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Inquérito à CGD: “Partidos montam novo ‘número Mortágua/Melo’ para ganhar votos”, acusa Nuno Garoupa

03 fev, 2019 - 15:31 • José Bastos

“PS, PSD e CDS vão investigar o que PS, PSD e CDS andaram a fazer durante 15 anos”, ironiza o professor da George Mason University. Garoupa defende comissão de técnicos independentes para investigar Caixa.

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“Como é que os partidos acham que – eles próprios – se vão investigar a eles próprios?”, é a perplexidade de Nuno Garoupa depois do banco público Caixa Geral de Depósitos ser tema de uma nova comissão de inquérito que pretende apurar se houve ‘interferência política’ nos processos de decisão de créditos com valores mais altos desde 2000. A proposta foi consensualizada entre CDS, PS, BE e PSD e o trabalho da comissão será em contra-relógio com eleições gerais a 6 de Outubro. A comissão para perceber 1,2 mil milhões de imparidades no banco público deverá ser anunciada a 14 de Fevereiro.

“Não consigo perceber como é que esta questão da CGD não é colocada ao nível da dos incêndios e não é uma comissão técnica independente a investigar e apurar o que se passou no banco público. O parlamento simplesmente devia chamar três ou quatro técnicos independentes para fazer o levantamento destas questões que, depois, então como comissão técnica independente, chegam às conclusões que entenderem”, insiste Nuno Garoupa no Conversas Cruzadas deste domingo.

“E, portanto, a minha conclusão é que os partidos acham que vão poder montar, outra vez, um número Mortágua', ou um 'número Nuno Melo', ou ainda um 'número Cecília Meirelles' e, com isso, vão ganhar votos. Ou seja, que alguns dos deputados na comissão vão ter imensa atenção mediática e, com isso, conquistar votos. Não vejo outra razão como é que os partidos acham que se vão investigar a si próprios”, faz notar o professor da George Mason University Scalia of Law, de Arlington, na Virginia.

“A Comissão Parlamentar à CGD em ano eleitoral tem como consequência os partidos acharem que ganham pontos eleitorais. Contudo acho que esta questão da CGD é um conjunto lato de várias vergonhas e gostava de destacar as duas vergonhas que me parecem mais clarividentes - há ainda a terceira vergonha que nem vou comentar que é a forma como o relatório se tornou público”, prossegue o especialista na relação entre a economia e justiça.

“Uma das vergonhas é a Comissão Parlamentar de Inquérito. E porque acho importante? Porque o PS, o PSD e o CDS - e, há-que, dizer o PS com o grosso da responsabilidade, mas PSD e CDS com alguma - decidiram que vão investigar o que PS, PSD e CDS andaram a fazer durante 15 anos. Portanto isto é de uma lógica clarividente”, observa com ironia Nuno Garoupa.

“Privatizámos o apuramento de responsabilidades criminais e cíveis para uma sociedade de advogados”

“Os três partidos responsáveis há 30 anos pelas administrações da CGD vão investigar o que esses partidos andaram a fazer na CGD nos últimos 15. Na minha opinião com uma ligeira agravante: é que ainda não ouvi - e pode ser por estar em Arlington e não oiço tudo - nem PS, nem PSD, nem CDS fazer qualquer mea-culpa. Não houve qualquer assumir de responsabilidades públicas sobre o assunto. Portanto os três partidos vão investigar os três partidos que não assumem, para início de conversa, qualquer responsabilidade sobre o que veio a público”.

“Esta é a vergonha 1. A vergonha 2 tem a ver com as responsabilidades criminais e cíveis decorrentes decorrentes do que já sabemos”, antecipa Nuno Garoupa. Em causa as consequências da auditoria dentro da CGD. Embora tenha recusado receber o documento, o governo pediu à administração da CGD para averiguar a eventual responsabilidade civil na tomada de decisões nos órgãos de cúpula do banco público. A análise está a ser feita por assessores jurídicos externos (da sociedade Vieira de Almeida).

“Eu pensava que num estado de direito democrático quem determina essas responsabilidades - tendo em conta ser um banco público - é o estado”. Prossegue Garoupa. “Fico surpreendido quando o estado decidiu privatizar essa função e privatizar para uma sociedade de advogados. E para não ser acusado de estar a especular, ou não estar a ser rigoroso, vou ler o que o diário PÚBLICO escreveu sobre isto”, insiste o professor da George Mason University.

“Escreve o PUBLICO: ‘no plano das responsabilidades criminais, o gabinete de advocacia Vieira de Almeida foi seleccionado por concurso - depois sabemos que é adjudicação directa. Essa responsabilidade, contudo, levanta questões de conflitos de interesse que o gabinete da Vieira de Almeida já acautelou emitindo uma declaração de que não há conflito de interesses.", continua Nuno Garoupa.

“E porque poderia haver conflito de interesses? Escreve ainda o PUBLICO. ‘Porque João Vieira de Almeida, líder da Sociedade de Advogados Vieira de Almeida foi um dos rostos opositores a Jardim Gonçalves, tendo estado directamente envolvido na luta de poder que se travou dentro do BCP e que criou um rombo - e continuo a ler o PUBLICO - de 600 milhões na Caixa Geral de Depósitos. Para além disso é conhecido que um dos clientes da Vieira de Almeida é Manuel Fino citado na própria auditoria por ter provocado outro rombo de quase 200 milhões na CGD, mas, segundo a Vieira de Almeida não há conflito de interesses, porque dizem que não há...”

