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​Médicos de Medicina Legal. “Lidamos com tudo o que há de mau na sociedade”

26 jun, 2019 - 06:50 • Ana Carrilho

Numa altura em que os especialistas do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses fazem greve, a Renascença foi conhecer melhor o trabalho e o quotidiano dos médicos legistas, que fazem muito mais do que autópsias.

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“Lidamos com tudo o que há de mau na sociedade”. O desabafo é de Sofia Frazão, presidente do Colégio da Especialidade de Medicina Legal da Ordem dos Médicos, em entrevista à Renascença.

Numa altura em que os especialistas do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INML-CF) fazem greve em defesa da negociação da carreira, abertura de concursos para preenchimento das vagas ou formação de mais médicos nesta área, a Renascença quis conhecer melhor o trabalho e o quotidiano dos médicos legistas, que fazem muito mais do que autópsias.

Afinal, o que faz um médico legista? 

A atividade médico-legal é extensa e abundante. Embora muita gente a associe à realização de autópsias, na realidade isso é cerca de 10% do trabalho. A maior parte da nossa atividade é ver pessoas vivas. As outras atividades, que resultam de pedidos dos tribunais, têm vários âmbitos.

Em termos criminais, frequentemente são-nos solicitadas avaliações de maus-tratos em crianças, idosos, violência doméstica, assaltos, agressões, tentativas de homicídio e pedofilia. Depois, todas as pessoas que têm um acidente de trabalho, em princípio passam pelos serviços médico-legais, por solicitação do tribunal de trabalho; os acidentes de viação e todas as pessoas que não cheguem a acordo num processo de indemnização com a companhia de seguros são também avaliadas no Instituto nacional de Medicina legal.

Haverá outras situações de estado de saúde em que há conflito entre companhia de seguros que se recusa a pagar um seguro de vida e a pessoa que quer que lhe paguem.  E há ainda os processos de responsabilidade profissional, de responsabilidade médica, ou seja, processos de eventual negligência médica, que são igualmente avaliados no INML-CF. Finalmente, temos as avaliações de psiquiatria forense e avaliações de psicologia no âmbito do tribunal de família e menores, mas que já não são feitas por médicos do quadro do Instituto.

E as violações?

Sim, sim … os abusos sexuais de menores e as violações, neste caso, de adultos são também avaliados, de urgência, pelos serviços médico-legais. Nesse caso temos, inclusive, médicos que estão escalados a uma urgência “à chamada”.

Portanto, têm muito trabalho… 

Temos muito trabalho! Além do que já falámos, às vezes também fazemos um bocado de “CSI”, deslocamo-nos com a Polícia Judiciária e fazemos exames do corpo no local. Por exemplo, em casos de suspeita de homicídio ou homicídio comprovado, deslocamo-nos com as forças de investigação criminal ao local, trabalhamos em conjunto para aumentar a celeridade na resolução do processo de investigação. E depois temos as situações, obviamente, externas que estão associadas a catástrofes, naturais e não só.

Tivemos participação direta nos incêndios de Pedrógão, de junho de 2017, e nos de outubro. Fomos para o local e trabalhámos com as diversas autoridades no local na identificação das vítimas e na primeira impressão de recolha de vestígios. Estivemos em vários acidentes que ocorreram, por exemplo na Madeira, quando houve a queda daquela árvore ou agora, na Páscoa com o acidente de autocarro de turistas alemães, também houve a deslocação de equipas.

Além das missões internacionais: na Tailândia, no Haiti e em Moçambique. Lembro-me que houve uma equipa que foi para a Croácia por causa dos crimes de guerra dos Balcãs. Temos tido frequentes participações internacionais, sendo tão poucos.

Chegámos ao ponto: sendo tão poucos, são quantos? 

No quadro estão neste momento 63, distribuídos por todo o país.

Quantos deviam ser? 

De acordo com uma portaria publicada, o quadro do INML-CF devia ter 215 médicos.

Ou seja, estamos a falar de menos de um terço. 

Estamos a falar de 29%. A portaria é de 2002. São muito poucos médicos para as perícias que é preciso realizar. Não sei os números a nível nacional, mas por exemplo, no Porto, fazemos cerca de 14 a 15 mil exames por ano “in vivo”. São muitas pessoas que passam pelo Instituto de Medicina Legal. E cerca de 900 autópsias por ano.

"Em Pedrógão estive vários dias sem dormir. Fomos substituir a primeira equipa e os nossos colegas – alguns com anos de experiência - desataram a chorar. Estavam muito abalados"

Alguma vez o quadro do Instituto de Medicina Legal teve os 215 especialistas?

Não, nunca. O quadro tem vindo a crescer, porque as pessoas têm vindo a escolher a medicina legal. O problema é que a possibilidade de aumentar o número de vagas para jovens médicos que queiram escolher esta especialidade está limitada não só pelo número de pessoas que existem no quadro, mas também pelo número de pessoas com grau de diferenciação. A maior parte desses 63 são assistentes. Se imaginar uma pirâmide, a maior parte dos 63 estão na base. Não havendo progressões, a possibilidade de formar mais médicos e aumentar a capacidade formativa para entrarem mais médicos, está diminuída.

Neste momento temos sete colegas que já fizeram a especialidade e estão à espera da abertura de concurso, não se sabe quando. Curiosamente no Ministério da Saúde foi agora aberto um concurso, em maio, para os médicos que terminaram a especialidade e foram abertos lugares para o quadro. No Ministério da Justiça, não foi. Portanto, estes sete colegas vão ficar à espera até que seja aberto concurso e não sabemos quando.

