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Tiago Moreira de Sá

“Manter americanos dentro, russos fora e alemães em baixo continua atual para a NATO”

04 abr, 2019 - 07:59 • José Bastos

Nos 70 anos de história, cumpridos esta quinta-feira, a NATO preserva o desígnio fundador de “garantir a estabilidade”, é a análise de Tiago Moreira de Sá. "A Aliança foi relevante em vários momentos para Portugal”, diz o professor universitário.

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“Manter os americanos dentro, os russos fora e os alemães em baixo. A frase de Lord Hastings Ismay continua a ser atual. Esse é ainda o principal propósito da NATO nos dias de hoje”, defende Tiago Moreira de Sá, em dia de aniversário da organização.

“O futuro da NATO transcende Trump. O problema é mais de fundo e tem a ver com a perda da relevância da Europa no sistema internacional atual, no qual, cada vez mais, os grandes atores são os Estados Unidos, a Rússia e a China”, sustenta o professor da Universidade Nova e autor de vários livros, entre eles “História das Relações Portugal-Estados Unidos 1776-2015”.

Em entrevista à Renascença, Tiago Moreira de Sá olha ainda a importância da organização para Portugal. “A NATO foi relevante em vários momentos históricos para o nosso país”, afirma o professor universitário.

Os ministros dos Negócios Estrangeiros aliados assinalam, esta quinta-feira, os 70 anos da NATO, em Washington, cidade onde foi assinado o Tratado do Atlântico-Norte, em 1949, com as ameaças da Rússia e o terrorismo como principais desafios sem deixar de olhar para os problemas criados pelas inovações tecnológicas e pela crescente influência da China.

Os tempos são complexos e, ao contrário das celebrações dos 50 e 60 anos da Aliança em grandes eventos, a cerimónia da "terceira idade" da NATO tem lugar sem a presença de chefes de Estado e de Governo. Sem qualquer pompa, resultado de menor circunstância, os ministros dos Estrangeiros serão recebidos esta quinta-feira no Departamento de Estado norte-americano pelo secretário de Estado, Mike Pompeo, para uma reunião na qual esperam tomar decisões sobre os desafios que a Aliança Atlântica enfrenta.

Segundo o secretário-geral da organização, Jens Stoltenberg, o encontro começará por uma análise da relação com a Rússia que, com o seu “comportamento agressivo” face a países vizinhos, como a Geórgia e a Ucrânia, e o incumprimento do tratado para a eliminação de armas nucleares de médio e curto alcance (INF, na sigla em inglês), “preocupa” a organização.

A presença militar russa na Venezuela será outro dos temas a abordar na reunião dos 29 ministros dos Negócios Estrangeiros, de acordo com um alto responsável do Departamento de Estado.

Os MNE terminarão a sua reunião discutindo uma divisão dos encargos mais justa na Aliança Atlântica, uma questão em que o Presidente norte-americano, Donald Trump, tem pressionado os europeus, desde que chegou à Casa Branca.

A NATO venceu a Guerra Fria e, quando podia acabar, encontrou novos desafios. Foi a chave da sobrevivência da Aliança?

Os grandes desafios que a NATO atravessa têm precisamente a ver com as dores do seu sucesso, o facto de ter ganho a Guerra Fria, que era a razão principal para a NATO ter sido criada, nomeadamente a ameaça da União Soviética. De resto, desaparecida a ameaça, vários autores pensaram que a NATO ia desaparecer.

Mas a NATO não desapareceu por duas razões fundamentais: primeiro, pela sua própria natureza - uma aliança simultaneamente de interesses comuns, mas também de valores partilhados, sendo a segunda razão para não desaparecer o dado de que, mesmo depois do fim da Guerra Fria, interessava a todos os protagonistas a sua continuidade.

Aos Estados Unidos interessava porque a NATO era uma forma de exercer o seu poder colossal, o seu poder unipolar pós-Guerra Fria, num âmbito multilateral, evitando que esse poder enorme se tornasse uma ameaça para os outros estados levando-os a criar alianças equilibradoras. Mas interessava também aos países europeus que o essencial da sua defesa, Portugal incluído, continue a depender da NATO e do guarda-chuva nuclear americano.

No quadro pós Guerra Fria e também pós-11 de Setembro, qual é o momento definidor da NATO do futuro? É a anexação da Crimeia, em 2014, a sugerir para um regresso às origens?

Creio que sim. Até diria de uma forma mais de fundo, relacionada com a anexação da Crimeia, que é o ressurgimento da Rússia, traduzido, primeiro, em 2008, na invasão da Geórgia e, depois, em 2014, com a invasão da Ucrânia e anexação da Crimeia. Já para não falar das várias guerras congeladas até aos dias de hoje, não são latentes, mas são congeladas.

A ideia de que a Rússia é uma potência que tem as suas fronteiras congeladas, fronteiras geográficas de hoje que não correspondem às suas fronteiras de segurança e que, portanto, pelo seu próprio interesse de segurança nacional, é necessáriamente uma "potência revisionista".

Esta expressão não encerra nenhum juízo de valor, é uma constatação. As fronteiras geográficas da Rússia não coincidem com as suas fronteiras de segurança. Este ressurgimento de uma Rússia revisionista devolve sentido à NATO. De alguma forma, num regresso às origens para que a aliança foi criada.

Está, então, a NATO de novo envolvida na defesa - no sentido mais tradicional - mas também das ameaças tecnológicas, ciberataques," fake news" disseminadas pelos russos a ameaçar as próprias instituições democráticas do Ocidente, via eleições?

