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Ana Sofia Carvalho. "Uma coisa é deixar morrer, outra coisa é matar a pessoa"

01 fev, 2017 - 16:48 • Sérgio Costa

A directora do Instituto de Bioética da Universidade Católica sustenta que não há razões para abrir o debate sobre a eutanásia. Em entrevista à Renascença, a especialista defende que importa primeiro dotar o sistema de condições para os doentes terem uma morte digna.

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A directora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa (UCP), Ana Sofia Carvalho, defende que não há razões para abrir o debate sobre a eutanásia.

"Estamos a começar a casa pelo telhado", diz a especialista, argumentando que "não é porque o SNS não consegue dar respostas que temos a legitimidade de acelerar o processo da chamada morte assistida".

Para Ana Sofia Carvalho, a raiz do problema reside precisamente no facto de a morte não ser assistida: "O problema é que a morte não é assistida. O problema é que os nossos doentes, infelizmente, pelas diferentes circunstâncias que o país atravessa, não são assistidos de forma digna."

"Começar o debate pelo fim de vida é começar por uma fase tardia. Muitas vezes, os pedidos para morrer surgem exactamente porque nós não somos capazes de dar dignidade ao processo de vida e ao processo da doença", diz ainda a directora do Instituto de Bioética da UCP.

Ana Sofia Carvalho nota também que o conceito de eutanásia "está muito nebuloso, mesmo no seio da comunidade científica" e aponta uma "confusão" que subsiste entre "aquilo que é deixar morrer - algo que é uma obrigação deontológica de qualquer profissional de saúde quando, em determinadas circunstâncias, deixar morrer é o melhor que se pode fazer - e o matar"

Há razões objectivas para avançar já com este debate sobre a eutanásia em Portugal?

Do meu ponto de vista, não faz sentido nenhum avançar com o debate. O debate, tal como aconteceu com a questão do testamento vital, é um debate para franjas populacionais, ou seja, estes debates são circunscritos a grupos específicos de pessoas, não à sociedade em geral.

Estamos a começar a casa pelo telhado. Todos os dias, em inúmeras circunstâncias, as pessoas que estão doentes e estão em fase terminal são afectadas na sua dignidade cada vez que usufruem do Sistema Nacional de Saúde. É essa preocupação que deve centrar o nosso debate, é essa que deve ser a nossa preocupação. Não é porque o SNS não consegue dar respostas que temos a legitimidade de acelerar o processo da chamada "morte assistida".

O problema é que a morte não é assistida. O problema é que os nossos doentes, infelizmente, pelas diferentes circunstâncias que o país atravessa, não são assistidos de forma digna. Esse é que deve ser o debate e as pessoas que têm responsabilidade na sociedade devem concentrar a sua energia. Há que dar respostas aos problemas que todos, enquanto população, sofremos cada vez que vamos a um hospital, cada vez que estamos doentes, cada vez que temos um doente em casa e não temos solução nem apoio para ele.

Está a dizer que, antes de avançar com este tipo de debate, há que criar condições no SNS para atender todos os que necessitam. Refere-se a uma rede de cuidados paliativos?

Obviamente, mas não é só isso. Paliar é um cuidar de forma ética, que vai para além do que são os cuidados de fim de vida. É de toda a pertinência, mas não é só isso. Um idoso, hoje, vai para o domicílio e pode ter a sorte de ter cuidados domiciliários, mas a maior parte das vezes não tem acesso a esses cuidados.

Hoje em dia, qualquer cidadão que vá à urgência percebe que, muitas vezes, a sua dignidade é ferida pelas circunstâncias que são impostas aos próprios profissionais de saúde - de não terem tempo para falar, de não terem tempo para cuidar, de não terem tempo para ouvir. Muitas vezes, as pessoas têm dores que podiam ser geridas, mesmo que não pudessem ser tratadas.

