29 fev, 2016 - 14:52 • João Carlos Malta , Joana Bourgard
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Olha-se para um lado, e ali está a sede do histórico clube desportivo Oriental, cujo salão promete bailes para todas as idades. Do outro lado, vemos o restaurante do chef Chakall, no qual vamos descobrir que, além da comida, há lugar para o milonga e para o jazz. Em frente, é impossível não olhar para um dos poucos urinóis públicos que se mantêm em Lisboa. Difícil é também não reparar na tasca, bem à moda antiga, no rés-do-chão do prédio da extinta fábrica Abel Pereira da Fonseca (de onde saía vinho rumo ao Ultramar), onde agora funciona, na parte superior, um novíssimo espaço de “coworking”.
A Praça David Leandro da Silva, bem no centro de Marvila Velha, é um mergulho profundo na contradição entre o novo e o antigo, entre a tradição e a inovação.
O som do fado, vindo de um rádio a pilhas que o jardineiro de serviço não desliga um segundo, é a banda sonora do local. O pequeno jardim e os bancos que o preenchem são uma espécie de centro de dia ao ar livre para os mais velhos que ali vivem.
Alzira Gomes, de 76 anos, sentada com as amigas, passa em revista as últimas novidades da vizinhança. Sempre viveu ali. A mudança não parou. No entanto, diz, “sempre no sentido errado”. Em pouco mais de dez minutos de conversa, são cinco as vezes em que evoca a tragédia: “Tudo tem acabado aqui”; “Isto agora está um sítio muito desprezado”; “Acabou tudo aqui”; “Não há nada”; “Não olham para nós.”
Isto é o presente, porque o passado, como referiu, foi marcado pelas danças de menina no Oriental, pelas festas que enchiam a freguesia e pelo basquetebol que a fazia pular de felicidade. Agora ficou o vazio. Alzira encaminha-se para a tasca de Marcelino, na antiga Abel Pereira da Fonseca, pois é lá que “se ouvem as melhores histórias dos tempos idos".
O menino que não chora… e que vai à guerra
Ali tudo é como antigamente. As mesas têm toalhas de plástico com quadrados vermelhos e as cadeiras são cobertas com napa castanha. No entanto, nas paredes há um toque de ironia. Lá está pregado o “menino que não chora”, uma subversão do famoso quadro do "menino da lágrima", e também a montagem de imagens feita por um amigo que pede “Keep the rich happy”. No meio, a foto do Rei Eusébio.
Marcelino não quer contar coisas de outrora. É o presente que lhe dói, porque ninguém se lembra do seu passado. Está ali desde 1965. Mais de meio século. Ficou quando todos se foram embora. Agora que outros chegam, querem que saia.
“Mantivemos estas instalações para que não estivessem abandonadas. Hoje, só há aqui outros porque nós cá estivemos”, comenta. É assim que introduz o tema que lhe ocupa os dias: o conflito com os novos responsáveis pelo arrendamento de espaços na antiga fábrica.
A prisão do “rei do vinho” e dono do edifício, Alfredo Cruz, de 83 anos, por fraude na obtenção de fundos comunitários, é o rastilho desta história. A família de Alfredo decidiu que havia ali 18 mil metros quadrados para arrendar. Contudo, Marcelino precisava de 150 mil euros para fazer as obras e ficar responsável pelo empreendimento. Acabou por desistir porque o valor era muito alto. Nessa altura, a arquitecta Maria Manuel Alvarez e a filha chegam com um projecto em mente, o LX Work Hub.
Começam, então, os problemas para Marcelino, que sente que o querem “dali para fora”. Até já lhe cortaram a água e a luz. Todavia, este homem de 64 anos deixa uma promessa, que é também uma declaração de guerra: “Podem fechar o estabelecimento, com todos os prejuízos que terei, mas podem ter a certeza de que não saio daqui.”
Maria Manuel Alvarez garante que nada de mal se passa. Questionada se há algum litígio, responde: “Não, tirando o facto de cheirar a comida cá em cima. Há ali poucas condições de exaustão. Mas eles cooperam connosco quando é preciso ajuda para alguma coisa.”
Marcelino é que não consegue calar a revolta: “É de lamentar que pessoas que não têm nada a ver com o bairro estejam a fazer uma guerra com quem está aqui desde 21 de Maio de 1965.” Anabela Gomes, que trabalha ali há 36 anos, promete ser soldado nesta batalha que já é judicial. “Enquanto puder, fico. Não querem que eu cá esteja. A senhora que arrendou isto não nos quer. Tivemos uma ordem de despejo porque não nos querem neste espaço”, refere, indignada.
O sociólogo João Pedro Nunes, professor na Universidade Nova de Lisboa e com trabalho de campo realizado em Marvila, define estes choques. “Haverá tensões entre os que são do lugar e vão reivindicar para si o estatuto de ‘antiguidade’ – muitas vezes pessoas com poucos recursos financeiros e sociais – e os que chegam e trazem novos negócios. Há uma conflitualidade económica e urbana que agora ainda é latente, mas que depois será mais efectiva”, defende.
