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O dia em que os católicos derrotaram o Ku Klux Klan

17 mai, 2019 - 08:30 • Filipe d'Avillez

Há 95 anos, quando o Klan dominava a vida política e social no Estado do Indiana, e tinha nas forças policiais um aliado, os alunos católicos da Universidade de Notre Dame infligiram-lhe uma derrota que ficaria para a história.

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Hoje, é considerado pouco mais do que um resquício anedótico dos anos mais negros do sul dos Estados Unidos, mas, nos anos 20, o Ku Klux Klan (KKK) praticamente dominava o Estado do Indiana e, frequentemente, manifestava o seu poder através de grandes e ruidosas manifestações e marchas nas principais cidades. Ninguém se atrevia a fazer frente aos racistas trajados de branco, com as cabeças tapadas pelos sinistros capuzes pontiagudos.

Mas, há precisamente 95 anos, no dia 17 de maio de 1924, o Klan deu "um passo maior do que a perna" e acabou com a sua marcha desbaratada e os seus membros a lamber as feridas, depois de um confronto improvável com os alunos da universidade católica de Notre Dame.

“Eu estudei em Notre Dame e esta história fez sempre parte do folclore local. Havia muita informação errada, muitos mitos, mas a história ficou sempre na minha mente”, explica Todd Tucker, autor de um livro sobre os motins.

Para se compreender o que se passou, é preciso ter em conta dois factos. Primeiro, a influência do KKK no país e, mais especificamente, no Estado do Indiana. “Na altura, eles dominavam quase todos os níveis do Governo. Havia membros em todo o país, mas foi no Indiana que chegaram ao pico do seu poder e operavam quase como um partido político. O governador pertencia ao Klan e isso não era um segredo, era um trunfo de campanha”, explica Todd Tucker.

O segundo ponto é que, embora seja mais conhecido pelas suas posições racistas, outro cavalo de batalha do KKK era o seu anticatolicismo. Este era particularmente forte no Indiana, onde havia poucos negros. É por isso que quando o Klan marcou uma marcha para a cidade de South Bend, onde existia uma comunidade católica assinalável e onde opera ainda hoje a Universidade de Notre Dame, os locais encararam-no como uma provocação.

“Estas marchas e paradas faziam parte do ciclo normal de recrutamento. Por isso, por um lado, era normal que o fizessem numa das maiores cidades do Indiana, mas, por outro lado, era uma zona muito católica e é possível que estivessem à espera que houvesse uma reação e que pudessem usar isso como propaganda”, diz Tucker.

Não se enganaram, mas talvez tenham subestimado a dimensão da reação dos alunos, na maior parte de ascendência irlandesa.

Segundo o relato num artigo publicado no próprio site da universidade, cerca de meio milhar de alunos juntou-se naquele sábado de manhã e decidiu ir até à cidade. Quando lá chegaram, divertiram-se a agredir os membros do KKK que encontravam nas ruas, roubando-lhes as túnicas e os capuzes. À medida que outros membros chegavam a South Bend em comboios ou autocarros, eram recebidos por jovens simpáticos que se ofereciam para os conduzir ao local da marcha, mas, em vez disso, os levavam até vielas e ruas escondidas, de onde emergiam mais leves e por vezes com um olho negro ou um nariz ensanguentado.

"Batatada"

Os membros do Klan fugiram e barricaram-se na sede local do grupo, num terceiro andar, facilmente identificável por uma cruz constituída por lâmpadas encarnadas, a remeter para as famosas cruzes ardentes que são um símbolo do grupo. Armando-se com batatas de uma mercearia local, os alunos deliciaram-se a estilhaçar as lâmpadas, uma por uma, até que restava apenas uma lâmpada solitária, a mais alta de todas, à qual ninguém chegava.

Chamou-se por Harry Stuldhreher, uma das estrelas da equipa de futebol da universidade, que, com um tiro certeiro, apagou de vez a “cruz ardente”, para alegria dos seus colegas.

“O que se passou no sábado foi, sobretudo, violência de baixa intensidade, mas os alunos claramente saíram por cima e conseguiram estragar os planos do Klan, que não conseguiu fazer a marcha”, diz Tucker.

A luta das autoridades, incluindo polícia e Forças Armadas, contra o KKK é uma constante no séc. XX americano, mas o incidente de South Bend terá sido um dos únicos casos em que o grupo foi derrotado por populares.

A história, todavia, não ficou por aí. Depois da derrota de sábado, o Klan planeou a resposta. Domingo foi um dia de acalmia, mas na segunda-feira vários voltaram à cidade para provocar uma nova reação. “Muitos alunos regressaram logo, tinham-se divertido imenso no sábado, mas desta vez o KKK estava à espera deles e o que se passou a seguir foi muito mais violento: houve ossos partidos, bastões e tiros. Ninguém morreu, mas houve violência a sério."

Significativamente, entre o grupo que esperava os estudantes incluíam-se o xerife local e vários polícias. Os alunos deram, mas também levaram e, quando se reagruparam, para planear a retaliação, só o apelo do padre Walsh, presidente da Universidade, os demoveu.

Segundo o site da universidade, o resultado, a longo prazo, foi que o Klan nunca conseguiu apoderar-se de South Bend. Uma segunda marcha foi cancelada e a sua influência local acabou por esvanecer. Para isso contribuiu bastante a detenção, por rapto, violação e homicídio, de D.C. Stephens, o carismático e sinistro líder do Klan no Indiana.

“Quando as pessoas me perguntam porque é que o Klan teve tanto sucesso no Indiana, na verdade, foi por causa dele. Ele era o melhor organizador e o melhor promotor do Klan. Era uma espécie de génio malévolo, um verdadeiro monstro”, diz Todd Tucker.

Um aluno de Notre Dame exibe a túnica e o capuz do Klan como troféu

Irlandeses lutadores

Se os alunos ficaram com boas memórias do incidente, os dirigentes da universidade tiveram uma reação menos efusiva. Todd Tucker até se ri antes de dizer que “ficaram horrorizados".

"Os católicos na América, em particular os de ascendência irlandesa, estavam constantemente a tentar lutar contra esta ideia de que os irlandeses eram uma turba violenta e selvagem. Esse era o estereótipo, por isso ver os alunos de Notre Dame envolvidos num motim era o pior cenário possível”, argumenta.

Hoje, como se vê pelo facto de o próprio site da universidade divulgar o incidente, a reação já é mais moderada, mas Tucker explica que as ramificações são mais profundas. “Claro que continuam a não defender a justiça popular, mas o que se passou é também emblemático da dolorosa divisão que existe entre a Notre Dame e a população local, que ambas as partes se têm esforçado para melhorar. Por isso, a Universidade não se gaba disto, porque representa um problema mais vasto”, diz.

Apesar do desalento dos responsáveis pela universidade na altura, a verdade é que nenhum dos alunos sofreu repercussões disciplinares.

Aliás, houve até efeitos positivos para a instituição. Preocupado com o facto de muitos dos alunos viverem na cidade, onde estavam expostos a violência e discriminação, o padre Walsh começou a edificar e expandir os dormitórios, melhorando as infraestruturas da universidade. Três anos mais tarde, foi ele que permitiu que a equipa de futebol de Notre Dame - ainda hoje uma das mais famosas da fortíssima liga universitária - adotasse a alcunha “Fighting Irish”, os “Irlandeses Lutadores”, que ainda hoje ostenta.

Comentários
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  • Rochinha
    17 mai, 2019 Canelas, Gaia 11:43
    Se fosse hoje, diziam que eram os super-dragões, esses bandidos.

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