Há pessoas em Portugal que não são transplantadas porque não podem suportar o custo da medicação ou, muitas vezes, não podem suportar os custos das deslocações aos hospitais e nós vamos centrar a nossa preocupação numa única fase da vida? Porque não olhar para os outros e olhar para todas as pessoas que vão dormir para um centro de saúde para ter uma consulta? Começar o debate pelo fim de vida é começar por uma fase tardia. Muitas vezes, os pedidos para morrer surgem exactamente porque nós não somos capazes de dar dignidade ao processo de vida e ao processo da doença.

Na sua opinião, a sociedade portuguesa está minimamente preparada e interessada neste tipo de discussão?

Eu acho que tem que estar preparada para a discussão. Uma coisa é a discussão, outra coisa é o referendo, outra coisa é uma legislação. Há três circunstâncias que eu acho que são diferentes. A discussão, sempre. É absolutamente saudável, é absolutamente crucial nós envolvermos as pessoas neste tipo de discussão e ouvir e reflectir.

O conceito [da eutanásia] está muito nebuloso, mesmo no seio da comunidade científica, onde existe uma clara confusão entre aquilo que é deixar morrer - algo que é uma obrigação deontológica de qualquer profissional de saúde quando em determinadas circunstâncias o deixar morrer é o melhor que se pode fazer - e o matar. A partir do momento em que existe uma confusão mesmo entre comunidade científica, como é que é possível estarmos a pensar em referendar uma circunstância desta natureza? Parece-me absolutamente imprudente.

Falando desta petição que hoje chega ao parlamento, vou citar aqui algumas das passagens do texto. "A morte assistida é um direito do doente a quem não resta outra alternativa tida pelo próprio como aceitável". A petição lembra que a constituição define a vida como direito inviolável, mas não como dever irrenunciável. Diz ainda que o direito à vida faz parte do património ético da humanidade, mas que o direito a morrer com critérios de dignidade também tem que ser. Isto faz sentido do seu ponto de vista?

Isso toda a gente concorda, é consensual. O que me choca um bocadinho nas palavras que acabou de citar, desde logo, é o problema de a morte, neste momento, não ser, muitas vezes, assistida, ou seja, as pessoas, muitas vezes, querem a eutanásia porque a morte não é assistida de uma forma que lhes permita garantir a sua dignidade. Todas as mortes têm que ser assistidas. Mal estamos se assim não for. Que é imperioso acabar com o sofrimento inútil e sem sentido, também estamos todos de acordo. Agora, a diferença entre a petição e as pessoas que, de alguma forma, pensam de forma diferente é o procedimento para se fazer isso. Para mim, o acabar com o sofrimento, o acabar com o sofrimento inútil e sem sentido passa por investirmos em cuidados de saúde mais dignos, mais humanos, mais virados para aquilo que é a necessidade de cada doente. Não é de cada doença, é de cada doente. A resposta que a petição dá para acabarmos com este sofrimento é acabar com a vida das pessoas. Para mim, é uma contradição.

Os defensores da despenalização da eutanásia dizem que, ao não ser permitida a morte assistida, há um conflito com o direito à liberdade individual. Como encara este argumento?

A verdade é que morte torna-nos mais iguais, mais iguais aos outros, obriga-nos a frequentar hospitais públicos, perdemos a deferência a que muitas vezes estamos habituados perante a comunidade que nos acompanha, ou seja, obriga-nos a viver como vivem os outros. Falar em direitos, em liberdades faz sentido ao longo da vida. Não é só na morte. Não vou falar das questões ligadas à Constituição, porque não tenho competência para isso, mas choca-me que estejam a pensar em melhorar a dignidade das pessoas e a concentrar a dignidade numa única fase da nossa vida que é a fase terminal. Para mim, a dignidade é para ser mantida e é para eu ser assistida toda minha vida, ao longo de todas as fases.

Vamos colocar a hipótese de a eutanásia vir a ser efectivamente despenalizada. Como deve actuar um médico perante um pedido de um doente para a eutanásia?

