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Entrevista a Rémi Brague

“Temos a liberdade própria dos escravos”

21 mai, 2019 - 06:36 • Filipe d'Avillez e Octávio Carmo (Ecclesia)

Rémi Brague diz que a Europa só tem futuro se conseguir resgatar a sua própria identidade e assim ganhar a confiança necessária para resistir a ameaças que são mais internas do que externas.

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O filósofo Rémi Brague critica a noção moderna de liberdade e pede à Europa que não vire as costas à sua própria identidade, para não se resumir à sua condição geográfica de “pequeno promontório do continente asiático”.

Em visita a Portugal para proferir uma conferência na Universidade Católica, em Lisboa, esta terça-feira às 18h30, o famoso académico francês, que venceu o prémio Ratzinger de Teologia em 2012, concedeu uma entrevista conjunta à Renascença e à Ecclesia em que fala da Europa, da cultura ocidental, do Islão e das diferenças entre o Papa Bento XVI e o Papa Francisco.

Especializado em filosofia medieval e religiões abraâmicas, Rémi Brague é um dos mais respeitados intelectuais e académicos católicos na Europa. Atualmente é professor nas Universidades de Sorbonne e de Munique.

Está em Portugal para falar do futuro da Europa. Que futuro é que existe para a Europa cristã?

Eu não sei qual será o futuro da Europa, deixei a minha bola de cristal em Paris. Mas olhando para o presente posso dizer que há uma série de condições que devem ser preenchidas para que a Europa tenha, sequer, futuro. Resta saber se os líderes europeus estarão dispostos a assumir e dar continuidade à aventura cultural europeia. Se não estiverem, então a Europa não terá futuro e resumir-se-á aquilo que é geograficamente, um pequeno promontório do continente asiático, nada mais.

Então o que é que a cultura cristã ainda tem para dizer à Europa contemporânea?

Tudo depende do conceito de homem, que está na base da cultura europeia e que foi muito influenciado pela visão cristã do homem, isto é, criado à imagem de Deus e dotado de uma dignidade especial.

Atualmente todos falam de dignidade humana, mas ninguém – para além dos cristãos – é capaz de explicar porque é que os seres humanos possuem essa dignidade. Se não passamos de animais, se nos contentamos com isso, porque raio devemos possuir uma dignidade? Mas se a nossa dignidade depende da vontade benévola de um criador, que fez cada ser humano à sua imagem e semelhança, então percebemos porque é que a dignidade humana nos deve interessar.

Fala da erosão do conceito de dignidade do homem. Que outras ameaças é que a Europa enfrenta?

Todas as outras ameaças são consequências desta. Se os seres humanos não forem capazes de se respeitar a si mesmos, então serão presa fácil para todo o género de ameaças. Se perdermos este sentimento de legitimidade enquanto europeus, não seremos capazes de produzir defesas para as ameaças externas.

Quando às ameaças internas, são ainda mais perigosas. Penso particularmente no populismo, uma variante extrema do nacionalismo. Todas essas coisas são, na minha opinião, compensações pela perda do sentimento interior de dignidade, ou legitimidade, se preferir. Se simplesmente abandonássemos o nosso sentimento de legitimidade, então a única forma de salvar uma nesga de identidade seria recuarmos para a fortaleza de uma identidade, verdadeira ou inventada, nacional ou religiosa, ou o que quiser.

Isso seria muito perigoso, porque a aventura da Europa foi uma aventura de expansão. E não me refiro só à expansão dos descobrimentos, muito antes disso os europeus já se interessavam pelo resto do mundo.

Na sua obra refere-se ao “marcionismo cultural”, a ideia de que não temos nada a aprender com os outros. É um perigo para os nossos dias?

Marcião era um padre cristão e herege que rejeitava o Antigo Testamento. Quando digo marcionismo cultural é esta tentação de renunciar à dimensão positiva da tradição.

A tradição não é uma imitação simples do que veio antes de nós, pressupõe uma consciência de continuidade. Somos herdeiros de alguém e temos de desenvolver, de tempos a tempos corrigir e melhorar, aquilo que recebemos. O marcionismo é a ideia parva de que não temos nada que aprender com os outros. Atualmente, se virmos a forma como as elites europeias olham para o mundo vemos que a sua ideia fundamental é que nós somos os mais espertos, os mais simpáticos, os mais bonitos... Todos os outros precisam de imitar-nos. Se por acaso alguém de outra cultura tiver alguma coisa para nos dizer, nós dizemos que não, que eles é que têm de aprender connosco. Dou três exemplos:

A Ásia esta a dizer-nos que não podemos viver sem trabalhar. A nossa resposta pode ser resumida na estupidez dita pela antiga primeira-ministra de França [Edite Crésson], que chamou aos asiáticos "formigas amarelas". Nem seres humanos, apenas insetos.

Quando os americanos nos dizem que a paz não é um dado adquirido, que não devemos pensar que o tempo das guerras acabou e que não temos inimigos, a nossa resposta é que eles não passam de “cowboys”.

E quando os muçulmanos nos dizem que não devemos imaginar que podemos deixar de ter filhos e que a próxima geração chegará por cegonha, a nossa resposta é que eles são fundamentalistas, integristas.

Somos aparentemente muito livres. Temos dinheiro, temos paz, elegemos os nossos líderes, comemos o que queremos, parece que estamos livres dos constrangimentos da religião e até da biologia... Isto é liberdade?

É uma boa pergunta. Aristóteles faz uma observação na “Metafísica”, em que diz que numa casa bem governada, os homens livres têm mais obrigações que os escravos. Mal o mestre vira as costas, os escravos fazem como querem, enquanto que os livres têm um código de honra, uma consciência.

