceitar o que a sociedade espera delas, não através de uma luta formal, mas pela sua forma de ser. Anjum, que é transgénero, deseja muito ser mãe e não pode ter filhos biológicos, mas acaba por ser mãe; Tilo, embora possa ter filhos, não quer ser mãe.

Aqui, não há lutas políticas, não há amargura, apenas uma teimosia estranha e mágica através da qual elas conduzem as suas vidas. E numa sociedade muito ortodoxa, estas mulheres tão pouco ortodoxas conseguem encontrar o seu lugar.


Não há, de facto, amargura, mesmo nas situações mais difíceis.

Pois não. Nos últimos 20 anos, desde “O Deus das Pequenas Coisas”, escrevi e viajei muito pelos locais mais tenebrosos da Índia. Encontramos felicidade nos locais mais estranhos, tal como encontramos amargura nos locais mais estranhos. “O Deus das Pequenas Coisas” é um livro sobre uma família com o coração despedaçado. “O Ministério da Felicidade Suprema” vira isso do avesso e é sobre pessoas sem família que não viveram de forma normal, que começaram com o coração partido e cada um traz um pedaço de um coração despedaçado que vai juntando até construir um coração consertado. Tudo isto num cemitério onde se espera encontrar morte e se encontra vida.

Na Índia, os cemitérios são apenas locais dos muçulmanos e dos cristãos já que os hindus, que são a maioria, não enterram os seus mortos. Por isso, de certa forma, o cemitério é também um gueto onde as pessoas encontram espaço para viver de acordo com as suas próprias regras.

Grande parte do livro é sobre a luta de Caxemira pela independência. É uma causa importante para si?

Como é que a população da Índia, que sabe o que se está a passar em Caxemira e que até aplaude, pode depois falar sobre as injustiças que são cometidas contra si quando permite que sejam cometidas injustiças contra outros? Não vejo “O Ministério da Felicidade Suprema” como um livro sobre causas ou lutas. Isso é a textura das nossas vidas, são realidades com as quais vivemos, sobre as quais tentamos pensar ou tentamos não pensar. E como é que a literatura deve mudar nos nossos tempos, que são tempos psicóticos.

Este livro tem, de facto, muitas personagens, mas actualmente vivemos todo o tempo com tanta informação que nos chega nos momentos mais estranhos, mais privados. Nunca ninguém teve que lidar com tanta informação. Vivemos tempos em que todos os momentos são fragmentados, cheios de imagens, de informação. Os romances não podem continuar a ser confortáveis.

Que tipo de escritora é? Uma escritora de ficção ou de ensaio?

Eu sou o que escrevo, que é tudo. Escrevo não ficção e escrevi dois livros de ficção. Não entendo esta definição da ficção separada da realidade. Por exemplo, os capítulos do livro sobre Caxemira. Não podemos escrever sobre Caxemira senão na ficção. Se tentarmos escrever a história de Caxemira apenas com base nos relatórios sobre direitos humanos, os relatórios da Amnistia Internacional, o número de mortos e desaparecidos, não seremos capazes de entender todos os pontos de vista do conflito.

Faltam os sentimentos?

Sim, os sentimentos, mas também a forma como tudo funciona. Como funciona a ocupação militar nas mentes dos soldados, dos oficiais, dos serviços de informações, do povo, das mães dos desaparecidos, dos colaboradores, da loucura e da psicose que se instala quando se vive sob a mais densa ocupação militar do mundo. Há 5 milhões de soldados em Caxemira. O que é que isso provoca nos ocupados e nos ocupantes? E nos indianos? E nos média? O que pode fazer uma história, do ponto de vista artístico? Para mim, isso é importante. Como lidar com estes tempos.

Como está a Índia hoje? É um país perigoso?

É um país muito perigoso, extremamente perigoso. Todos os dias ouvimos histórias de multidões que lincham muçulmanos nas ruas porque estão a transportar vacas. Rumores de que alguém comeu carne de vaca são suficientes para que uma multidão se junte e mate essa pessoa na rua. Acontece todos os dias. “Dalits” (intocáveis) são mortos. O livro é sobre estes tempos.

No livro, a Índia é retratada como um país muito perigoso.

