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"São Jorge". O grito de dor dos bairros sociais que a crise silenciou

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"São Jorge". O grito de dor dos bairros sociais que a crise silenciou

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09 mar, 2017 - 10:50 • João Carlos Malta

O realizador Marco Martins quis mostrar como os pobres e os excluídos passaram pelo período de intervenção da troika a partir de 2011. Para isso, recorre a gente real que a sentiu na pele. “São Jorge”, que se estreia esta quinta-feira nos cinemas portugueses, quer ser um documento da crise financeira que se tornou também numa crise social e humana.

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Quando pensou em fazer um filme que retratasse a crise em Portugal depois de 2011, o realizador Marco Martins tinha uma certeza: o pano de fundo da acção seria um bairro social. A razão, para ele, era óbvia: “Pareceu-me que eram as pessoas que não tinham voz”. Urgia devolvê-la e construir um documento para a história.

“Falava-se da crise da classe média porque era nova e a nossa classe média era muito frágil. Parecia que as classes mais baixas sempre tinham enfrentado aqueles problemas, o que não é verdade”, explica Marco Martins, o realizador de “São Jorge”, que se estreia esta quinta-feira em Portugal. A progressiva perda de benefícios sociais, no caso daquelas pessoas, não fez vencer a prestação do carro ou incumprir no pagamento da renda da casa: foi a comida que esteve em causa, diz.

Por isso, quando há quatro anos se lançou na empreitada de fazer “São Jorge”, filme que deu o galardão de melhor actor a Nuno Lopes no Festival Internaiconal de Cinema de Veneza de 2016, percebeu que tinha de trazer as pessoas que encontrou no bairro da Jamaica, Seixal, e no bairro da Bela Vista, Setúbal, da realidade para o grande ecrã. Se o objectivo era dar voz aquelas pessoas, nada melhor do que lhes dar palco.

O homem que abre as portas da realidade

É nesse processo que Marco Martins e Mariana Fonseca, que o acompanhou em toda a fase de preparação do filme, encontram Paulo Seco.

Ele é treinador de boxe, nascido no Casal Ventoso, e ainda hoje tem um ginásio naquela zona onde treina cerca de 50 atletas. Paulo tinha muitas das chaves de portas da realidade que a equipa de “São Jorge” queria abrir. Os mundos do boxe e das cobranças difíceis têm um código que ele sabia descodificar.

“Há uma pessoa ou outra que conheço que já esteve envolvida nas cobranças difíceis, mas já não está. O mundo dá muitas voltas e as pessoas arrependem-se do que fizeram. Muitas não sabem ao que vão – não digo que são enganadas, mas são aliciadas. Houve quem acabasse preso”, conta Paulo. Ele próprio foi aliciado por empresas da área, mas respondeu: “Desculpem lá, mas eu não me meto em nada disso.”

Esta dimensão serve ao filme de metáfora para um país resgatado sob o peso das dívidas e da pressão dos credores. Nuno Lopes explica que durante o processo de preparação a equipa de “São Jorge” entrevistou muitos homens que fazem ou fizeram cobranças difíceis.

O universo, relata o actor, é muito heterogéneo. As pessoas têm apenas dois pontos em comum: os músculos que tonificam o corpo dos pés a cabeça e a ideia de que os maus são os outros, os que devem.

O pugilista, “uma espécie de psicólogo e de padre”

Paulo teve ainda como missão treinar Nuno Lopes, que no filme interpreta um pugilista. A química entre os dois foi tão grande, que essa relação passou da realidade para o grande ecrã.

“Percebi que o Paulo Seco é uma espécie de psicólogo, um assistente social, um padre. Há um lado de pai de família, um ‘boxeur’ é um pai de família, é alguém a quem recorres quando tens problemas. É a figura do mestre”, explica Nuno Lopes.

O treinador diz que o processo de treino com o actor não teve nada de especial. Foi apenas mais um. A maior parte dos que chegam ao ginásio nunca fez boxe.

“Ele aprendeu rápido. Não tinha a disponibilidade de um atleta profissional para estar lá todos os dias a treinar. Mas ia três a quatro vezes por semana. O processo foi mais rápido por causa disso”, diz Paulo.

Já Paulo, que se tornou actor, diz que foi tudo muito natural. Só teve de fazer dele mesmo. “Iam-me dando apenas umas deixas sobre o contexto em que as cenas se passavam.”

Boxe para secar, “crossfit” para encorpar

Durante dois anos, Nuno Lopes, que sempre quis fazer de boxeur num filme, frequentou o centro de treinos de Paulo no Lisboa FC. Confessa no primeiro ano e meio apenas ia ao ginásio e só calçava as luvas. Não entrava no ringue. Era o ambiente que lhe interessava, o novo universo. O que é que mais despertou a atenção?

“Há uma gama enorme de pessoas. Podem estar no mesmo ginásio polícias e ladrões”, afirma, entre risos.