Nat King Cole ou Kátia Guerreiro
Sobe-se as escadas até à recepção do LX Work Hub e a transformação é imediata. A guitarra portuguesa do fado de a “Minha Lisboa de Mim”, de Kátia Guerreiro, é substituída pelo jazz de Nat King Cole. O ambiente é sofisticado, mas sem luxos. A transição do passado para a modernidade é feita com a preservação da estrutura e com a introdução da linha minimalista do mobiliário contemporâneo.
Há menos de dois anos, a arquitecta Maria Manuel lançou-se no desafio de ficar responsável pelo arrendamento dos espaços da antiga fábrica de vinhos e por dinamizar um espaço próprio de “coworking”. Ali vivem agora mais de 20 novos negócios. As indústrias criativas – arquitectos, engenheiros, gráficos, criadores de sapatos – marcam o tom do que lá se faz.
A intervenção, adianta a arquitecta, foi sobretudo um trabalho de limpeza, mais do que adicionar ou construir. Removeu-se a sujidade dos tectos e das paredes e trouxe-se “a verdade dos materiais para a vista, mesmo quando eles não são muito nobres”. Neste processo, foram mais de 13 contentores de lixo que dali saíram.
A escolha por Marvila define-se em três vectores: o económico, porque “eram as rendas mais baratas de Lisboa”; o geográfico, uma vez que está perto do rio, fica “entre o centro e o Parque das Nações” e tem estacionamento fácil; e de carisma, tal era “a identidade e o charme” do local.
O LX Work Hub é exemplo de uma vaga que se está a tornar numa tendência na zona ribeirinha. Os lugares antigos que um dia foram fábricas – onde os operários fabris ganhavam a vida a fazer sabões, cigarros, fósforos ou material de guerra – são agora limpos, esventrados das máquinas e reequipados.
Gigantes na área como dantes, pigmeus agora no emprego
As áreas gigantescas mantêm-se, mas lá dentro já não trabalham milhares como noutros tempos. Em média, os novos espaços empregam quase sempre menos de dez pessoas (há quase 17% de taxa de desemprego em Marvila, bem acima dos 13% da média da capital). E os negócios ganham formas múltiplas: desde o restaurante ao ginásio de “fitness”, à associação cultural, às galerias de arte, aos videojogos, ao ginásio de escalada ou até a uma academia de parkour.
Este desporto – que na versão mais espectacular nos leva aos saltos de um telhado para outro, mas que na base não é mais do que a passagem do ponto A para o B usando os obstáculos para o fazer da forma mais eficaz – tem precisamente em Marvila o primeiro espaço em Portugal dedicado à prática “indoor”. Uma ideia de Nuno, 22 anos, e de mais três sócios. Em menos de dois meses, o Spot Real já tem 40 inscritos.
“Não estávamos à espera de tanta adesão. Isto tem ganho muita vida”, relata o jovem, que acredita que o parkour é uma prática extensível a todas idades, apesar de o aluno mais velho até agora ter 40 anos.
Os portões abrem-se e, por detrás, esconde-se um pavilhão enorme, onde se multiplicam as barras paralelas, os colchões, os obstáculos de madeira. Contudo, o que mais cativa são as piscinas de espuma onde os novatos, mas também os mais treinados, podem fazer acrobacias. Entre mortais e outras piruetas, João pára um pouco. Aos 28 anos voltou a fazer parkour.
“Esta é uma forma segura de praticar. Posso atirar-me para esta piscina de espuma sem perigo, sem temer nada”, sustenta. E alerta os mais destemidos: “Os básicos treinam-se ao nível do chão. Fazer estes movimentos mais altos não é uma necessidade. Fica bem em vídeo, mas não representa o que se faz no dia-a-dia.”
Na porta ao lado, abriu há poucos dias o El Bulo, o novo restaurante do conhecido chef Chakall. A receber os clientes está a mulher, Tamara Castelo, filha do actor Virgílio Castelo, e sócia do cozinheiro neste projecto. A dimensão daquele pavilhão foi decisiva para poder alojar a empresa de “catering” que detinham na Lourinhã, um restaurante, uma loja e ainda um espaço para dançar jazz e milonga. Mais, para os adeptos de futebol, às terças-feiras, a Liga dos Campeões sobe aos ecrãs e o prego desce aos pratos.
Tamara não podia estar mais contente com este desafio. “Adoro Marvila, é a melhor zona de Lisboa. Está entre a Expo e o Cais do Sodré, não há trânsito e não se passa nada. Na cidade não há mais nada assim, com acessos facílimos e estacionamento em todo o lado. Estamos a ter uma aceitação óptima. Estamos felizes”, destaca.
