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​Ciclistas de inverno

20 fev, 2019 - 10:00 • Pedro Filipe Silva *

​O que faz um ciclista quando a época termina? Rúben Guerreiro e Rafael Reis revelam todos os pormenores dos quatro meses de inverno. Disciplina, trabalho duro e muitas privações são segredos de uma preparação cirúrgica.

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Quem pensa que o ciclismo é apenas um “part-time” desengane-se. Esta é uma profissão como qualquer outra e no inverno as bicicletas não ficam na garagem. Em Portugal é mais difícil explicar e fazer parte desta realidade, mas no estrangeiro as condições oferecidas são cada vez melhores e há um entendimento diferente da profissão, por parte de quem não faz parte do meio.

Rúben Guerreiro, da Katusha-Alpecin, e Rafael Reis, que este ano regressou à W52-FC Porto, revelam, em conversa com a Renascença, como passam o inverno. São, praticamente, quatro meses sem competir, mas com muito trabalho e disciplina, numa preparação pensada ao milímetro.

“Só competimos de janeiro a outubro. Paramos um pouco em outubro, 15 ou 20 dias, mas começamos logo ginásio, natação e bicicleta, outra vez. Nós não paramos, apenas temos umas férias. Quando me questionam o que faço e eu respondo que sou ciclista profissional perguntam logo: ‘consegues viver disso?’ Principalmente no nosso país é uma realidade diferente, porque o desporto rei é o futebol. Se for noutro país e nós dissermos que somos ciclistas profissionais, as pessoas entendem isso de outra maneira”, conta Rafael Reis, de 26 anos, que nas duas últimas épocas correu pela espanhola Caja Rural.

Rúben Guerreiro tem 24 anos. Aos 20, decidiu ingressar numa equipa internacional, de sub-23, a Axeon. O maior sonho deste jovem começou a cumprir-se há dois anos quando chegou ao World Tour, a primeira liga do ciclismo. Esteve na Trek-Segafredo duas épocas e este ano surgiu a oportunidade de vestir as cortes da Katusha-Alpecin.

Ao atingir o topo do ciclismo mundial Rúben Guerreiro tem a plena noção onde está. “Não pode haver falhas. A exigência física é muita. Temos de estar sempre bem fisicamente e com uma capacidade mental muito forte”, diz Rúben que este ano começou a época da melhor maneira. Terminou no 8º lugar o Tour Down Under, na Austrália, em janeiro.

Trabalho e disciplina são ingredientes essenciais

Este resultado é fruto de um duro trabalho e de muita disciplina, sublinha: “Acaba por ser um trabalho muitas vezes por conta própria. Temos de ter responsabilidade. E requer também muito descanso, porque o descanso tem de fazer efeito. Às vezes é mais importante que o próprio treino, tem de compensar. O corpo tem de recuperar e estar pronto para outro dia de carga. Assim faz-se uma evolução física. Temos de ter muita disciplina e muito rigor”.

Tudo é mais fácil com a equipa. Massagistas, nutricionistas e mecânicos, 24 horas por dia. Quando não tem provas é na Serra da Arrábida que Rúben se prepara. Trepador, mais dado à montanha, o jovem que vive em Pegões, tem muitas vezes a companhia do amigo Rafael Reis, que é de Palmela, ali mesmo ao lado.

Sem competição, há muitas rotinas que não podem falhar

Rafael está de regresso, este ano, à equipa portuguesa W52-FC Porto, onde esteve em 2016. O conjunto portista subiu segundo escalão do ciclismo mundial, tem estatuto Pro Continental, e foi a esse nível que Rafael Reis esteve nas últimas duas épocas, na Caja Rural. O nível é exigente e por isso há uma rotina para cumprir, desvenda Rafael. “Levantamo-nos sempre 8h00 da manhã e toma-se o pequeno almoço. Saímos por volta das 10h00. Começamos a fazer um treino de cinco horas. Na Arrábida, por exemplo, que é a nossa zona de treino, damos duas voltas. Paramos um pouco para abastecer, com um café e um bolo para dar mais duas voltas. Já chegamos a casa depois das três da tarde e almoçamos. Descansamos um bocado e ao final da tarde podemos ter massagem. Jantamos e dormimos”, descreve o ciclista, que explica ainda que cada treino é desenhado ao pormenor por quem sabe.


“Temos preparadores pessoais, que são pessoas que nos acompanham. Agora é tudo muito fácil com a tecnologia. Temos muitos dados e é fácil ver o que somos aptos. Os treinos vêm por parte deles e nós temos de concordar com isso”, diz o jovem do FC Porto, à reportagem da Renascença.


O rigor e disciplina no ciclismo profissional passa também pela alimentação, o ponto franco de Rúben Guerreiro. “Para mim é muito difícil, porque eu gosto muito de comer, talvez a parte mais difícil. Como se diz na gíria ciclista, eu gosto de andar sempre ‘fininho’ e então tento cuidar-me. Nos dias de descanso é mais difícil, não posso ingerir tantos carboidratos porque se não transformo em gordura, mas quando tenho uns dias duros, ou treinos grandes, gosto de fazer uma alimentação mais forte. Gosto de comer massa, arroz, batata cozida, batata doce, carnes, pão e tudo. Mas passo muito frio nos dentes”, graceja.

Rúben recorda, por exemplo, o último ano. “Foi péssimo, porque eu ia para a Austrália na semana seguinte e tive que me cuidar porque era uma corrida World Tour e tinha objetivos. O peso era mesmo fulcral e tive de me cuidar no Natal e então foi uma má recordação não poder comer um doce, ou dois, a mais”, lamenta.

Já Rafael Reis não sofre tanto com a questão da alimentação: “Gosto de comer pão. Gosto de comer torradas com requeijão, com fiambre e queijo, com abacate, manteiga de amendoim. Vou variando assim com um chá. É simples, mas é isto”.

Amigos no treino. Adversários em prova.

Rúben Guerreiro e Rafael Reis já perderam a conta aos anos que são amigos. Cresceram juntos neste desporto e quase todos os dias têm a companhia um do outro nos treinos.

Quando se trata de competição, a história tem de ser diferente. “Há o respeito porque nos conhecemos e estamos juntos quase todos os dias, mas em competição penso que se for um momento decisivo temos de saber separar as coisas e ir à luta”, diz Rafael.

Rúben concorda, mas diz que é uma situação “fácil gerir”. “Podemos partilhar as mesmas estradas, dias de trabalho e treinos. Em corrida temos também fases que dá para descontrair e falar, outras que temos de competir. O ciclismo é um desporto diferente”, ressalva.

Os dois portugueses terão oportunidade de partilhar as estradas do Algarve, já durante esta semana, na prova que reúne algumas das principais estrelas do ciclismo mundial. Um primeiro grande teste à longa preparação de inverno.

*com Sílvio Vieira (edição)

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