Mas também descobriu que o boxe não é um desporto violento. Como? “Tem um lado técnico tão forte que no momento em que dizes ‘vou bater neste gajo’ perdeste o combate. É xadrez jogado com as mãos. Estás sempre a pensar. A grande dificuldade no boxe é não nos deixarmos ir pelo lado violento. É isso que distingue os bons dos maus boxeurs”, explica.

No processo, seguiram-se cinco meses com cinco horas de desporto por dia. O boxe fez Nuno emagrecer, o “crossfit” deu-lhe a definição muscular que tem no filme. “Tinha a vida de um atleta olímpico. Acordava e deitava-me a pensar no desporto”, relata.

O miúdo do bairro que é estrela de cinema

David Semedo é outros dos actores não profissionais que entra em “São Jorge”. Ele é Nelson, o filho de Jorge (Nuno Lopes). Tem dez anos, vive no bairro da Bela Vista, e na ante-estreia de S. Jorge, na Cinemateca, em Lisboa, levou a família e muitos dos vizinhos que com ele entram no filme. No casaco preto que vestia estava escrito várias vezes “brave” – bravo.

David conta que foi escolhido para o elenco por Marco Martins quando brincava no recreio da escola. E com toda a simplicidade respondeu: “Sim, claro. Aceito”. Adorou a experiência e não esquece o “diálogo da papaia” com Nuno Lopes, em que lhe diz que gostou muito daquela fruta. No filme, ele está na iminência de ser afastado do pai porque a mãe pensa em regressar ao Brasil.

O menino diz que ainda hoje, muito depois de “São Jorge” acabar de ser filmado, Nuno e Marco o visitam muitas vezes. São amigos. Sorri quando a pergunta é sobre o que sente por o nome dele estar nos cartazes espalhados pela cidade. Tem uma certeza: “Gostava de fazer mais filmes.”

Imersão de quatro anos

Não é a primeira vez que Marco Martins faz um filme com actores não profissionais. Em “Estaleiros”, que se passa em Viana do Castelo, já o tinha feito. “Sabia que havia essa capacidade por parte das pessoas de repetir e de improvisar. O meu método foi criar um grupo de actores não profissionais nos bairros onde durante algum tempo debatíamos temas como a crise, o sistema social, os problemas do bairro”, relembra.

Depois houve um segundo momento, em que os actores José Raposo, Nuno Lopes e Beatriz Batarda começaram a participar naquelas conversas, primeiro como observadores, depois já como personagens. “As pessoas do bairro começam a integrá-los e há um momento em que já não há actores, nem não actores. É tudo a mesma massa”, relembra Marco Martins.

A imersão de quatro anos na realidade dos bairros sociais fez Marco Martins desmontar muitos dos clichés que tinha sobre o assunto.

O Jamaica, no Seixal, é um bairro criado sobre os escombros de um prédio inacabado e que resulta sobretudo de imigração de África. Há uma forte identidade, um forte sentido comunitário. “É um dos sítios mais fantásticos onde filmei até hoje. Impressionou-me a força daquelas pessoas para ultrapassar aquele momento da crise”, resume o realizador, que recorda os avisos que teve para não filmar ali por ser, supostamente, demasiado perigoso.

Já o Bela Vista, em Setúbal, é um bairro que cruza várias etnias e várias culturas. “Tem muitas tensões entre si. A vida é ali muito difícil porque não há um sentimento comunitário. As pessoas foram ali despejadas vindo de diferentes de origens”, lembra. Diz que este ambiente é o que melhor servia de pano de fundo para a história do filme em que Jorge vive inserido numa família racista, com falta de identidade e de sentido de união.

Marco Martins espera que “São Jorge” abra espaço para a discussão sobre a realidade que descreve porque, ao contrário de outro cinema realista, ele não pretende transmitir uma visão de sentido único.

Ainda assim, não sendo uma obra acrítica ou sem ideologia, “São Jorge” espera ter como fim último a função documental. “É um filme extremamente político no sentido em que daqui a uns anos não vai haver assim tantos documentos sobre o período da troika em Portugal, sobretudo nos bairros sociais.”

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  • P/ANT/PORT/PAPAGAIO
    10 mar, 2017 OBSERVANDO PARVOS 10:39
    É impressionante o nível de estupidez que se vê em determinados comentários. Então há um filme que retrata a triste realidade, as perdas dos benefícios sociais, o que é apura da verdade, a perda de dignidade, por se perder emprego e deixar de poder pagar a prestação do carro, prestação da casa, a sobrevivência em causa, ou lá do que for, a falta de dignidade, e vens tu besta de mda falar em bloco de esquerda. Queres encobrir a miséria que tem crescido drásticamente neste país? Ou porque não passas por esta situação, logo os outros não deveriam de passar? Tu não passas de um papagaio da direita, sem pensamento lógico e sem respeito por quem tem perdido a sua dignidade, sem ter culpa, pelos incompetentes dos governantes, falando de todos, eu não venho para aqui defender partidos, nem os ricos. NOJ-TO!
  • António
    10 mar, 2017 Portugal 09:17
    deve ser um filme "patrocinado" pelo bloco de esquerda. E podia chamar-se "A culpa é dos outros - quem levou o País à bancarrota fez bem".

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