Essa defesa dos ciberataques é, seguramente, um dos desafios e está traduzido nos documentos estratégicos da NATO. As ciber-ameaças são hoje uma prioridade para a aliança, mas diria que o núcleo duro da NATO, da sua natureza, do seu propósito, da sua actuação tem um pouco a ver com aquilo que disse Lord Hastings Ismay, o primeiro secretário-geral da NATO, quando afirmou que a aliança foi criada para "manter americanos dentro, os russos fora e os alemães em baixo". Este continua a ser o principal propósito da NATO.

Manter os americanos dentro numa altura em que a Europa está a perder relevância estratégica para os Estados Unidos. Uma altura em que os Estados Unidos estão numa viragem para Leste e se encontram em retraimento estratégico.

Meter os russos fora pela crescente assertividade russa na Europa de Leste, mas também, num certo sentido, continuar a manter os alemães em baixo. Isto não significa uma atitude anti-germânica. Pelo contrário, significa, até, que, no interesse da Alemanha, a NATO é fundamental para conter a Alemanha e esta questão na Europa é fundamental depois da reunificação alemã.

"Meter os americanos dentro" numa altura em que os desafios externos da NATO são os de sempre, mas os internos não são. Trump - com a relação com Putin, ou exigir aos europeus 2% do PIB para pagar a defesa - pode ser esse desafio interno?

Há uma profunda transformação da natureza da NATO tal como ela é vista pelos Estados Unidos da América.

Anteriormente, era vista como uma comunidade, uma comunidade de democracias, com os Estados Unidos a acreditarem ser uma comunidade que tinha um interesse especial numa relação com a democracia e que as democracias tinham uma legitimidade acima de os outros regimes. E, numa comunidade dessas, os Estados Unidos teriam todos os seus direitos independentemente de cumprirem todos os seus deveres. O que significa que o facto dos estados pagarem, ou não, uma grande parte da sua defesa - por exemplo, 2% do PIB - não é muito relevante.

O que é relevante seria a natureza daquela comunidade de democracias. Como para os Estados Unidos de Trump a questão do relacionamento privilegiado com as democracias é um ponto que desapareceu - Trump quer é relacionar-se com estados fortes sendo ou não democracias - a NATO transformou-se numa pura aliança.

Numa pura aliança, só tem direitos quem paga, só tem direitos quem cumpre deveres. Isto é uma transformação profunda na forma como esta administração em particular vê a NATO.

Mas, objetivamente, Trump é um desafio para a NATO. Trump é o primeiro Presidente norte-americano a ver as alianças permanentes como um mau negócio para os Estados Unidos. Trump é o primeiro a colocar em causa o compromisso dos Estados Unidos com o artigo 5.º da NATO, o artigo da defesa comum.

Mas a questão transcende Donald Trump. Trump é um problema adicional, mas, se fosse só isso, bastava ter paciência estratégia não só porque não dura para sempre como a esmagadora maioria da elite política norte-americana continua a defender a NATO e as alianças permanentes. Mas o problema é mais de fundo e tem a ver com a perda da relevância da Europa no sistema internacional atual em que, cada vez mais, os grandes actores são os Estados Unidos, a Rússia e a China.

Para os Estados Unidos, a perda de importância da Europa faz com que, desde Obama, Washington se esteja a virar para a Ásia por causa da ascensão da China. Viragem a ocorrer também pela própria fraqueza dos estados europeus e da Europa como um todo, via União Europeia que é formidável "soft-power", mas praticamente não existe no plano internacional como "hard-power".

É verdade que um ou outro estado europeu tem alguma relevância militar sendo potência nuclear como o Reino Unido ou a França, mas num mundo de gigantes - Estados Unidos, Rússia e China - os países europeus, individualmente considerados, são praticamente irrelevantes. A passagem do tempo tende a agravar este quadro e não a melhorar.

Nesse contexto, a NATO continua, então, a justificar que na Europa todos se coloquem de acordo e aproximem posições aos Estados Unidos?

Esse acordo é absolutamente fundamental para conferir relevância ao mundo euro-atlântico especialmente numa altura de deslocação do poder para o eixo asiático. É relevante para a Europa poder manter a sua segurança que continua a depender da NATO. É fundamental para Portugal por estas razões e outras adicionais: por um lado evitar a excessiva "continentalização" da Europa que existe desde o fim da Guerra Fria com o alargamento a Leste, com a nova liderança alemã na UE agora agravada com o Brexit e por outro lado evitar a excessiva viragem da Europa a Leste.

Sendo uma aliança euro-atlântica a NATO é fundamental para puxar a Europa para o Atlântico. Portugal é um país europeu, mas do Atlântico, o único país que só tem uma fronteira com o mar, justamente com o Atlântico, e também do extremo ocidental da Europa.

Portugal que aderiu à NATO ainda na ditadura e muito pelo interesse dos norte-americanos nos Açores. E que tem sido relevante ao longo de todos estes anos, por exemplo, na consolidação da democracia...

A NATO foi relevante em vários momentos para Portugal. Foi na ditadura e a razão principal para o convite de Portugal - a única não-democracia nesta espécie de Liga das Democracias - foi a importância geopolítica dos Açores no contexto do pós-Guerra, no contexto da Guerra Fria, mas foi importante, importa dizer, para a manutenção da própria ditadura. A pertença à NATO foi o principal garante, não só para a sobrevivência do regime do Estado Novo, mas também para a manutenção do império colonial.

Na transição para a democracia, a pertença à NATO foi importante pelos canais que havia - via instituições - entre os vários países membros e os militares portugueses. Acabado o período revolucionário, e para devolver os militares aos quartéis, foi importante o trabalho e as missões das instituições NATO, sobretudo a brigada aerotransportada.

E a NATO é importante hoje por ser um grande factor de atracção da Europa para o Atlântico e para evitar uma Europa completamente voltada para Leste. Para conter uma excessiva "continentalização" da Europa, é importante que continue a existir uma forte componente atlântica na União Europeia.

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