25 jun, 2019 - 20:22 • Ângela Roque e Maria João Costa
A aposta da Igreja no inventário do seu património “tem décadas”, mas é um trabalho muitas vezes “invisível”. Dar a conhecer o muito que tem sido feito, as dificuldades e os sucessos, foi um dos objetivos do II Seminário Thesaurus sobre “Património Resgatado”, que decorreu esta terça-feira, no auditório da Renascença, em Lisboa.
Em entrevista, a responsável pelo Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja (SNBC), Sandra Costa Saldanha, fez questão de sublinhar a importância que o inventário tem tido na “descoberta” de peças de arte que corriam o risco de acabar no lixo, outras de que não se fazia ideia que existiam, as “boas surpresas”.
“Uma consequência muito concreta deste trabalho de inventário é a possibilidade que oferece de, literalmente, salvar, resgatar património. E algumas dioceses têm tido a possibilidade não apenas de resgatar património, que é encontrado em más condições, mas também de descobrir peças verdadeiramente notáveis, que assim são dadas a conhecer, e se acrescentam àquilo que é o património cultural português”, afirmou Sandra Costa Saldanha, para quem este trabalho não é só “muito importante para a Igreja em Portugal, para as dioceses”, mas também “para todo o património nacional”.
Nova Plataforma abre com “20 a 25 mil registos” de inventário
“Hoje é um dia importante, porque vamos pôr à disposição do país, e de todas as pessoas, aquele que é o património da Igreja”, afirmou na abertura do Seminário D. Pio Alves, bispo auxiliar do Porto, e um dos responsáveis pela Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, numa referência à apresentação da nova Plataforma de Inventário online. “Só a partir do dia 1 de julho é que ficará disponível a todo o público, terá um endereço próprio e pode ser acedida também através do site dos bens culturais da Igreja”, explicou à Renascença Sandra Costa Saldanha.
Para a diretora do SNBC “não era viável esperar mais anos pelas condições ideais para termos todo o trabalho feito”, porque na realidade este é um trabalho que “nunca está feito nem acabado”, e a ideia é que o projeto vá sendo “enriquecido, aumentado e requalificado” à medida que forem sendo feitas novas descobertas e novas intervenções.
“A Plataforma é um ponto de chegada, porque é a primeira vez que se apresenta e disponibiliza estes dados a todo o público, mas também é um ponto de partida, porque se agora abre com 20 a 25 mil registos, vai crescer em números de instituições e de peças que semanalmente vão ser adicionados, e daqui a uns meses poderão ser largos milhares”, afirmou ainda.
Para Sandra Costa Saldanha “a grande novidade é que, pela primeira vez, a Igreja em Portugal faz um esforço para congregar aquilo que são trabalhos muito dispersos ao longo dos anos, nas várias instituições eclesiais portuguesas, e partilha-o com o público em geral, e essa é de facto uma das grandes vitórias deste trabalho”. E não tem dúvidas de que a nova ferramenta será “um importante contributo para o conhecimento do património cultural nacional, no seu todo, e não apenas vocacionado para os interesses da Igreja”, porque “é um trabalho que se pode adicionar àquilo que o Estado também faz”.
A nova ferramenta será muito útil para investigadores, mas será também interessante para o público em geral, e para os crentes em particular, tendo em conta a importância que a arte também tem na transmissão da fé. “Essa é a grande prioridade, que as comunidades conheçam o seu património, porque só conhecendo o seu património o podem valorizar e interpretar, para além de meras peças decorativas no interior das Igrejas. Portanto, todo esse trabalho que é aparentemente muito técnico, tem um objetivo que não é de todo técnico, é um objetivo de fruição, de interpretação e de conhecimento do património”, acrescentou ainda.
Aprender com os erros e seguir as “boas práticas”
No II Seminário Thesaurus sobre ’Património Resgatado’ várias dioceses partilharam as suas experiências, boas e más, ao nível da inventariação e restauro.
Num dos painéis Eliana Calado, do Departamento de Bens Culturais da Igreja da diocese do Porto, falou das dificuldades que os técnicos muitas vezes enfrentam para aceder a obras que se encontram negligenciadas e esquecidas. “Temos de ser chatinhos, e mexer em tudo”, explicou, para se conseguir salvar peças que de outra forma acabariam no lixo, ou inevitavelmente danificadas. Foi por esta persistência que em Amarante se descobriu uma cruz única, de finais do século XII, que “estava num saco do lixo”, e hoje está ao dispor dos investigadores.
No mesmo painel Maria de Fátima Eusébio, que coordena o Departamento dos Bens Culturais da diocese de Viseu, alertou para a falta de técnicos de inventariação e restauro, que pode pôr em risco a continuidade do trabalho que tem vindo a ser feito, e desafiou mesmo a CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) a ter isto em conta, numa perspetiva de futuro.
Foi, ainda, destacada a necessidade de mais formação na área da inventariação e restauro, de mais colaboração do Estado, e de se intervir nos edifícios (igrejas, mosteiros, museus), cujo mau estado tem implicação direta na degradação das peças que ali se encontram expostas ou armazenadas.
Noutro painel, o responsável pelo Departamento do Património Cultural da diocese de Leiria-Fátima, alertou para o facto da arte contemporânea estar “mais em risco” na Igreja do que a antiga.
“Está tudo por fazer em matéria de arte contemporânea”, e também aqui é preciso um inventário, defendeu Marco Daniel Duarte. Em causa está o facto de muitas comunidades não se identificarem tanto com as obras mais recentes e darem mais “significado” e valor a peças feitas hoje, mas que são réplicas de outros tempos.
Para aquele responsável, “o património não pode perder significado para as comunidades, porque quando isso acontece é que fica em risco”. E defendeu que o trabalho de inventário também “ajuda à transmissão da fé”, podendo ser usado, por exemplo, pelas comunidades escolares, e na catequese, para melhor conhecerem os bens da sua paróquia.
Outro dos participantes no I Painel do dia, Artur Goulart, falou da sua experiência na Comissão para os Bens Culturais da Arquidiocese de Évora, onde há anos uma equipa de “três, quatro pessoas” leva a cabo o “trabalho intensivo de inventário”, que já se estendeu aos arquivos e cartórios paroquiais, e que já permitiu identificar desde jóias a cristos em marfim indo-portugueses, paramentos e milhares de documentos. Mesmo assim, não foram evitados roubos ou maus restauros.
Questionado sobre o facto de nem todas as dioceses do país estarem a contribuir para o inventário a nível nacional de todos os bens da igreja, Artur Goulart considerou que é “um desafio” ao qual os bispos portugueses devem responder.
No II Seminário Thesaurus participaram, ainda, outros responsáveis pelos departamentos dos bens culturais das dioceses de Angra, Aveiro e Santarém, e ainda da Irmandade dos Clérigos, do Porto. Os trabalhados encerraram com a apresentação da nova Plataforma de Inventário Online pelo Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, e pela empresa “Sistemas de Futuro”.