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Reportagem Renascença

A associação que se fez à estrada no Alentejo para tratar as feridas do pé e da alma

11 jul, 2019 - 12:35 • Rosário Silva

Até 2020, uma equipa ligada ao projeto PEDIAP vai percorrer três concelhos do Alentejo para prevenir e controlar a diabetes e promover a diminuição de feridas e amputações. Para cumprir a missão, os enfermeiros contam com o empenho e resiliência de locais como Teotónio Pintor.

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Nos últimos 40 anos, Cândido Gomes foi forçado a adaptar a sua vida à diabetes. Entre consultas frequentes, medicamentos e cuidados com a alimentação foi-se “aguentando”, fazendo uma vida “praticamente normal”.

Contudo, uma pancada na perna e uma ferida mudaram-lhe o percurso. Inúmeros tratamentos e meses de internamento não chegaram para lhe salvar o membro inferior esquerdo. Amputado aos 77 anos, vive há seis meses no lar da Casa do Povo de Vendas Novas, na Afeiteira.

“Os profissionais estão a ajudar muito”, confessa à Renascença. “Já me arranjaram um processo de sair da cadeira para a cama e da cama para a cadeira, também já visto a camisa e vou fazendo algumas coisas. Não é o que eu queria, mas é o que pode ser”, partilha emocionado.

Mais velho, Jaime Badalo convive com a diabetes há duas décadas. Aos 80 anos, albergado no mesmo lar, recebeu há pouco tempo e pela primeira vez o tratamento do pé diabético pela Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP). “Acho bem que nos façam exames para saber como estamos”, diz enquanto é tratado.

Além da diabetes, um AVC paralisou-lhe o lado direito do corpo, condicionando largamente a sua vida, e é por isso que recebe com agrado esta visita do “simpático senhor enfermeiro”, a quem pede “conselhos" e que o trate.

Prevenção, sensibilização e formação

Cândido e Jaime são dois dos muitos idosos institucionalizados com diabetes, que foram rastreados e que agora estão a receber tratamento do pé diabético.

“Neste momento, estamos em 18 instituições de três concelhos do Alentejo, rastreámos 302 pessoas e, para tratamento, foram identificadas com o grau de médio e alto risco cerca de 200 pessoas”, revela à Renascença Catarina Mouronho.

A gestora deste projeto de intervenção no pé diabético explica que a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) celebrou protocolos de colaboração com os municípios de Alcácer do Sal, Montemor-o-Novo e Vendas Novas, para a implementação do projeto PEDIAP – Intervenção em Lares e Centros de Dia no Pé Diabético.

“É um projeto cofinanciado pela Direção Geral da Saúde (DGS), no âmbito do Programa Nacional da Diabetes, com incidência nestes três concelhos e que se vai desenvolver, por um ano, até fevereiro de 2020”, adianta Catarina Mouronho.

O objetivo é “intervir na prevenção e controlo da diabetes, em lares, centros de dia, mas também ao domicílio, para promover a diminuição de feridas e amputações e, por outro lado, para sensibilizamos e darmos formação aos cuidadores formais e informais”, acrescenta.

Depois de contactadas várias entidades da região, nomeadamente Câmaras Municipais e a Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo, foram apurados os concelhos que merecem maior preocupação nesta área específica, permitindo “melhorar um pouco a condição de saúde destas pessoas”.

“Estou muito satisfeita”, admite a gestora do projeto. "Denoto um sorriso nos lábios de quem estamos a intervir. Mesmo sabendo que a diabetes não tem cura, estas complicações crónicas, como o pé diabético, podem ser prevenidas e é esse trabalho que os nossos enfermeiros estão a fazer, ao cuidar e ao olhar por estas pessoas.”

O pé diabético traduzido em números

O pé diabético é uma complicação frequente da diabetes que pode ter consequências muito graves. Pode provocar deformações, feridas e até amputações, influenciando gravemente a qualidade de vida e consumindo recursos financeiros muito elevados. Os números mais recentes, de 2016, indicam que o número de amputações ascendeu a 1.037, segundo a APDP.

Viver com a doença requer paciência e moderação nos hábitos do dia-a-dia e as pessoas com diabetes têm um risco elevado (entre 19% e 34%) de desenvolver esta condição. A úlcera do pé diabético é uma situação crónica que necessita de vigilância constante, sendo que após a primeira ferida a recorrência é elevada -- estima-se que em 60% dos casos possa voltar a ocorrer nos três anos seguintes.

A APDP revela, também, a existência de estudos que “comprovam que apenas 50% das pessoas com diabetes sobrevive dois anos após uma amputação major".

A taxa de sobrevida é baixa e inferior a algumas patologias oncológicas, sendo que a taxa de mortalidade após a primeira amputação major, em cinco anos, sobe para 68%-78,7%, adianta a associação.

Trata-se de uma complicação que representa “um forte custo para o Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, pois com o número de amputações registadas, os hospitais acabam por estar a pagar amputações quando a prevenção poderia ser a resposta.

“Estima-se que 20 a 25% das admissões hospitalares de pessoas com diabetes acontecem devido ao pé diabético, por isso a APDP tem trabalhado para responder a este flagelo, com projetos de rastreio e tratamento, sempre com o doente e a sua saúde e qualidade de vida no centro das preocupações.”

Isolamento “não é só estar longe, é estar também sozinho”

“Uma em cada quatro pessoas com diabetes vai ter problemas no pé”, afirma Rui Oliveira. O enfermeiro, que está de visita ao lar e centro de dia da Afeiteira (Vendas Novas), mostra-se preocupado com o panorama da doença em Portugal, que varia “dependendo de cada região.”