Anteriormente, houve colegas à espera cerca de 3 ou 4 anos para entrar para o quadro. Já eram especialistas, mas na realidade recebiam o mesmo que um médico em formação, embora a fazer perícias, incluindo algumas com algum grau de diferenciação.

Há um problema, tendo em conta a idade dos médicos no topo da pirâmide: a média anda pelos 55 anos, portanto, daqui a 10 anos não teremos sequer estes médicos do topo. Só temos os da base. O sistema em termos de Ministério da Justiça não é equivalente ao do Ministério da saúde.

Porquê? 

Também gostava de perceber em termos jurídicos porque é que os colegas que fazem o exame de grau de consultor, não passaram para assistentes graduados, ao contrário dos colegas tutelados pelo Ministério da Saúde, que passaram automaticamente. Não aconteceu no Ministério da Justiça. Há colegas que fizeram provas em 2011 e ainda hoje se mantêm na base da carreira, como se estivessem a entrar. Alguns têm 60 anos de idade; a motivação deles não obviamente muito grande.

Entre os jovens que saem das faculdades de Medicina, há apetência pela especialidade, nem que seja pelos CSI?

A apetência existe. Temos tido sempre as vagas ocupadas. E inclusive, com notas muito altas. Mas o trabalho é extremamente cansativo, não só por ser muito, mas porque exige emocionalmente muito dos médicos e de todos os profissionais que trabalham no IMNL-CF. Costumo dizer que nós lidamos com tudo o que há de mau na sociedade, temos situações extremamente complicadas e complexas. Todas as que envolvem menores acarretam alguns problemas emocionais. É preciso conseguir abster-se para fazer as perícias.

É preciso construir uma “couraça”, mas ao mesmo tempo ter alguma sensibilidade para fazer este tipo de trabalho o melhor possível?

Isso é obrigatório. Nós, além de médicos legistas somos humanos. Até diria: primeiro somos humanos e depois, somos médicos legistas. Como em tudo há sempre situações que nos marcam na nossa vida, algumas das quais acarretam alterações emocionais que se podem prolongar.

No meu caso pessoal lembro-me dos primeiros casos, nomeadamente de pedofilia, em que terei estado – sem exagero – cerca de dois meses com muita dificuldade em dormir. Mesmo com a formação específica não estamos preparados para algumas situações que nos aparecem. Lembro-me também de um caso que me marcou bastante, em que tive que avaliar a vítima - neste caso, era um abuso sexual – e depois, tive que avaliar o agressor, que a Polícia Judiciária, trouxe mais tarde. E é obviamente difícil, às vezes, separar as situações. Outras vezes temos casos em que o próprio agressor acompanha a vítima e está ali, à nossa frente.

Frequentemente fazemos avaliações periciais em lares e hospitais por suspeita de maus-tratos a idosos. Às vezes, vemos situações que também nos alteram emocionalmente.

Como disse, são humanos, têm que arranjar várias couraças. Isso é gerador de um certo “burnout”?

O “burnout” existe e, curiosamente, um estudo de 2015 mostrava que a Medicina Legal estava com elevados níveis de “burnout”. Tendo em conta o tipo de avaliações que temos que fazer, obviamente que vai desgastar as pessoas e traz elevados níveis de “burnout”, para médicos e não médicos; em termos de INML-CF afeta também outros funcionários.

A carência é só de médicos legistas ou também de outros profissionais especializados?

Há falta de pessoal administrativo, o que pode justificar muitos atrasos. E faltam técnicos ajudantes de autópsia. Até porque, tendo em conta o que ganham, ninguém quer entrar e fazer aquele trabalho que é extremamente pesado por pouco mais de 600 euros. Por exemplo, tivemos duas equipas para Pedrógão e estive vários dias sem dormir, mesmo estando preparada para o que poderia ver no local. Fomos substituir a primeira equipa e os nossos colegas – alguns com anos de experiência - desataram a chorar. Estavam muito abaladas.

Que influência é que estas atividades têm na vida privada de cada um? Não é trabalho que se deixe no escritório; vai “agarrado à pele”?

Todos os médicos têm o segredo médico e, no nosso caso, o segredo de justiça. Não partilhamos nada com ninguém. Ficamos com tudo para nós ou quanto muito falamos entre colegas da especialidade e evitamos que seja transportado para a nossa vida pessoal. Seria catastrófico.

Estava a pensar como condiciona os comportamentos. Disse-me que não conseguiu dormir, deve ter alguma influência na vida pessoal, menos vontade para a família, filhos…

É normal que traga alterações e também no nosso comportamento. Por exemplo, na educação dos próprios filhos e nalgumas situações de perigo. Estamos sempre atentos a todas as situações que possam ser mais alarmantes para os filhos e para a sua educação. E pode haver maior ansiedade trazida para a relação, mas também depende de cada um.

A maior parte das pessoas, acredito que não falem disto e tentem deixar tudo “à porta de casa”. Mas tudo isto influencia uma relação pessoal e com os próprios familiares e amigos. Algumas são alerta e mudaram os meus comportamentos, o que se calhar não acontecia se estivesse noutra área.

E os colegas que saem do INML, para onde vão?

Há vários que saíram, de diferentes gerações e com motivações diversas. Há pessoas que foram trabalhar para outros locais, alguns não estão a trabalhar em nenhuma área relacionada com a Medicina Legal, estão na medicina, mas a fazer clínica. Alguns colegas trabalham para empresas dedicadas a essa atividade das perícias, em escritórios de advogados ou companhias de seguros.

Mas de qualquer forma, em princípio, em termos económicos serão sempre atividades mais vantajosas.

Ah isso, sim. Sem dúvida, claramente mais vantajosas do que trabalhar para o Estado. Não há mesmo comparação.

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