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Entrevista a Rui Pena Pires

“As regiões mais ultraperiféricas de Portugal estão à volta de Lisboa”

05 ago, 2019 - 07:33 • João Pedro Barros

Sociólogo e membro da Comissão permanente do PS, Rui Pena Pires defende quotas no acesso ao ensino superior, mas em vez de critérios étnico-raciais gostava de as ver aplicadas em escolas e territórios socialmente desfavorecidos. Para além disso, acha que as vagas no setor público “não são suficientes”.

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Foi numa entrevista em que não punha de parte a adoção de quotas étnico-raciais que Rui Pena Pires desencadeou, involuntariamente, o polémico artigo de opinião de Maria Fátima Bonifácio no “Público” sobre a integração de minorias étnicas. Quase um mês depois, em entrevista à Renascença, esclarece que não só foi mal interpretado pela historiadora como, por arrasto, por grande parte da opinião pública.

O sociólogo, que contribuiu para o programa eleitoral do Partido Socialista, considera que não se pode esperar que o “desenvolvimento económico e social do país resolva o problema” da desigualdade e, no que toca ao acesso ao ensino superior, há "bons exemplos" como os de França: algumas universidades já decidiram que os melhores alunos de cada escola, independentemente das notas, têm direito a entrar. Esta opção resolveria ainda eventuais problemas legais e constitucionais que uma solução de discriminação positiva baseada na etnia poderia desencadear.

O debate sobre as quotas étnico-raciais fez correr muita tinta, mas elas não abrem nenhum precedente porque já há vários tipos de contingentes instituídos, nomeadamente no acesso ao ensino superior. É correto dizer isto?
Sim, o mérito é o critério de acesso geral, mas existem não só regimes especiais como quotas para diferentes tipos de pessoas ou situações de pessoas. Existem quotas no sentido pleno do termo para alunos oriundos dos Açores e Madeira, definidas num tempo em que estas regiões não tinham ainda universidade mas que se mantiveram até hoje. Havia ou há quotas para alunos que vinham de Macau, alunos da emigração, emigrados e filhos de pais emigrados, para pessoas com deficiência, dos mais variados tipos...

Mas não há quotas étnico-raciais.
E deve haver no acesso ao ensino superior? Sobre isso tenho um pouco mais de dúvidas. Não é por razões étnicas ou raciais que há pessoas que não entram no ensino superior. Posso argumentar que estando imigrado é-me mais difícil entrar no ensino superior em Portugal, mas não posso argumentar que, devido a uma origem étnico-racial, é-me mais difícil entrar. O que faz com que haja uma baixa representação de alunos com origem em pertenças étnico-raciais minoritárias em Portugal é o facto de haver uma coincidência forte entre desigualdade sócio-económica e a discriminação.

A discriminação e a desigualdade são coisas diferentes. Não há neste momento em Portugal discriminação com base na cor ou na etnia. Nos EUA, nos anos 50 e 60 e antes, as pessoas eram proibidas de entrar na universidade por ter determinada cor de pele. Não era só racismo, as pessoas não se lembram mas os judeus não podiam aceder a boa parte das universidades antes da Segunda Guerra Mundial. Não temos este problema, temos outro: quando há uma sobreposição muito grande entre desigualdade socioeconómica e racial, o efeito da desigualdade afeta mais pessoas com certas origens étnico-raciais do que outras.

"Não é bom contribuirmos para a cristalização dessas categorias, em função da cor da pele, que só foram inventadas para discriminar"

E como combater isso?
A meu ver, devíamos ter quotas no acesso ao ensino superior, mas de base territorial, definidas em função da desigualdade sócio-económica. Havendo essa coincidência, elas teriam mais efeitos sobre pessoas oriundas de minorias étnico-raciais. Tenho alguma relutância em definir que elas devam ter o critério étnico como base, por razões simples: não é bom contribuirmos para a cristalização dessas categorias, em função da cor da pele, que só foram inventadas para discriminar. Não há categorias que tenham sido inventadas para outra coisa.

Na prática, o combate ao racismo e discriminação deveria implicar um enfraquecimento desta lógica de categorizar pessoas pela cor da pele ou origem religiosa, étnica, o que for. No entanto, não podemos ignorar os efeitos. Quando há discriminação somada à desigualdade devemos tratá-los, mas no plano em que eles se manifestam, que é o da desigualdade.