“Temos algumas consultas bastante evoluídas e que conseguem ter taxas de amputação semelhantes aos melhores locais da Europa, mas depois temos regiões do país, nomeadamente o Alentejo, em que isso não acontece, pois não há cuidados estruturados, nem acesso aos cuidados de prevenção”, sustenta o coordenador do Departamento do Pé Diabético da APDP.

Curiosamente, a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, que existe desde 1926 (à época chamada de Associação Protetora dos Diabéticos Pobres), tem a consulta do pé diabético mais antiga que se conhece.

“Nessa altura eram as próprias pessoas com diabetes que tratavam os pés de outras pessoas com a doença e só mais tarde é que começaram a treinar-se enfermeiros”, conta à Renascença Rui Oliveira.

Na comunidade, esta associação já atua desde 2007, dispondo de modernos equipamentos portáteis capacitados para abordagens só realizadas em hospitais diferenciados com cirurgia vascular.

“Conseguimos fazer não só tratamentos de quiropodia, tratar unhas, calosidades, como também avaliações da profusão sanguínea, para além da circulação em si, e da capacidade de oxigenação dos tecidos”, adianta o enfermeiro.

O Alentejo regista as maiores dificuldades no acesso a cuidados de saúde como este, por isso é com satisfação que a equipa da APDP se desloca a estes três concelhos. “Todos nos acarinham, disponibilizam os meios para que possamos realizar o nosso trabalho e estão sempre à espera da nossa próxima visita.”

A alegria de Rui Oliveira é partilhada por Luís Prata, um enfermeiro rendido ao Alentejo, na mesma medida em que foi surpreendido com uma dura realidade: o isolamento.

“Vou dar-lhe um exemplo que me marcou”, começa por contar. “Estive em Rio de Moinhos, em Alcácer do Sal, e a primeira vez que lá fui não conhecia o local e precisei de indicações através do telefone. Tinha as três redes de telemóveis e nenhuma funcionava e isso fez-me pensar que não é só estar longe, é também estar sozinho.”

Luís Prata lamenta que a dificuldade de acesso a determinados cuidados de saúde abrevie a vida das pessoas e, no caso concreto do pé diabético, que as amputações aconteçam em maior número, pois “em muitos casos os doentes chegam demasiado tarde a um centro hospitalar.”

Fundamental, aponta o enfermeiro ciente da importância da missão que se cumpre no Alentejo por estes meses, “é a prevenção não só dos doentes como também dos cuidadores e formar é igualmente uma prioridade”.

Um lar, uma horta e um presidente empreendedor

Com a extinção das Casas do Povo, em 1992, apenas se mantiveram as que criaram estatutos próprios. A Casa do Povo de Vendas Novos, constituída em 1959, foi uma delas. Um dos seus grandes projetos é, precisamente, o Lar Nossa Senhora da Saúde, a funcionar desde 2007 com diferentes respostas sociais: lar, centro de dia e serviço de apoio domiciliário.

“Tudo o que temos aqui foi feito sem a contribuição do Estado, a não ser uma piscina que hoje já não existe”, conta à Renascença Teotónio Pintor, o presidente da Casa do Povo de Vendas Novas.

Esta estrutura residencial para pessoas idosas tem um acordo de cooperação com o Instituto de Segurança Social (ISS) para 36 utentes e capacidade para 49. No que diz respeito ao centro de dia e serviço de apoio domiciliário, o acordo celebrado com ISS é de 30 utentes para cada resposta social. Na instituição trabalham 40 pessoas.

A Casa do Povo está localizada no centro da cidade de Vendas Novas e o Lar Nossa Senhora da Saúde situa-se na povoação de Afeiteira, a cerca de 6 km de Vendas Novas. Com uma localização privilegiada, a residência permite aos utentes que ainda são autónomos o contacto com a natureza.

Aliás, praticamente tudo o que é confecionado na cozinha é proveniente da horta. “Nós só compramos os alhos, as batatas e as cenouras, o resto cultivamos aqui e, por isso, conseguimos desta forma controlar as despesas”, refere Teotónio, empresário da construção civil que esteve muitos anos em África. “Aprendi como verdadeiramente se trabalha”, diz sobre essa fase.

E como os utentes estão sempre em primeiro lugar, o presidente da Casa do Povo de Vendas Novas vê com bons olhos todas as iniciativas que possam melhorar a qualidade de vida das pessoas idosas. É neste contexto que se enquadra a parceria com a APDP.

"Penso que sim, é essencial para os utentes com pé diabético. É um trabalho benemérito, até porque há pessoas que não sabem que têm a doença e esta iniciativa veio ajudar nesse sentido, além de permitir que as pessoas sejam tratadas.”

Agora com 78 anos, há dois que o empresário procura um substituto, uma tarefa que “não está a ser fácil”. Enquanto puder, vai manter-se à frente da instituição, à qual oferece toda a sua disponibilidade, sem qualquer salário, a não ser a alimentação que recebe.

Para breve, espera poder concretizar o alargamento do lar, com mais 17 camas, assim haja vontade política. À Renascença diz acreditar que o dinheiro vai, seguramente, aparecer.

“Olhe, quando comecei este lar tinha 5 mil contos (moeda antiga) e isto custou um milhão, sem ajuda do Estado, por isso está a ver. Sou feliz neste trabalho e quando começo uma coisa, estou até ao último dia com a mesma vontade como se fosse no primeiro.”

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