E está cada vez mais perigoso. Ainda recentemente, um guru religioso foi condenado por violação e os seus seguidores revoltaram-se nas ruas em sua defesa, o exército teve que intervir, três pessoas morreram e centenas ficaram feridas. É um barril de pólvora. A extrema-direita religiosa está a consolidar a sua posição, os livros de história estão a ser reescritos. É a combinação de muitas coisas que tenho escrito nos últimos 20 anos e que agora estão a culminar numa situação extremamente imprevisível.

Entre meados dos anos 1990 e a primeira década deste século, só havia notícias sobre o grande crescimento económico, a superpotência, mas agora está a verificar-se o que muitos de nós sempre dissemos: que essa economia estava a crescer à custa do sacrifício de milhões de pessoas, que era um crescimento sem emprego. Como em toda a parte, temos uma pequena percentagem de muito ricos, mas, como em nenhum outro país do mundo, temos milhões e milhões de subnutridos, mais do que em África, centenas de milhares de agricultores suicidaram-se, a devastação do ambiente num país onde a maioria vive da terra, a ira provocada por tudo isto está a levar a um nacionalismo hindu.


E o que é que os políticos fazem? A Índia é a maior democracia do mundo.

Pois, mas democracia não significa apenas votar. Temos eleições, mas as eleições só podem ser ganhas por quem tem o apoio das grandes corporações com muito dinheiro, que dominam a comunicação social. Ao mesmo tempo que há eleições, todas as outras instituições democráticas estão reféns. Por exemplo, a comunicação social é dominada por grandes corporações com os seus interesses próprios. Há um grande conflito de interesses. Especialmente a televisão está completamente fora de controlo, exibe vídeos falsos, mente, faz propaganda.

E as redes sociais vão no mesmo sentido ou agem como contrapoder?

As redes sociais, numa população semianalfabeta, têm um poder imenso. Há motins que começam devido a vídeos falsos na internet. É uma combinação da tecnologia moderna com uma sociedade feudal.

No ano passado, mostraram imagens dos protestos dos estudantes numa universidade de Nova Deli, mas com som diferente. Os estudantes foram presos e acusados de terrorismo. Assim que algo passa na televisão, passa a ser verdade. Aconteceu comigo. Uma semana antes do lançamento do meu livro, um site paquistanês afirmou que eu tinha estado em Caxemira e tinha feito declarações sobre o exército indiano. Era tudo falso, mas foi reproduzido em toda a parte. No Parlamento, um partido sugeriu que eu devia ser amarrada a um jipe e usada como escudo humano. Depois, houve um pequeno site que desmentiu e provou que era tudo mentira, mas já não interessa.

O que é que mais a preocupa no mundo?

Um certo fenómeno que atravessa o mundo actualmente e que já vimos antes, nos anos de 1930. Às vezes penso que é bom que o que estava escondido esteja a vir à superfície. Racismo, nazismo, nacionalismo, tudo o que estava escondido pelo politicamente correcto mas continuava a existir, está a aparecer. Nos dias em que me sinto optimista, acho que é uma espécie de exorcismo. Nos dias em que me sinto pessimista, acho que o facto de eles poderem falar e percorrer esses caminhos significa que estamos numa rota que pode facilmente destruir o mundo. Nos anos de 1930, pelo menos, não tinham armas nucleares, apenas as bombas que lançaram sobre Hiroxima e Nagasaki. Agora, muitos países têm, incluindo a Índia.

Em 2014, a revista “Time” incluiu-a na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo. Sente-se uma pessoa influente?

Não. Na verdade, as minhas ideias não são as ideias dominantes.

Mas é ouvida.

Sou ouvida, isso é bom e é uma forma de poder, mas não sei se tem influência.

Alguma vez pensou em deixar a Índia?

Não. Já tive problemas muitas vezes. Quando estava a acabar este livro, na altura dos protestos dos estudantes, entrei em pânico, queria acabar e livro e saí a meio da noite para Londres, mas, uns dias depois, regressei.

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  • Rosa Teresa
    06 set, 2017 Lisboa 21:26
    O sr costa do PS deve ler isto muito bem e os Portugueses em geral também.

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