Este princípio é o mesmo que o levou a defender a não inclusão nos censos de uma pergunta sobre a etnia, no grupo de trabalho que estudou o assunto?
Sim, defendi que não se devia colocar essa pergunta. Defendo que se coloquem ainda menos, a pergunta da religião já devia ter desaparecido há muito. É verdade que perdemos alguma informação quando excluímos estas perguntas, mas ter toda a informação reunida e compilada pelo Estado para poder agir é o princípio do totalitarismo, não de uma sociedade democrática. Por exemplo, não há estatísticas sobre a emigração de Portugal e por boas razões: desde 1974 que as pessoas deixaram de ter de pedir autorização para sair do país ou de se registarem nesse momento. Prevaleceu o princípio da liberdade total e acho essa liberdade demasiado importante para agora ter de criar um regime que a ponha em causa. Tem de se chegar lá de forma indireta, a partir do registo dos portugueses que entram nos países de destino.

Podemos chegar à informação sobre etnias através de outros inquéritos?
Dá mais trabalho, não é tão rigoroso, mas não tem os efeitos perversos que tinha o regime antes do 25 de abril. Antes de 1974, os censos das colónias tinham estatísticas raciais e não era certamente por boas razões. O que existe pode ser usado para o bem e para o mal. A meu ver, tudo o que reforce as categorias étnico-raciais em vez de as enfraquecer deve ser posto de lado, desde que existam alternativas.

"Discriminação territorial será “fácil” de aplicar em Portugal"

Voltando às quotas, defende que a discriminação seja feita, por exemplo, com base em escolas instaladas em territórios com problemas sociais identificados?

Em França já houve universidades que decidiram que os melhores alunos de cada escola, independentemente das notas, tinham direito a entrar. São bons exemplos, que devíamos seguir. Também houve nos EUA alguns estados que definiram quotas por regiões. O Ministério da Educação tem definidos os territórios educativos especiais, que designam regiões e escolas que abrangem populações mais discriminadas. Provavelmente, deveríamos ter quotas para estas escolas. Teria os mesmos efeitos sem ter o risco da evocação de critérios étnico-raciais.

Podia ser aplicado em Portugal?
E era fácil! A definição de quotas étnico-raciais levaria a discussões sobre legalidade, constitucionalidade, tudo e mais alguma coisa. Aliás, já temos quotas de base regional para Açores e Madeira. Dir-me-ão: essas são regiões ultraperiféricas. Se calhar, as regiões mais ultraperiféricas que há em Portugal não estão em Bragança, nem nas ilhas, estão à volta de Lisboa. Seriam essas as regiões que mais mereceriam quotas para favorecer o acesso ao ensino superior.

O princípio fundador continuaria a ser a inclusão?
Exatamente. Não temos política nenhuma que não tenha efeitos positivos e negativos, temos de fazer um balanço e escolher. Quanto mais fácil for aceitar aquilo que propomos, melhor. Este tipo de quotas não encontra tanta resistência social.

Quem leu o polémico artigo de Maria Fátima Bonifácio no “Público”, que citava declarações suas, terá ficado com a ideia de que defendia com convicção quotas étnico-raciais. Afinal está até longe dessa posição.
Eu sei, mas não tenho culpa que a Maria Fátima Bonifácio só tenha lido o meu artigo por alto e que depois toda a gente tenha referido o que ela disse que eu disse, e não o que eu disse. São contingências de quem se pronuncia no espaço público, mas o mais importante depois do artigo era a crítica ao artigo e não que eu fosse produzir ruído discutindo o que disse ou não disse.

Acho que deve haver mecanismos de discriminação positiva, que devemos alargar o acesso ao ensino superior – o que Maria Fátima Bonifácio também não acha – e que deveríamos ter quotas mas tendo o cuidado de que tenha o mínimo de efeitos negativos associados. Acho que a boa maneira de o fazer é usando quotas de base territorial. Relativamente ao alargamento, não podemos ter um sistema público para a elite, isso os privados que façam. Os sistemas públicos devem ser tendencialmente universais. Há muitas pessoas com capacidade que têm de ir para entidades privadas, e não são os mais ricos, porque as vagas não são suficientes.

"Não tenho culpa que a Maria Fátima Bonifácio só tenha lido o meu artigo por alto e que depois toda a gente tenha referido o que ela disse que eu disse"

Estas quotas territoriais evitariam estigmas em torno de certos etnias ou grupos sociais?
Nos EUA houve medidas de segregacionismo e depois de combate a esse segregacionismo. Esse problema não existe em Portugal, não vale a pena comparar. Mas existe um problema grave, que é a sobreposição entre desigualdade racial e social e económica, o que tende a dar credibilidade a teses racistas. As pessoas tendem a olhar para esta desigualdade sem se perguntarem sobre a sua origem e a pensar que, se as pessoas estão em posições menos favoráveis socialmente, é porque se calhar não o merecem. E se têm aquelas características raciais ou étnicas é porque essas características demonstram que têm menos capacidade. Devemos arranjar formas não de esperar calmamente que o desenvolvimento económico e social do país resolva o problema, mas de acelerar essa mudança de perceção.

