19 jun, 2017 - 00:16 • Redacção com Lusa
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O que falhou? A pergunta repete-se a cada grande incêndio, mas não houve – até hoje – em Portugal um fogo como este – grande, monstruoso, o “diabo”, como lhe chamou João Dias, antigo comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande, ou um dos mais graves incêndios do mundo nos últimos anos, na visão do especialista Xavier Viegas. O que falhou em Pedrógão Grande, onde morreram pelo menos 62 pessoas? Ainda é cedo para o diagnóstico completo, mas os peritos já apontam velhos problemas.
Os incêndios florestais em Portugal com área ardida superior a 10 mil hectares numa só ocorrência começaram na década de 1980, com a redução do pastoreio e o abandono de antigas áreas agrícolas a serem algumas das causas, indica o estudo “Grandes Incêndios Florestais em Portugal”, das universidades do Minho e de Coimbra.
“Muitas dessas áreas rurais tornaram-se paisagens propensas à ocorrência de incêndios de grande intensidade, devido aos elevados níveis de biomassa, acumulados ao longo dos anos e prontos para alimentar fogos catastróficos durante o Verão”, refere o trabalho académico.
Olhando especificamente para o incêndio de Pedrógão Grande, Xavier Viegas disse, à Lusa, que a falta de limpeza das florestas e da envolvente das casas, bem como as características do terreno, com um “estado de secura muito grande”, terão contribuído para a extensão deste incêndio com vários focos.
Junta-se a isso um terreno “muito complicado”, como é o circundante do IC8, com ravinas e desfiladeiros muito acentuados, que “dá origem a comportamentos do fogo que facilmente surpreendem as pessoas”.
Para o especialista, este acontecimento deveria chamar a atenção para “muita coisa que é preciso fazer no nosso país para melhorar a segurança das pessoas e evitar que este tipo de acidentes ocorra”.
“Aprender a gerir o território”
O especialista em planificação florestal Pedro Cortes diz que perante a tragédia em Pedrógão Grande não seria “sensato” apontar culpas ou dissecar responsabilidades. “Estas coisas tratam-se no Inverno. E é no Inverno que devemos falar delas.”
Contudo, aponta como uma das razões estruturais para a problemáticas dos incêndios em Portugal a desactivação do sistema agroflorestal e das práticas agrícolas clássicas, em parte devido à inviabilidade económica de manter a actividade.
“O nosso clima é um inimigo, um inimigo sem nome. Temos de aprender a gerir o território. É um trabalho de vários anos de reactivação do território e os projectos que têm sido feitos nesse sentido deviam ser acarinhados”, afirma.
O perito diz que há vários aspectos a resolver na gestão do território, que há anos que vão sendo identificadas, nomeadamente enfrentar os problemas estruturais do abandono territorial. Um “trabalho de vários anos”.
O presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses defende a necessidade do “emparcelamento” da floresta portuguesa. “Nós para prepararmos uma floresta, com um mosaico florestal, com espécies autóctones, com linhas corta-fogo, temos de emparcelar”, afirma Jaime Marta Soares.
Quercus lamenta “total laxismo” das autoridades em política florestal
A Quercus lamentou o “total laxismo” das autoridades em relação à política florestal. “O Governo promete uma reforma florestal e a revogação da chamada lei do eucalipto e continua na mesma, isso é triste”, afirma João Branco, presidente da associação ambientalista.
Para o também engenheiro florestal, “são precisas situações deste tipo para que os políticos se lembrem disso”.
João Branco recorda que este ano foi aprovada uma reforma florestal, mas afirma que, dos dez pontos do pacote, “apenas três ou quatro foram publicados e são irrelevantes”.
A reforma florestal, prosseguiu, “até teve um efeito perverso” com a promessa de o Governo acabar com a lei da liberalização do eucalipto, o que provocou “uma corrida” a esta espécie.
Segundo o dirigente ambientalista, só no passado Inverno foram vendidas mais de três milhões destas plantas, que são altamente inflamáveis e combustíveis, e cujas folhas e cascas podem ser projectadas em condições de incêndio e iniciar novas ignições a centenas de metros.
O presidente da Quercus destacou que o grande incêndio de Pedrógão Grande aconteceu justamente em grandes manchas de eucaliptal desordenado, numa região conhecida ironicamente como pinhal interior, e de fraca gestão, em que os proprietários praticamente só lá voltam para cortar.
A questão não é nova, assinala, e já no ano passado se discutiu a política florestal no seguimento dos incêndios do Caramulo e Funchal, e também com vítimas mortais.
João Branco disse, ainda, desconhecer o número de municípios que adoptaram a legislação da defesa da floresta contra incêndios e, desses, quantos a cumprem, observando que a Quercus apresentou uma queixa à Procuradoria-Geral da República em 2013 sobre este assunto, que foi arquivada.
“É um total laxismo da administração central e de diversos órgãos”, entre os quais os municípios, frisou. “Há responsáveis políticos para isto”, acusou, a começar pelos titulares dos ministérios da Agricultura e do Ambiente.
Outra associação ambientalista, a Zero, também lamentou a tragédia de Pedrógão Grande, alertando que fenómenos como aqueles que parecem ter contribuído para este incêndio terão mais condições de se replicar no futuro, devido às alterações climáticas.
A Zero defende, no entanto, que a maioria dos mecanismos de política florestal já existem, embora se pudesse ter ido mais longe na última reforma, nomeadamente na gestão comum da propriedade, ou na capacidade de resposta de pequenas aldeias, isoladas em manchas florestais, através de “medidas simples” como a instalação de bocas-de-incêndio, “porque os bombeiros não conseguem estar em todo o lado”, afirma o dirigente Paulo Lucas. Em vez disso, vêem-se “imagens de pessoas a fazer frente a fogos com mangueirinhas e que acabam por perder os seus bens, o que é perfeitamente lamentável nos tempos que correm”.
Entre a “armadilha” e o “deserto”
Para a Associação de Promoção ao Investimento Florestal – Acréscimo, esta já era uma tragédia expectável, já que “parte significativa do território está convertido numa armadilha, outra parte está a caminho do deserto”.
O organismo acusou o Governo de olhar a floresta “em função dos interesses que representa ou tutela”, insistindo em “criar grupos interministeriais, conselhos, comissões, em definir planos e redefinir planos”.
“No último quarto de século, o país tem uma taxa de desflorestação anual de 10 mil hectares, o equivalente à área da cidade de Lisboa”, lembrou a associação para o investimento florestal.
A continuação da plantação de eucaliptos pelo país, a falta de investimento financeiro no apoio às florestas – apesar do anúncio de milhões de euros disponíveis para o efeito – e o fazer depender de “consensos” a aprovação de uma reforma que atenue os riscos associados às florestas são outras das críticas feitas por este grupo.
“Vai tudo ficar na mesma? Até quantas mais vítimas humanas? Até quanto mais património e território destruídos? Vai-se continuar a medir as florestas apenas pelo peso nas exportações, a que preço?”, questiona.
Já o especialista florestal Paulo Fernandes prefere colocar a tónica na protecção civil e não na política da floresta.
“A floresta é muito usada como bode expiatório, mas passa-se vinte anos a dizer que o sistema de protecção civil é muito bom e isso não é verdade”, observa este professor no Departamento de Ciências Florestais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, acrescentando que basta comparar com as estatísticas dos países vizinhos.