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​Ramalho Eanes denuncia “epidemia de corrupção” em Portugal

24 jun, 2019 - 23:28 • Redação, com Lusa

Antigo Presidente da República aponta o dedo aos partidos. Defende a revisão do sistema eleitoral e sociedade mais participativa.

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O antigo Presidente da República Ramalho Eanes alerta para a existência de uma “epidemia de corrupção” em Portugal, atribuindo responsabilidades aos partidos políticos.

“Os critérios do saber, da competência e do mérito foram, por vezes, substituídos pela fidelidade partidária", apontou Eanes, esta segunda-feira, durante uma conferência intitulada "Portugal - as crises e o futuro", organizada na Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), em Lisboa.

Para Ramalho Eanes, é neste ponto que "radica em muito a epidemia da corrupção que grassa na sociedade portuguesa, debilita a confiança social e contribui para a sua degradação em paralelo com um sentido crítico que, felizmente, tem vindo a crescer”.

A “epidemia de corrupção” é alimentada por uma “cultura de complacência”, mas também pelo sistema partidário e por um arco do poder - PS e PSD, mas também ocasionalmente o CDS” - que “colonizou” a administração pública.

"Socializar a política, politizar a sociedade"

Ramalho Eanes defende a necessidade de revisão do sistema eleitoral para resolver a crise da representação política, sem esquecer que a sociedade civil também deve ter maior nível de participação.

"É verdade que esse hiato existe. Isso não é novidade nenhuma. Toda a gente sabe, toda a gente reconhece e é necessário modificar", afirmou Ramalho Eanes, referindo-se à distância entre cidadãos e políticos, antes de citar como exemplo o estudo do antigo primeiro-ministro e atual secretário-geral da ONU, António Guterres, precisamente para reforma da metodologia das eleições, embora escusando-se a especificar soluções concretas para o problema.

"Uma das razões, como referi, será o sistema eleitoral. A outra, talvez não tenhamos feito aquilo que se impunha, que era socializar a política, isso poderia ter sido feito através da escola. E politizar a sociedade, sobretudo a jovem, também através da escola", justificou sobre o aumento da abstenção ou a opção pelos votos brancos e nulos.

Para Ramalho Eanes, "a democracia tem muito menos democracia quanto menor for a participação dos cidadãos na escolha dos seus representantes, porque são os seus representantes que vão desenvolver o trabalho político em proveito da comunidade, do país, de todos e deles mesmos".

Ainda na sua análise durante a conferência, que se estendeu por cerca de duas horas, Ramalho Eanes tinha criticado as "listas fechadas" e o facto de os eleitos se transformarem em "delegados dos partidos" em vez de serem os representantes dos cidadãos, acrescentando que as forças políticas "do arco do poder têm colonizado a administração pública", nas suas várias vertentes, central, local e setor empresarial do Estado, nomeando mesmo a Caixa Geral de Depósitos.

"O problema da corrupção é muito complexo. Em Portugal, tem sido dito - e acho que com alguma razão - que a sociedade civil não é forte e autónoma perante o Estado e devia sê-lo. As empresas deviam ser autónomas perante o Estado. O Estado estabelece as regras, vê se são respeitadas e atua quando não são, mas não estabelece com as empresas determinadas relações que são relativamente perversas. As relações em que a empresa consegue determinadas benesses, favores, isso é um género de corrupção", continuou.

Segundo Ramalho Eanes, "tudo isto se pode modificar e modifica com certeza" quando a sociedade civil for mais "autónoma" e "as empresas não tenham dificuldades burocráticas porque a nossa administração pública responde com prontidão, a justiça não demora quando houver uma fiscalização sobre aquilo que são os atos do parlamento".

"Se olhar a história, há coisas que são muito difíceis. A alteração cultural numa sociedade é uma coisa muito difícil. Enchemos a boca com revoluções culturais, a russa, a chinesa. Quando implodiu o comunismo na União Soviética, o que a gente encontrou foi o homem russo. Não tinha sido criado um Homem novo, tal como prometiam. Não é fácil criar homens novos. Não é fácil modificar a cultura", reconheceu.

Contudo, o antigo Presidente da República destacou que "houve alterações significativas", pois "a sociedade civil era maioritariamente inculta, ignorante" e "hoje é maioritariamente culta, informada, cosmopolita".