O que justifica a imposição de quotas, em qualquer âmbito?

Basicamente, dois objetivos. O primeiro é acelerar processos de mudança que envolvem a superação de discriminações que no passado foram muito fortes e que são muitas vezes lentas de vencer, porque nalguns casos exigem que as pessoas estejam dentro do sistema. Estando fora, é quase impossível entrar. A segunda razão é porque quem está dentro do sistema não quer sair, perder o lugar. A única forma de forçar essa mudança é instituir quotas.

Há casos paradigmáticos, como na Noruega, o primeiro país a colocar a questão das quotas para as mulheres em cargos de decisão. Em 2003, eram 3% nos conselhos de administração, em 2012 já eram 42%. Isto seria impossível organicamente?
Exatamente. O facto de só haver homens nos conselhos de administração faz com que os homens recrutem homens e que as redes de acesso aos lugares de chefia sejam masculinas. Não se chega lá através de concursos públicos, gerais e universais. Chega-se porque se está dentro e estando dentro é possível dar um passo mais na hierarquia da empresa. O problema é que se as mulheres, por processos que vieram do passado, estavam fora, não é automaticamente que passam a estar dentro. Para isso é preciso usar quotas.

Os escandinavos têm uma particularidade em relação às quotas com que simpatizo bastante. Não só as usam com cuidado como todas têm um prazo de validade. Ao fim de 10, 15 ou 20 anos são reavaliadas e, se não houver consenso sobre a sua renovação, caducam. Não são mecanismos eternos de acesso, são mecanismos extraordinários para superar obstáculos e depois devemos deixar que funcionem com menos exceções.

"Quem está dentro do sistema não quer sair, perder o lugar. A única forma de forçar essa mudança é instituir quotas"

Voltando à questão anterior, é fácil definir termos como etnia e raça? Quais são as linhas que existem?
Raças só existem se aceitarmos que as pessoas, por terem caraterísticas físicas diferentes, em particular de cor da pele, têm por isso culturas diferentes. Isso não é verdade, muitas vezes as pessoas têm culturas e caraterísticas diferentes porque vivem em contextos distintos. Por isso é que este é um problema complexo, sempre que aceito usar caraterísticas rácicas para institucionalizar seja que tipo de solução for estou a dizer que essas características fazem sentido. E que faz sentido pensar que as pessoas são diferentes por causa da cor de pele.

Aquilo a que se chama etnia é definida como sendo um grupo social composto por pessoas que partilham uma mesma narrativa identitária. Nesse sentido, o nacionalismo é um tipo particular de etnicidade. Valorizar as pertenças étnicas é valorizar o que as pessoas escolhem ser e herdaram das pertenças a grupos. Já há formas de pertença racial que se confundem com pertença étnica. Neste momento temos uma narrativa identitária africana, na Europa e nos EUA, construída a partir de alguns momentos chave da História, como a escravatura. A partir do momento em que as pessoas se sentem discriminadas e reagem confrontando a discriminação, acabam por afirmar-se positivamente através de uma história desse grupo.

A polémica em torno do artigo de Maria Fátima Bonifácio e a inclusão de algumas medidas no programa eleitoral do PS tiveram pelo menos o mérito de pôr as pessoas a pensar no tema?
O debate é sempre positivo, tal como o facto de os partidos darem mais importância aos problemas da discriminação étnico-racial . Em boa parte isso já acontecia antes. Agora o artigo é mau, só consigo pôr um ponto final a seguir. Não consigo ver nenhum efeito positivo naquele artigo, o que é uma coisa diferente de se discutir se ela tinha direito de o publicar. Acho que deve publicar o que quiser e depois arcar com consequências críticas do que escreve.
No entanto, não acho necessário passar por discursos como aquele para dar atenção a estas questões. O discurso nem sequer é novo, creio que em abril de 2006, num “Prós e Contras” [programa de debate da RTP], Maria Fátima Bonifácio disse algo como “a Europa ou continua a ser branca ou deixará de ser Europa”. Introduz um tipo de discurso sem vergonha, descontrolado, agressivo, num tema que não pode ser tratado assim. A vergonha é um mecanismo fundamental de contenção.

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