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​Artista Fernando Lemos volta a Portugal com três exposições, livros de poesia e fotografia

07 jun, 2019 - 11:50 • Maria João Costa

Aos 93 anos, o artista plástico e poeta que foi viver para o Brasil, na década de 50, volta ao seu país que diz agora ser livre, enquanto que sobre o Brasil diz não ser o que sonhou. Apesar da idade, continua a desenhar todos os dias.

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Está sentado numa cadeira de rodas, um aparelho no ouvido ajuda-o a ouvir as perguntas. Fernando Lemos tem 93 anos, uma força que o faz continuar todos os dias a desenhar e uma lucidez que deixa a cada resposta que nos dá. O artista plástico do surrealismo português que é também fotógrafo e poeta mostra o seu trabalho em Lisboa por estes dias em três exposições e em dois livros. Concedeu-nos 15 minutos de entrevista, ladeado por um enfermeiro e pela mulher, sempre atenta.

Mais conhecido pelo seu trabalho como fotógrafo em Portugal, Fernando Lemos tem também um importante trabalho gráfico que é agora mostrado na primeira exposição antológica da obra gráfica de Lemos.

A organização é do Museu do Design (MUDE) e está até 6 de outubro no Torreão Poente da Cordoaria Nacional. Mas em simultâneo, duas galerias lisboetas, a Ratton e a 111 mostram outra dimensão da criação de Fernando Lemos. Na Ratton estão até 6 de setembro, na exposição “Máscaras do Tempo” desenhos e azulejos, já na 111 na mostra “Mais a mais ou menos” estão reunidas fotografias, pinturas e desenhos realizados pelos artista desde a década de 1940 até à atualidade.

Em entrevista ao programa “Ensaio Geral” da Renascença, Fernando Lemos diz que chega a Lisboa com “disposição” para mostrar esse lado múltiplo da sua obra, a qual classifica como “herança”.

No seu quarto de hotel em Lisboa, numa voz que em tom de brincadeira diz parecer a de Alfredo Marceneiro, explica-nos que o que podemos agora ver no seu país “livre e saudável e onde se pode falar sem que ninguem esteja à escuta” são “três partes” da sua “vida e trabalho”. Na sua leitura estes trabalhos “são testemunhas”e “são um pouco como os heterónimos de Fernando Pessoa”

Fernando Lemos nasceu em Lisboa em 1926, estudou na Escola António Arroio e integrou dois importantes grupos surrealistas portugueses. Um ano antes de se exilar no Brasil quando tinha 26 anos, participou numa exposição que reuniu fotografia, óleos e desenhos a pare com artistas como Marcelino Vespeira e Fernando Azevedo.

Hoje, aos 93 anos, assegura-nos que continua a trabalhar. “Todos os dias faço um desenho e no fim do ano faço um livro com esses desenhos”. A energia que revela leva-o a explicar-nos que para si “o desenho foi sempre uma forma de desocultação, tal como a fotografia, onde vamos à procura do desconhecido”. “O meu desenho continua a ser um fio continuo, não acaba nunca”, revela Lemos.

Embora seja mais conhecido em Portugal pela fotografia, Lemos acha bom este momento em que mostra outras formas do seu trabalho. Diz-me mesmo que estas exposições vão despertar alguma “curiosidade” porque vão mostrar o artista “diversificado”. O artista considera que esta “multiplicidade é uma forma de existência” sua.

A fotografia de Fernando Lemos e a poesia em livros

São da sua autoria conhecidos retratos de criadores como Sophia de Mello Bryner Andersen, Maria Helena Vieira da Silva ou Arpad Szenes, todos seus amigos. O seu trabalho fotográfico está agora também tratado em mais um livro da colecção PH editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda.

A colecção, coordenada por Cláudio Garrudo e que já deu à estampa outras obras dedicadas a fotógrafos contemporâneos portugueses como Helena Almeida, Paulo Nozolino ou Jorge Molder, conta com textos de Filomena Serra.

Nesta entrevista à Renascença, Fernando Lemos conta que quando fez estes retratos “queria saber que cara tinha o português”, por isso fotografou “gente que gostava , gente que tinha um sentido político, de ausência. Eram caras que estavam proibidas”, explica.

Questionado sobre se mantém um espírito revolucionário, responde categoricamente que sim, diz que já não tem “medo”. Para ele esse lado de revolução é “algo de nascença que a natureza” lhe deu. Vai mais longe no seu raciocínio e explica que foi “beneficiado com defeito para ser diferente. Ser deficiente é ser diferente, sem culpa”.

Algumas das suas frases só poderiam mesmo nascer da cabeça de um poeta. A sua obra poética vai agora também ser reeditada pela mão do escritor Válter Hugo Mãe e da colecção “O Elogio da Sombra” que edita na Porto Editora. O lançamento está marcado para dia 15 na exposição organizada pelo MUDE na Cordoaria Nacional. A palavra poesia é usada por Fernando Lemos na nossa entrevista, associada a outra, a morte.

A propósito da idade e dos 93 anos lúcidos que tem, Fernando Lemos diz-nos que “a idade é uma forma de provocação”. A seguir a esta frase vem a explicação: “você é como um relógio que se adianta e fica adiantado à espera. Você tem de ir à procura do futuro que você nunca pode encontrar”. Num português já embebido de sotaque brasileiro, Fernando Lemos continua o raciocínio: “a idade é uma forma de você ir continuando o seu próprio tempo como um relógio. Nós hoje somos o futuro de ontem”. É aqui que a palavra entra: “A morte é outra forma de poesia, porque nos leva, porque não nos pode deixar de levar. É obrigação.”

“A idade para mim não existe. Há um tempo de corpo. Esse tempo é uma espécie de crise avançada. A velhice é uma forma transparente que faz aparecer todo o passado; é um video, uma lembrança viva de tudo o que aconteceu, porque não volta.” diz-nos do alto da sabedoria dos 93 anos.

Brasil de Bolsonaro não é o que Fernando Lemos sonhou

Tinha 27 anos quando deixou Portugal para viver do outro lado do Atlântico. No Brasil onde viveu toda vida e fez família já viu várias viragens políticas, mas a de agora com Bolsonaro no poder preocupa-o. “Não é o Brasil que eu sonhei” diz-nos sem tecer mais considerações, ele que já viu outros periodos da politica brasileira como a ditadura militar.

“O Brasil está numa situação difícil porque se tornou num regime militar”. Foi lá, no Rio de Janeiro que Fernando Lemos acabou por encontrar o seu “território” de “liberdade política.” Fugia então, em 1953 de Portugal, daquilo que diz “destruiu” a sua juventude. No Brasil conta-nos fez família, viu o seu trabalho a ser respeitado, não teve dificuldades que “tinha levado de Portugal”.

Agora regressa e agradece à Renascença ter ido ouvi-lo nesta entrevista, porque diz com ironia, quando saiu de Portugal não “escutava a Renascença”.

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