Isso vai ser da maior complexidade. Saiu uma posição, e não é só este novo bastonário eleito que mostrou a sua posição frontalmente contra a eutanásia. Existe um documento assinado por todos os anteriores bastonários da Ordem dos Médicos no sentido de uma rejeição unânime desta prática ser realmente uma prática deontologicamente aceite.

Mas há alguns clínicos que assinaram a petição que vai hoje vai ao parlamento...

Terá que ser a Ordem a definir critérios deontológicos. Obviamente que tem que haver sempre o direito de objecção de consciência, porque é um direito que decorre da Constituição. Terão que ser definidos parâmetros. Não tenho muito bem a ideia de como é que uma coisa se pode fazer quando existe uma parte da comunidade científica que não aceita...

Mas não vai contra a ética quando o próprio juramento dos médicos...

[interrompe] Não, não. O código deontológico é, essencialmente, um código de deontologia médica embebido num conjunto de princípios éticos e o código deontológico rejeita esta prática. Se ela for aprovada por legislação, certamente a Ordem terá que alterar o seu código deontológico nas circunstâncias da lei. Acredito que, se as pessoas tiverem consciência do que é que nós estamos a falar quando estamos a falar da eutanásia e deixarem de se colocar essas confusões terminológicas entre o "deixar morrer" e o "matar", vai existir na sociedade portuguesa uma rejeição unânime desta questão da dita morte assistida.

Muitos clínicos já debatem a questão da interrupção de tratamentos que poderão ser considerados inúteis. Por vezes, os clínicos suspendem esses tratamentos ainda que daí resulte a morte da pessoa. Qual é a diferença?

A diferença é total. A obstinação terapêutica é má prática médica por razões éticas. Quando nós temos um doente com um prognóstico fechado, um doente com um problema oncológico metastisado, estar a investir numa reanimação, estar a investir em certas práticas é considerado má prática médica. Isso é completamente assente e é uma coisa absolutamente consensual do ponto de vista dos "guide lines" médicos nacionais e internacionais. Outra coisa é matar a pessoa. Uma coisa é deixar morrer, que é um acto digno, um acto da maior coragem moral, porque, evidentemente, não é fácil para nenhum profissional de saúde deixar morrer, que é deixar a pessoa morrer com todos os cuidados, com todo o conforto e com toda a dignidade, mas suspendendo os tratamentos que são considerados fúteis. Outra circunstância é nós percebermos que aquela pessoa quer morrer e objectivamente matamo-la, porque a eutanásia é alguém que pede para morrer e alguém que aceita o pedido dessa pessoa para morrer. Portanto, são coisas completamente diferentes e esta confusão é perigosíssima. Introduzir neste momento um referendo que possa ter génese em dificuldades conceptuais desta natureza é irresponsável.

Sei que já alertou para perigos do efeito rampa deslizante, ou seja, de a eutanásia ser pedida por doentes que estarão, imaginemos, num estado de depressão. Que exemplos tem destes, em países em que a eutanásia já está legalizada?

Infelizmente, não têm faltado casos. Por exemplo, na Bélgica, que tem sido o país onde os casos mais paradigmáticos têm ocorrido. Não só doentes com problemas como depressões como também em crianças.

Nas circunstâncias em que estamos, em que não há camas, em que não há tempo, temos os sistemas nacionais de saúde com orçamentos reduzidíssimos, a questão de matar com objectivo económico de sustentabilidade não é despicienda.

Os idosos, as pessoas que estão em fim de vida são, obviamente, recursos muito caros para o SNS. Isto não pode deixar de ser visto como um potencial problema quando se está a debater questões desta sensibilidade.

Foi consultada por algum deputado ou por algum subscritor da petição que hoje chega ao parlamento?

Não. Tive oportunidade de estar em debates académico-científicos com algumas das pessoas que subscreveram a petição. Sei que existe preocupação da parte de alguns subscritores de ter atenção às pessoas que pensam e que partilham uma posição diferente e que são especialistas nesta matéria.

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