Novo e velho, lado a lado
A menos de um quilómetro do El Bulo situa-se a Rua Capitão Leitão, porta com porta há duas cervejarias. A novíssima Dois Corvos, onde a cerveja artesanal é o “ex libris”, e a tradicional Floresta Oriental. O antigo e o novo voltam a cruzar-se.
“Se tens inveja do meu viver, trabalha malandro”, “Se vens por bem, podes entrar”. Na Floresta Oriental, estas “máximas” nas plaquinhas decorativas de azulejo não deixam espaço para dúvidas. Ali, a tradição ainda é o que era, ou não fosse a dona, Maria de Fátima, natural do Minho, região onde estas coisas se levam muito a sério. Saiu há muitos anos de Arcos de Valdevez, todavia, a terra nunca saiu dela. A cervejaria/restaurante é exemplo disso.
Está em Marvila há muitas décadas, porém, a nostalgia do passado não lhe passa. “Agora já mexe mais um bocadinho. Um bocadinho... Nada daquilo que era. Dantes não havia nada fechado, estava tudo aberto, tudo a trabalhar. As crianças até brincavam na rua, agora não porque às dez da noite está tudo fechado”, lamenta.
Ainda assim, enfatiza: “Agora parece que está a querer mexer.” Ao lado mexeu. A Dois Corvos trouxe os amantes da cerveja artesanal para o bairro. As lousas, o pinho claro das cadeiras, os candeeiros suspensos, o alumínio dos fermentadores, tudo remete para uma nova modernidade.
Em 2014, Susana e o marido, Scott, procuravam um sítio onde pudessem simultaneamente produzir e vender ao público a sua cerveja. Marvila foi uma opção natural. “É uma zona central sem ser no centro de Lisboa”, adianta Susana Cascais.
Do “deserto” que encontraram ao chegar ali pouco sobra. O dinamismo voltou. “Havia muitos armazéns abandonados. O preço era justo e esse factor contribuiu para esta revitalização. No último ano, esta parte de Lisboa está a ser ocupada pelas indústrias criativas. Há uma mistura muito interessante, numa zona heterogénea, mas de muita produção. Sempre nos identificamos com o carácter do bairro. É quase uma surpresa o crescimento que temos visto em tão pouco tempo”, sintetiza Susana.
E acrescenta mesmo: “Marvila é o último sítio por descobrir em Lisboa, no resto da cidade já está tudo muito explorado e desenvolvido.” Prova disso é que nas imediações há negócios de tudo um pouco.
Uma utopia ao som de Hendrix
Um dos exemplos é a galeria Baginski, mesmo em frente. Lá dentro, o artista plástico luso-angolano Francisco Vidal está a fazer uma composição performativa. A obra que todos podem ver a crescer até 19 de Março tem o nome de “Utopia Lunda Experience”. O som psicadélico do mítico Jimi Hendrix marca o ritmo do traço de Francisco.
O responsável pela produção da galeria, Jorge Catarino, revela como é que Marvila e artes performativas passaram a rimar. “Não fica tão longe do centro, são dez minutos de autocarro. E as pessoas que vêm a este tipo de espaços, vêm realmente a estes espaços, não tropeçam nas galerias, deslocam-se aqui”, reconhece.
Em 2009, foram os primeiros a chegar. No entanto, em 2016 já há uma pequena movida cultural naquela rua. “Agora já existem mais duas galerias, uma comercial e outra que é gerida por artistas. E ainda vai abrir outra. Tentamos, sempre que possível, articular os eventos e as inaugurações”, esclarece Catarino. A dimensão do espaço é mais uma vez referida como uma mais-valia evidente. “Aqui podemos apresentar toda a tipologia de expressão artística. Não temos limitações nesse sentido”, reconhece.
A “nova” Marvila começa a aparecer, mas há ainda muitos espaços por recuperar, à espera de saírem do coma a que foram condenados. É toda uma cidade “ainda invisível”, que vive a transição entre o passado de perda de vitalidade demográfica e o dinamismo económico. Uma cidade onde ainda permanecem os lugares esquecidos de resistentes – como a velha barbearia, o velho alfaiate, a velha mercearia que ainda abastece a população local – e onde se verifica uma invasão por novos participantes na economia da cidade, normalmente ligados à cultura.
Por todo o lado se começa a dizer que quem chegou até agora ainda apanhou preços baixos. Esse período estará a terminar. O motivo? Um “boom” imobiliário que, mal os entraves burocráticos permitam, deverá fazer subir em flecha os preços. Marvila, que durante décadas ficou no meio do desenvolvimento do Parque das Nações e de uma Baixa em pleno processo de explosão turística, está cada vez mais debaixo do radar dos promotores imobiliários.Os embriões de novos projectos estão a ser incubados em Marvila.
Será que esta zona vai tornar-se num novo centro de desenvolvimento de Lisboa?