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Entrevista a Mariano Cabaço

Misericórdias debatem os seus museus. "Temos um património inigualável para mostrar"

28 mai, 2019 - 17:19 • Rosário Silva

Nova edição das Jornadas sobre "Museologia nas Misericórdias" decorre em Beja esta sexta-feira, 31 de maio, e contará com a presença do bispo D. João Marcos.

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As boas práticas, a proteção e manutenção dos espaços museológicos das Misericórdias, os desafios e o seu contributo para a sustentabilidade destas instituições e para o desenvolvimento da economia do turismo.

São estas as pistas para mais uma edição das Jornadas sobre “Museologia nas Misericórdias”, que desta vez decorrem na capital do baixo Alentejo, a 31 de maio, e que contarão com a presença, entre muitos outros, do bispo de Beja, D. João Marcos.

Em entrevista à Renascença a propósito do evento, Mariano Cabaço, responsável pelo Gabinete do Património Cultural da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), ressalta: "Temos a obrigação de preservar o legado que nos foi deixado."

Pela sexta vez, a realidade e as potencialidades do património museológico das Misericórdias vai estar em evidência nas jornadas. O que se pretende com esta reflexão?

O que nós pretendemos com as Jornadas “Museologia nas Misericórdias” é que seja uma reflexão. Tendo em conta o universo de 400 instituições que existem em Portugal, e em que cerca de um quarto destas instituições tem realidades museológicas - museus, centros interpretativos, espaços de memória - nós sentimos essa necessidade de refletir, ajudando as instituições a criar estes espaços com dignidade e com a mensagem apropriada.

Reunimo-nos uma vez por ano, em locais distintos, para mobilizar as instituições locais, e pretendemos fazer uma reflexão mais científica e académica sobre os princípios mais adequados a criar nestes espaços museológicos, mas também sobre as potencialidades que estas estruturas podem encetar para dinamizar as comunidades locais, para promover os valores e a missão das próprias Misericórdias, pois temos esta noção de que é necessário que estes sejam espaços vivos, de promoção dos valores e da identidade das Misericórdias.

São instituições muito antigas, mas que permanecem numa atividade coerente ao longo dos anos, por isso temos essa obrigação de preservar o legado que nos foi deixado, respeitar essa memória e mostrar o que fomos e o que fazemos diariamente.

Já que falou nas comunidades locais, quais são os maiores desafios que esta oferta representa, quer para o turismo quer para a próprias regiões onde se insere?

Nós temos essa preocupação de dar a conhecer à comunidade o que a sua instituição foi ao longo de séculos e o que ainda faz, pois vai ajudar a valorizá-la e a ser mais atrativa, quer para dirigentes, quer para os irmãos da Misericórdia acarinharem a sua instituição.

Sabemos que em muitas localidades a atividade cultural é reduzida e, por isso, temos um projeto associado aos museus e às casas-museu dessas instituições, para permitir a sua abertura, com voluntariado sénior, podendo até acrescentar valor àqueles espaços, pois são contadas histórias e tradições, e isso é um fator de mobilização tanto dos residentes como para o visitante que pode usufruir do espaço.

Temos também em projeto, a partir da União da Misericórdias Portuguesas, a intenção de mobilizar as instituições para circuitos de visitas temáticas para terem oferta turística. Não podemos esquecer o bom momento que o país vive a este nível, e as Misericórdias têm um património inigualável para mostrar.

Inigualável e de diversas proveniências…

Sobretudo, de três proveniências. Por um lado, as peças artísticas e religiosas que servem ou serviram o culto, peças da vida quotidiana muito próximas da vida das Misericórdias, desde os antigos refeitórios, à botica dos hospitais, por exemplo. Temos, também, um conjunto de peças e de acervos muito ligados à vida da Misericórdia, mas depois temos, ainda, outra realidade que queremos preservar intacta e que são os legados que que estão na nossa posse e temos casos muito interessantes ao longo do país e que queremos apresentar aos doadores e aos beneméritos, sempre que possível, na sua plena integração na comunidade, pois é este tipo de estruturas que vão ajudar a dinamizar o turismo local, alguma economia local, e uma coesão social que muito ambicionamos. É importante que as novas gerações possam ter conhecimento deste nosso legado.

Então, mostrar este património é, no fundo, mostrar a história de determinada comunidade, aquilo que foi, o que é, e a sua relação com o meio onde se insere?

Sem dúvida. A narrativa que pretendemos manter, e esse é o nosso esforço enquanto UMP, é que um espaço museológico, um museu ou mesmo uma casa-museu, seja apresentada como uma narrativa verdadeira, a contar o bom e o mau que aconteceu, a respeitar a memória dos dirigentes, dos trabalhadores destas instituições e dos beneméritos, uma vez que ali está a também a história de determinada comunidade. Nós temos o cuidado de não dizer que temos 100 museus, mas que temos aproximadamente 100 realidades museológicas, pois são todas muito diferentes. É um caminho que ainda estamos a percorrer, aperfeiçoando estas estruturas e as metodologias destes acervos artísticos, porque não podemos esquecer que as Misericórdias têm outras prioridades. Mas, como gosto de referir, sem o património devidamente estudado, conservado e divulgado, as Misericórdias não tem futuro nem identidade. Isto é uma preocupação que diariamente mantemos para ajudar estas instituições a dignificar o seu legado, a afirmar a sua presença e a projetar uma identidade que é única no país e no mundo.