"Começa a ter todas as condições para transformar o seu procedimento e relação com o poder político", disse.

Comentários
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  • António Freitas Rodrigues
    31 ago, 2020 20:31
    Concordo com tudo o que foi dito na palestra,do Sr.General Ramalho Eanes,abrangente,assertiva e de um Homem que sofre pelo País,talvez pudesse fazer mais enquanto activo,na vida política e militar..Mas é mais fácil olhar a floresta de cima e localizar os perigos e os problemas,que dentro dela sujeito a perder-se..Que foi talvez o que aconteceu..
  • 25 jun, 2019 21:36
    Nunca por NUNCA este Senhor devia ou deve ser considerado o MELHOR. Quem ocupou os lugares que ocupou, quem teve o percurso MILITAR que teve, nunca devia usar chamando " IGNORANTE " a uma Sociedade na qual esteve inserido. Foi um MILITAR SUPERIOR por escolha PRÓPRIA e não por OBRIGAÇÃO. Foi Presidente da República por vontade própria e não por IMPOSIÇÃO. Tendo estes dois percursos, como pode hoje vir com POMPA e CIRCUNSTÂNCIA dizer que a CULPA do fenómeno da CORRUPÇÃO é da Sociedade Civil. Não foi preciso andar uma VIDA no Serviço Militar ( OBRIGATÓRIO ) para verificar que já na altura havia APROVEITAMENTO INDEVIDO por parte de Militares que ocupavam certos lugares. As " MESSES " , as manutenções militares eram " CELEIROS " de muitos. Pelo outro lado teve ao seu alcance todos os mecanismos para TRAVAR o que foi CONTRARIADO no que diz respeito ao MUDAR DE PÁGINA, na mudança do regime. O espírito do VINTE e CINCO de Abril foi logo posto em causa e Ele melhor que ninguém DEVIA ter feito o que nunca foi feito. REGRAS, RESPEITO, LISURA e TRANSPARÊNCIA. Para hoje se falar em CORRUPÇÃO é porque não há regras, não há transparência, não há lisura, em suma só há ESCURIDÃO. Claro que hoje é diferente. Mas interessa a quem? Na altura, interessava a QUEM?. Na altura as Pessoas eram SÉRIAS, tinham VALORES, tinham acima de tudo HONRA. Hoje, não digo que não tenham, mas teem uma coisa a mais que é " GANÂNCIA ". Hoje o objetivo de MUITOS não é PARTILHA, mas sim DINHEIRO, SÓ DINHEIRO. É a VIDA
  • Martins
    25 jun, 2019 LX 12:47
    Poderá ser tudo verdadeiro...E a justiça que temos? Morosa, brutalmente lenta, deixando prescrever os processos! Quando a justiça funciona mal (ou muito mal) é mais fácil prevaricar. Não será isso que está a acontecer?
  • Carlos Costa
    25 jun, 2019 12:16
    Sempre foi um homem com um H muito grande. honesto, sincero e extremamente humano. Para mim foi o melhor presidente que tivemos, teve a oportunidade de tomar o poder e ser absolutista, mas sempre foi pelo povo. Peço desculpa ao Senhor presidente pelo seu povo que o decepcionou, pois podíamos fazer mais e melhor. Abraço.
  • LIBERATO
    25 jun, 2019 Almada 12:16
    A forma como os partidos políticos portugueses com representação parlamentar gerem a sua atividade levou a que nas últimas décadas incorporassem paulatinamente nas suas fileiras muito pessoal pouco qualificado em muitos e diversos aspectos importantes e essenciais. Quando olho para esses partidos não consigo descobrir nenhuma personalidade de craveira intelectual e civica aceitável. Em grande medida, o que caracteriza o sistema político português atual é o triunfo da Mediocridade.
  • João Lopes
    25 jun, 2019 10:14
    A situação portuguesa é grave. Como “profetizou” Passos Coelho, o diabo chegou. Mas confiemos na Justiça portuguesa, porque: «Um Estado que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um grande bando de ladrões» Agostinho de Hipona (354-430).
  • Ângelo Almeida
    25 jun, 2019 09:34
    Claro que é verdadeira esta afirmação e é por isso que não voto! E cada vez existe menos confiança nas instituições! Só um político pode afirmar o contrário, e pena é que os corruptos e os ladrões não paguem com os bens aquilo que roubaram: apenas prisão?

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