15 out, 2016 - 12:00 • Filipe d'Avillez
Quando, em 1993, a presidente da Junta do Pinhão, no Douro, ofereceu a Júlia Lourenço uma caixinha contendo o terço que tinha pertencido ao seu pai, mal sabia que estava a dar início a uma colecção que actualmente contém mais de um milhar de terços, rosários e contas de oração das mais variadas tradições religiosas.
“Na altura é óbvio que não queria aceitar este presente, porque era uma jóia de família, e não fazia sentido. Mas a filha dele insistiu e eu senti-me obrigada a aceitar. A partir do momento em que faço essa anuência ao que ela me está a propor, ficar eu com aquela jóia, achei que tinha de fazer alguma coisa com isso”, explica Júlia Lourenço.
Foi precisamente aí que nasceu a paixão de Júlia Lourenço, professora universitária. A colecção cresceu de tal forma que tem sido utilizada em diversas exposições, a mais recente das quais está patente até 30 de Outubro simultaneamente na Torre do Museu Pio XII e no Centro Interpretativo das Memórias da Santa Casa da Misericórdia de Braga.
Começou por procurar terços do mesmo estilo daquele, em filigrana de prata, mas rapidamente começou a variar e quando amigos e conhecidos souberam do seu interesse começaram a chegar as ofertas, algumas muito pessoais. “Tenho uma caixa de osso de rena, que tem mais de 50 anos. Foi dada a uma amiga minha por uma madrinha que viajava imenso, como terço de primeira comunhão, e nunca vi nada, nem nada que se parecesse. Ela disse que me queria oferecer e eu disse que não, que era o terço dela da primeira comunhão, oferecido pela madrinha, nem pensar, mas ela disse que fazia questão de oferecer. Quando comecei a ver melhor vi que a caixa era de rena mas que o terço podia não ser da Finlândia. Mas já não era possível confirmar, porque a madrinha já tinha Alzheimer.”
Viajar muito, por razões profissionais, abriu outras portas. “Acho que foi quando visitei o Nepal que me apercebi que também existem belíssimos budistas. E a partir daí alarguei a colecção a outras religiões.”
Na exposição é possível ver contas de rezar ortodoxas, hindus e muçulmanas. “Houve um casal turco em que ele me ofereceu as da mãe, e ainda colocou mais alguns, oferta dele”, conta.
Uma das peças mais bonitas, afirma, é um artigo budista, comprado na China. “Tem um trabalho que imita as lacas do século XIX, com umas figuras humanas, que pensa-se que são monges, e deve ter também o mosteiro onde foi feito, mas esta história está completamente perdida. Comprei-o em Pequim, quando o comprei achei logo que era um terço, paguei, como faço normalmente, e depois é que perguntei sobre a história, para isso não influir no negócio. Mas ela não me conseguiu dizer muito, só que era uma peça boa e antiga.”
“Depois, quando cheguei a Portugal as pessoas começaram a achar que era tão perfeito que era provavelmente plástico, e realmente, nos exames que fizemos na universidade, acusava acrílico, porque tinha verniz. Mas depois teve de ir a nível celular e percebeu-se que é uma semente.”
A forma de rezar com estes contas varia. Os muçulmanos recitam os atributos de Deus, os budistas usam-nas sobretudo para meditar e os ortodoxos rezam a oração de Jesus, que tem variantes mas pode ser tão simples como a repetição das palavras “Jesus, Misericórdia”.
Mas há algo em comum. “Não sou uma especialista de teologia, sou de engenharia, e nem estou muito preocupada. Vou sentindo as coisas e vou tentando envolver-me. Mas há artigos, e eu tenho-os, sobre os sons que se produzem em várias religiões, e os gestos que se fazem com as mãos, são relativamente parecidos. Os sons são sons que apelam à meditação e à transcendência, nas várias religiões”, explica Júlia Lourenço.
O anel vai para a colecção, ficam os dedos
No meio de tantas contas, afinal de contas, com que contas reza a coleccionadora? A resposta não deixa de surpreender. Reza, sim, mas com os dedos.
“Não rezo como gostaria de rezar e como conseguia rezar quando era adolescente. Eu tive um ano na minha adolescência em que rezava todas as noites o terço, e agora não consigo fazer isso. Mas rezo no carro, que é algo que me apercebi agora, que há muitas pessoas que fazem”, diz.
“Tenho um anel que é uma dezena, que foi dado por uma prima minha e que é especial porque tem um design moderno, e uso-o algumas vezes. Mas sou uma pessoa destravada e tenho de ter cuidado, por isso acabo por preferir usar as mãos, vou no carro e conto pelas mãos e pelos dedos, porque é a forma que tenho de fazer as coisas, porque já não tenho um terço meu, estão todos na exposição.”
“Tenho ainda a dezena, isso sim, que enfio no dedo em ocasiões especiais. Costumava acompanhar-me ao estrangeiro, mas agora tenho medo de a perder, portanto raramente o levo. Mas agora já me habituei a contar pelos dedos, esse anel, qualquer dia também há-de ir para a colecção”, admite.