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Abusos em Inglaterra. Onde as normas da Igreja são mais duras do que as leis

20 fev, 2019 - 13:59 • Filipe d'Avillez

A lei britânica não obriga os cidadãos a denunciar casos de abuso sexual, mas as normas internas da Igreja sim. O Vaticano tem promovido o regime inglês como modelo para outros países.

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A Igreja Católica de Inglaterra e do País de Gales foi uma das que mais foi atingida pela crise abusos sexuais praticados por membros do clero, com um pico de casos nas décadas de 70, 80 e 90.

Em 2001 um relatório encomendado pelos bispos apontou normas a seguir, que foram, entretanto, aperfeiçoadas e que são rigorosamente aplicadas pelas dioceses, de tal maneira que o Vaticano as recomenda a outros países como um modelo a seguir.

Tal como nos Estados Unidos, as normas internas da Igreja inglesa obrigam os bispos a revelar às autoridades civis todas as suspeitas de casos de abuso. Em conjunto com a polícia, ou Segurança Social, as alegações são investigadas e estabelece-se se são, ou não credíveis. Isto torna as normas mais duras que a própria lei britânica, que não obriga os cidadãos a denunciar casos ou suspeitas.

Cerca de seis anos depois do relatório de Nolan foi completado com uma revisão feita pela baronesa Cumberlidge, da Câmara dos Lordes, que sugeriu estabelecerem-se organismos autónomos em cada diocese, chefiadas por leigos, para rever e monitorizar os casos suspeitos de abuso e como são tratados. Estas reúnem-se numa outra organização, a Catholic Safeguarding Advisory Service, que por sua vez responde perante uma comissão.

Danny Sullivan presidiu a essa comissão durante três anos e diz á Renascença que, tanto quanto sabe, a obrigação de comunicar todos os casos às autoridades é seguida. “Eu sempre apoiei que fosse obrigatório por lei denunciar casos. Mas quando criámos as nossas orientações tornámos obrigatório que qualquer alegação deva ser comunicada imediatamente aos respetivos serviços, seja polícia ou segurança social. Tanto quanto sei isso está a ser seguido”.

Mesmo assim, nem tudo são rosas, diz Sullivan. “De vez em quando ainda nos confrontamos com o problema da autonomia dos bispos. Eu tive de lidar com um bispo que ignorou as orientações nacionais para a nomeação de um coordenador de proteção de crianças e um arcebispo e outro bispo que se recusavam a encontrar-se com as vítimas, e pedir-lhes desculpa, porque os advogados diziam que não o deviam fazer.”

Dois pesos e duas medidas

Mas o mais grave, para Danny Sullivan, é o facto de as ordens religiosas, que são independentes das dioceses, não serem sujeitas ao mesmo rigor. Muitos dos casos mais graves de abusos na Igreja no Reino Unido aconteceram precisamente em colégios internos geridos por congregações religiosas.

“Um dos maiores escândalos – e não me parece que esta cimeira á lidar com o problema – é o sistema duplo de contacto com Roma, entre dioceses e ordens religiosas. Ninguém parece estar a responsabilizar os líderes das ordens religiosas”, diz.

“Como é que este encontro pretende criar medidas concretas quando os representantes das ordens religiosas estão sub-representados e os seus líderes não estão a ser responsabilizados? Quando os bispos de Inglaterra e do País de Gales foram a Roma na sua visita ad limina fizeram uma declaração dizendo que todos os bispos se disponibilizavam para se encontrar com qualquer vítima que o desejasse. Mas nada foi dito pelos líderes das ordens religiosas, eles não fizeram a mesma oferta. As vítimas de membros de ordens religiosas sofrem ainda mais”, conclui.

Na cimeira sobre os abusos participam 190 pessoas, mas apenas 12 são representantes de ordens religiosas masculinas.

O britânico dá um caso concreto, que continua a acompanhar. “As nossas orientações são boas. O Vaticano gostou delas e recomendou-as a outras conferências episcopais no mundo. Mas se conversar com as vítimas dos combonianos eles perguntam de que servem as orientações se não forem seguidas? Se eles se recusam a encontrar-se connosco? Se não se relacionam connosco?”

“Os combonianos só se encontram com as vítimas em tribunal. Enquanto este escândalo continuar a existir eu seria muito cauteloso em dizer que Inglaterra é um bom modelo, porque um modelo só é tão bom quanto o seu elemento mais fraco e ainda temos uns elementos muito fracos em Inglaterra e no País de Gales.”

Danny Sullivan chegou a viajar com algumas destas vítimas a Roma, onde o acolhimento foi bem diferente. “Estivemos na missa com o Papa Francisco e eu nunca ouvi qualquer bispo, arcebispo ou cardeal a identificar, como ele fez, a experiência vivida de uma vítima de abusos. Ele disse tudo: alcoolismo, drogas, incapacidade de estabelecer ou manter relações e marginalização da Igreja. Eu estava sentado ao lado de uma vítima que fundou uma organização para ajudar outros. É um tipo muito calejado. Mas ele estava em lágrimas e disse-me que nunca ninguém na posição tinha falado daquela maneira”.

“Quando escrevi sobre isso, num jornal inglês, comparando os atos dos combonianos com as palavras do Papa, o líder da ordem em Inglaterra atacou-me! Foi inacreditável”, recorda.

O especialista inglês é muito cético quanto à capacidade de a Igreja resolver esta crise sem ajuda exterior, nomeadamente sem o envolvimento dos leigos. “Penso que os menores só estarão seguros na Igreja quando se reconhecer que o abuso está diretamente relacionado com o abuso de poder e quando aqueles que estão em posições de responsabilidade e abusam, ou encobrem os abusadores, forem rapidamente tratados pelos sistemas criminais dos seus países e da Igreja”.

“Enquanto os leigos não se tornarem parte do processo de decisão na Igreja, então uma elite clerical continuará a fazer as regras e a decidir como as seguir”, lamenta.

[Notícia atualizada às 14h39]

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