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​Crónica

A mancha azul-turquesa que peregrinou de madrugada para esperar o Papa

12 mai, 2017 - 18:26

A jornalista Matilde Torres Pereira acompanha a peregrinação do movimento Eu Acredito. Nesta crónica há um comboio, entusiasmo, "kits de sobrevivência", caminhadas em tempo recorde e uma juventude em marcha - rumo ao Santuário de Fátima, rumo ao Papa Francisco.

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Estação de Santa Apolónia, uma hora da madrugada. Não é uma hora em que costuma haver comboios, mas, na madrugada de 12 para 13 de Maio, há oito composições de carruagens paradas nas linhas da estação central de Lisboa. Estão prontas para receber os dois mil peregrinos do movimento juvenil Eu Acredito que quiserem assim colocar-se a caminho para o encontro com o Papa Francisco no Santuário de Fátima.

Os “jovens”, dos 15 aos 30 (com várias excepções: chefes de grupo, padres mais velhos e crianças a acompanhar os pais), foram chegando em grupos. Alguns vinham de autocarro e desciam frente à estação; outros de táxi ou à boleia dos pais que concordaram sair de casa numa noite fria e chuvosa para deixar os filhos partirem à aventura; outros ainda chegaram pelos seus próprios meios. Alguns marcaram ponto de encontro num bar atrás da estação, aproveitando para beber imperiais antes da partida. Houve quem viesse num estado de semidormência. E, a vigiar tudo, com enorme paciência e disponibilidade, uma equipa de revisores e maquinistas da CP prontos a apoiar o serviço especial para Fátima.

Feito o “check-in”, os jovens foram divididos em grupos de 250, por letras. Tudo se passou de forma organizada e serena. À hora marcada, 4h00, os comboios, cheios, estavam prontos para partir. Cada peregrino sabia apenas que iria chegar a Chão de Maçãs, Ourém, e caminhar 20 quilómetros até chegar ao Santuário. No corpo, uma t-shirt azul turquesa, já imagem de marca do Eu Acredito; no bolso, um livrinho de apoio à peregrinação. E ainda um convite com o título “Estar”: “Tudo começou com uma resposta. Porque tudo começou com uma pergunta: ‘Quereis oferecer-vos a Deus?’”.

No comboio, duas raparigas aproveitavam para travar amizade com uma terceira. Um rapaz, sozinho, vindo de Torres Vedras, ia-se rindo. A primeira, educadora de infância, 24 anos apresentava-se a uma estudante de gestão. O rapaz, estudante de Engenharia Zootécnica, deixou-se ficar sorridente numa espécie de nervosismo expectante. Um grupo de jovens espanhóis entrou no comboio, e, pouco e pouco, as carruagens foram enchendo.

A viagem revelou-se a altura ideal para aproveitar para dormir um pouco ou para ler o caderninho da peregrinação, dividido em oito tempos: “Estar”, “chegar”, “faltar”, “reparar”, “fazer”, “encher”, “transformar”, “guardar”, “manifestar”, “acreditar” e, por fim, “descer”.

À chegada, ainda de noite, pelas 5h00, à estação de Chão de Maçãs-Fátima, não houve tempo para pensar – só para agarrar as mochilas e começar a andar. Oito comboios desaguaram para a plataforma com centenas de jovens sonolentos, sem qualquer pista acerca daquilo que se passaria a seguir. Na plataforma oposta, uma equipa de funcionários da CP vestidos de fatos reflectores filma e aplaude o início da caminhada.

Com o nascer do sol, uma etapa difícil. Aliás, o caminho é duro, intenso e feito com poucas paragens e muitas subidas. É evidente que os peregrinos estão com pressa para chegar a Fátima.

Numa paragem, uma das carrinhas de apoio tem nela afixado um enorme cartaz com um desenho de Maria. Em pontos inesperados, vão sendo distribuídas águas e bolachas pela equipa de voluntários que acompanha a peregrinação. O frio e a chuva fazem-se sentir sem demora e só já perto das 11h00 é que o caminho começa a parecer ter fim.

Alguns grupos conversam, outros aproveitam para fazer perguntas difíceis aos padres que os acompanham. Vários momentos de humor se vão proporcionando: “Fechem o buraco”, gritam os “vassouras”, os voluntários que ficam a fechar cada grupo no final da multidão. Os da frente aceleram a fundo e, cá atrás, os mais cansados vão tentando acompanhar.

As carrinhas de apoio vão passando para apanhar quem precisa de apoio médico ou de um bocadinho de descanso. Vinte quilómetros a pé seriam uma etapa para durar normalmente um dia. Neste dia 12, faz-se numa manhã. Talvez por isso, os peregrinos fazem menos barulho do que seria esperado. Estão concentrados na passada, no terreno, nas pedras que aparecem na estrada, nas subidas e descidas. E na fome – porque o farnel é comido em andamento. Surgem paragens, muito curtas, com pontos de oração lidos pelos organizadores, e segue jogo.

Finalmente, pelas 11h30, a pausa do almoço. A cada pessoa é dado um “kit de sobrevivência” com comida suficiente para durar até ao Papa deixar Fátima no dia 13 à tarde. Alguns planeiam dormir no recinto, 700 têm vaga no Centro de Estudos de Fátima para dormir no chão, outros “logo se vê”. Certos grupos mostram que estão a acalentar a esperança de regressar a Lisboa a horas de ver o Benfica campeão no Marquês de Pombal.

Depois do almoço, faltam quatro quilómetros para Fátima. Distribuem-se velas e pequenas pagelas com intenções para a oração. O tema: a paz e a esperança. O tópico mais recorrente são os atentados terroristas na Europa. E muitos jovens não escondem o medo, talvez irracional, talvez não, dessa possibilidade vir a ocorrer. Os prós e contras vão sendo argumentados para afastar o fantasma.

Os últimos quilómetros são os mais fáceis, pela inclinação do terreno, mas o cansaço já se faz sentir há muito. Agora sim, dá-se-lhes para a música. Desde o mais clássico “Avé de Fátima” até aos hinos dos colégios e movimentos representados até, por fim, começar a reinar a brincadeira. “Pouco importa, pouco importa, se é a subir ou a descer, quero é ver o Papa, para ele nos benzer”, entoa-se entre gargalhadas para distrair das bolhas que já magoam os pés.

É com esse e outros cânticos que é feita a entrada na cidade de Fátima, já de bandeiras e estandartes erguidos. Os pequenos aglomerados de peregrinos que se encontram no caminho filmam, observam, alguns batem palmas e timidamente sai um “Viva a juventude!” de entre a multidão na Rotunda Sul. A verdadeira alegria chega no encontro com um grupo de peregrinos africanos de vestes coloridas que não se inibem de dançar e bater palmas no meio da rua.

A entrada no Santuário é feita quase em silêncio. Aos poucos vai-se formando a mancha azul que distingue o Eu Acredito dos outros grupos presentes - e é bem distintiva. Agora é esperar. O Papa vem a caminho. E ninguém quer perder nem um segundo.

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