Isto pode ser uma parábola para o conceito atual de liberdade. Aquilo a que chamamos liberdade hoje era, nos tempos antigos, a liberdade dos escravos. Fazer o que apetece significa, de facto, ceder aos desejos, às paixões, aos quereres. Já a liberdade significa a obediência a uma forma de lei.

Os táxis em Paris, quando estão disponíveis, dizem "livre". O que é que significa esta liberdade? Significa estar vazio, não saber para onde deve ir e poder ser tomado por qualquer pessoa que tenha dinheiro e que nos dirá ao taxista para onde se dirigir. Esta é uma parábola da nossa liberdade moderna: vazia, incapaz de escolher um rumo e ao serviço dos clientes.

Tem dito que no diálogo com outras religiões podemos estar a usar as mesmas palavras, mas com significados diferentes.

Abraão e Ibrahim são o mesmo nome, mas o que acontece à personagem nas duas tradições é muito diferente. O mesmo com Jesus. Está no Novo Testamento e tem também um pequeno papel no Alcorão, mas o que lemos lá é muito diferente do que é narrado no Novo Testamento. Não estou a falar de teologia, estou simplesmente a falar da imagem pintada no Alcorão. No Novo Testamento, por exemplo, 90% dos milagres atribuídos a Jesus são de cura. Já no Alcorão há alusões às curas, mas o que é descrito é a forma como a criança Jesus moldava pássaros de barro e depois soprava, dando-lhes vida, eles voavam e depois ele batia palmas e matava-os. Estes são milagres de poder e não sinais da boa-vontade de Deus, da sua misericórdia. Esta personagem tem o mesmo nome, mas é completamente diferente nas duas tradições.

Eu fui muito criticado por dizer que quando conversamos com um muçulmano é melhor falar de petróleo do que de Abraão. Mas o que queria dizer era que quando um muçulmano e um não muçulmano falam de petróleo estão a referir-se ao mesmo líquido, mas quando falamos de Abrão temos a mesma palavra, mas são duas pessoas completamente diferentes e por isso estamos a dar aso a um mal-entendido.

O Islão está cada vez mais presente na Europa. É uma ameaça?

Será uma ameaça se os europeus não conseguirem encontrar em si a força para dizer que temos algo para lhes propor, para que possam escolher. Com isto estou a dizer que a verdadeira ameaça é interior. Eu falei de algumas ameaças externas, mas propositadamente não falei do Islão. A verdadeira ameaça é uma falta de confiança, uma falta de autoconfiança por parte dos europeus. Se a cultura europeia ainda fosse intelectualmente e espiritualmente poderosa, então seria possível lidar com qualquer ameaça externa.

Espero que os europeus ganhem uma maior consciência do valor da cultura de que são herdeiros. Se isto for possível – e espero que seja – então eu não temeria qualquer ameaça. Espero que consigamos recuperar a nossa força moral, intelectual e espiritual. Se o fizermos então não temos de temer qualquer concorrente. O que temos para oferecer é bom.

Os refugiados são uma ameaça à Europa cristã, ou pelo contrário, a rejeição dos refugiados é uma ameaça aos valores cristãos da Europa?

Em primeiro lugar, se alguém está a afogar-se, então temos um dever básico de lhe salvar. Mas isso não significa que qualquer pessoa que chega à Europa deve ter um direito de se comportar na Europa de acordo com regras que não são europeias.

Mas de um ponto de vista moral, se nós absorvermos a juventude, sobretudo a melhor parte da juventude desses países, para que possam estar ao serviço da riqueza de europeus reformados, isto é, se quisermos que sejam como enfermeiros num lar de terceira idade, isso é nojento, porque estamos a roubar os países de origem de energia e conhecimento. Acho isso muito criticável, é roubar. Roubar aos países a elite que poderia contribuir para o seu desenvolvimento.

Recebeu o Prémio Ratzinger do Papa Bento XVI. Atualmente vemos muitas críticas ao Papa Francisco, o que lhe parece esta divisão?

Eu tive a oportunidade de ter algumas conversas curtas com o Papa Bento XVI e sou um grande admirador dele, tem uma mente poderosíssima. Percebíamos facilmente se éramos a favor dele ou contra, era claro.

Com o Papa Francisco fico mais perplexo. Tem frases muito sensatas, mensagens muito profundas, mas de vez em quando diz coisas muito ingénuas, sobre coisas de que percebe pouco, infelizmente. Por exemplo, ele tem uma frase famosa em que diz que o verdadeiro Islão exclui qualquer forma de violência. Quem é ele para decidir o que constitui verdadeiro Islão ou não? O que é que diríamos se o Dalai Lama nos tentasse dizer o que é verdadeiro cristianismo? Ponhamos de parte a verdade, ou falta dela, desta frase. O importante é a questão da competência.

Isto deixa-me perplexo. Eu consigo compreender as pessoas que ficam pouco à vontade com isto e que perguntam onde é que ele está a tentar chegar.

Comentários
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  • Amora Bruegas
    23 mai, 2019 Torres Novas 10:21
    Muito bem observado! De facto, os governantes europeus, servos da agenda marxista-cultural, querem destuir a cultura europeia, nomeadamente com a invasão de bárbaros, de muçulmanos. E os Cristãos o que fazem para combater tal perfídia?
  • hajapachorra
    21 mai, 2019 Aveiro 18:17
    Tão mal traduzido... Maître devia ter sido traduzido por 'amo' ou 'senhor' e não por 'mestre'. :-D
  • Sasuke Costa
    21 mai, 2019 14:16
    Ingenuidade é o que mais há.
  • uomem sim
    21 mai, 2019 08:42
    Escravatura do século 21 era digital humanos completamente dominados

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