Eu ia perguntar-lhe isso mesmo, quantos museus ou espaços museológicos têm?

Não temos a pretensão de identificar tudo como museus, mas temos, sim, realidades museológicas em cerca de ¼ das Misericórdias ativas em Portugal. São à volta de 100 instituições. Sabemos, também, que esta musealização de espaços tem várias opções, desde o museu, ao centro interpretativo, a espaços de memórias, a outras que não passa de uma coleção visitável, ou outros estão em construção. São, sobretudo, equipamentos que permitem mostrar o que a instituição fez, o que foi no passado e o que pretendemos que seja neste momento. Há muitas tradições que, felizmente, estão vivas nas Misericórdias, como por exemplo as celebrações da Semana Santa, os rituais da tomada de posse, algumas que estão a recuperar o cortejo de oferendas, e nós temos estado a acompanhar esse levantamento, esse inventário, dessas tradições. Todas elas devem ser refletidas nestes espaços museológicos que queremos vivos, mas não descontextualizados. A muitas instituições que apresentam realidades museológicas, aconselhamos, por exemplo, a musealizar o seu salão nobre, permitir a visita da comunidade ou do turista a um espaço carregado de uma simbologia, onde se pode ver a galeria dos benfeitores, as bandeiras da Misericórdia, que são peças únicas, as varas da irmandade. Portanto, todo um conjunto de objetos que fazem parte da vivencia das Misericórdias e, posso dizer-lhe que há casos onde isto está a acontecer e com muito sucesso.

“Museologia nas Misericórdias: Que realidade?”, é o tema da conferência que vai proferir nas jornadas de dia 31 de maio, em Beja. Tendo em conta esta nossa conversa e todo o trabalho que a UMP desenvolve, como classifica esta realidade?

É um processo que está em crescendo. Nós temos vindo a promover um programa de inventário do património móvel das Misericórdias e isso tem permitido conhecer em profundidade os acervos artísticos que cada instituição tem. A partir daqui, tem vindo a ser crescente a vontade das instituições criarem os seus espaços museológicos. Tem sido muito interessante assistir ao proliferar de vontades em ter um espaço de memórias para mostrar o que é a instituição, os seus valores e afirmar a sua identidade.

E musealizar as misericórdias é um desafio?

Eu diria que é um grande desafio. Por um lado, é interessante porque a partir do espólio que as Misericórdias têm, atualmente, deste ponto de vista não é difícil. Por outro lado, temos os constrangimentos financeiros que esta instituição tem, pois, o seu objeto fundamental é o apoio social e na área da saúde. Contudo, a pouco e pouco, com apoios locais em que os municípios também se envolvem em parcerias, vamos trabalhando com vista à musealização. Eu diria que o processo é em crescendo e, por isso, promovemos estas jornadas e outras iniciativas como o Dia do Património das Misericórdias. Aproveitamos para a todos mobilizar, definindo um caderno de encargos para todos, explicando como se deve fazer para criar um museu, os compromissos e responsabilidades que se devem assumir ao criar uma estrutura desta natureza. É um trabalho muito estimulante, e é com agrado que vamos percebendo que à volta desse objetivo vão surgindo atividades, como conferências, concertos, palestras, dias comemorativos, entre outras. Para nós faz sentido ter um programa de atividades, associadas a estes equipamentos. É uma alavanca, também, para o desenvolvimento e sustentabilidade da própria instituição.

O Museu da Misericórdia do Porto, foi um dos 50 candidatos ao prémio Europeu do ano, EMYA 2019. Esta nomeação foi, seguramente, o reconhecimento do bom trabalho museográfico que tem sido feito. É um exemplo que gostaria de ver replicado?

Sem duvida. Nós temos tido sempre a preocupação de não nos precipitarmos na abertura de espaços e na divulgação de coleções que não estejam devidamente cuidadas e conhecidas. Sem um espólio inventariado, sem um programa museográfico definido, não é possível projetar estes equipamentos, pois é do conhecimento que estamos a falar, é de cultura, é de respeito pelo passado, é de dignidade dos valores que as Misericórdias sempre promoveram. Temos que ter sempre esse cuidado: não avançar se não tivermos condições para que o produto final seja digno dessas instituições. E temos casos muito felizes, desde a Misericórdia do Porto, que fala, mas também a de Braga, a de Coimbra ou a de Amarante, entre muitas outras. Em Beja, vamos ter muitas mais que vão apresentar o seu estado da arte, o que têm e o que pretendem fazer. Queremos incentivar a nivelar os seus projetos pela qualidade e pelos critérios mais adequados a este tipo de equipamentos.

Há outros projetos em curso?

Temos um outro projeto que, infelizmente, não têm avançado como desejaríamos, mas está no bom caminho. Trata-se da constituição de um museu virtual das Misericórdias para, aí sim, divulgarmos com uma narrativa coerente, a realidade patrimonial destas instituições. DE qualquer forma, queremos continuar a trabalhar com as pessoas e não há como cada comunidade para se mobilizar à volta de um equipamento destes. É uma postura que configura uma cidadania ativa da própria comunidade, um voluntariado cultural que tentamos promover. Queremos manter estas instituições vivas, elas que têm uma história viva e permanente, ancorada no passado, mas mantendo os olhos postos no futuro e na identidade destas instituições que já deram ao país, e ainda vão dar mais no futuro.
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