“Portanto, vergonha 2: privatizámos o apuramento de responsabilidades criminais e cíveis para uma sociedade de advogados - e agora já não estou a citar o PUBLICO - que tem um conjunto de conflito de interesses muitíssimo forte. E, portanto, parece-me que tudo isto reflecte apenas uma degradação das insituições que, sinceramente, nesta altura, já não me surpreende, mas preocupa-me”.

“A responsabilidade criminal deve ser apurada pelo Ministério Público que é para isso que existe MP. Não é uma sociedade de advogados que deve agora apurar responsabilidades. Agora ao contratar-se uma sociedade de advogados com conflito de interesses há uma tentativa de desvalorizar o Ministério Público e de criar, pelo menos, duas possíveis versões dessa responsabilidade penal o que indica em si já um problema grave".

Luís Aguiar-Conraria: “É muio difícil colocar alguém a legislar contra os seus próprios interesses”

“Fico quase em palavras”, reage Luís Aguiar-Conraria Não há muito a dizer. A não ser que os conflitos de interesses são não só os referidos por Nuno Garoupa, mas ainda mais abrangentes. Também sublinho que teremos PS, PSD e CDS a investigar o que PS, PSD e CDS fizeram. Em si mesmo todo um conflito de interesses, mas também mostra a falta de independência das nossas instituições. A rede está em todo o lado, a mistura de interesses está em todo o lado e as pessoas já não estranham. E em Portugal o conflito de interesses é algo que quase parece ser um insulto pessoal. Como se dizer que alguém tem um conflito de interesses é como já estar a dizer que essa pessoa é corrupta e vai comportar-se de forma errada.

Confunde-se conflito de interesses com corrupção, mas este caso que o Nuno Garoupa referiu é um caso extremo. É enorme o poder das sociedades de advogados na Assembleia da República. Um dos motivos pelos quais é impossível fazer uma reforma da justiça consequente em Portugal é precisamente porque os principais interessados em que não haja uma reforma de justiça estão no parlamento. É muito difícil colocar alguém a legislar contra os seus próprios interesses. Este é mais um caso. Vamos ver.

Já Nuno Botelho insiste na responsabilidade da classe política. “Acrescentaria que os conflitos de interesses estão não só no parlamento, mas também no governo. As consultoras e as sociedades de advogados são algumas das grandes responsáveis por esta promiscuidade a que, durante os últimos anos, assistimos em Portugal. É evidente que quando estamos a discutir uma situação 'criminosa' como esta na CGD - não há outra palavra - os partidos devem aproveitar para extrair consequências, criar exemplos e a partir daqui moralizar o sistema”, defende o jurista e empresário.

“Os partidos só se credibilizam se as pessoas perceberem que está a haver um trabalho de fundo, de regeneração a ser feito para que estes cenários não se repitam. O que o Nuno Garoupa aqui referiu mostra exactamente o contrário: que o sistema, uma vez mais, vai metabolizar esta polémica, vai engolir esta auditoria através de uma comissão de inquérito que nada vai trazer de novo e por mais palavras que daí possam sair vamos ficar com desconfianças várias”, diz Nuno Botelho.

“Apesar de tudo eu quero muito acreditar - e tenho essa esperança - que os partidos percebam ser esta uma oportunidade de redenção, regeneração e se relegitimarem perante o eleitorado. Quero acredito nisso, mas, no entanto, estou desconfiado”, admite o presidente da Associação Comercial do Porto.

Nuno Garoupa: “Com o actual sistema penal não é possível desmantelar um regime cleptocrático”.

E na semana em que se iniciou a instrucção do processo Marquês a possibilidade de, no final, não haver condenações é objecto de análise no Conversas Cruzadas. “Acho que seria um profundo golpe no regime, mas acho que o regime também ele próprio está num estado de degradação que exibe isso. Volto a insistir nos números: só 3,8 milhões dos 8,8 milhões de eleitores é que votam no PS, PSD e CDS. Portanto o problema é que o regime viveu à volta desses três partidos como se eles fossem a grande maioria dos portugueses, mas não, PS, PSD e CDS já são uma minoria, porque há 5 milhões que não votam neles”, insiste Nuno Garoupa retomando uma tese que lhe é cara.

“O próprio regime já está em degradação. Agora a questão que se coloca é: é possível com a actual justiça penal desmantelar um regime cleptocrático? – que, no fundo, foi o que tivémos durante uma fase da nossa história democrática e que foi um regime cleptocrático. É possível? A minha resposta é não. Este sistema não funciona. E isso é óbvio para toda a gente menos para os juristas e para os penalistas que insistem em que o sistema funciona. O sistema não funciona. Não vai produzir nada. Nós já estamos a assistir a arquivamentos, a penas que não correspondem, depois há teorias de que, afinal, não condenar é que é bom, porque isso é 'a justiça a funcionar' como se o país tivesse recursos para andar em inquéritos e em processos em que ninguém é condenado”, defende o professor da George Mason University Scalia of Law, da Virginia.

“Portanto eu acho e continua a repetir: a justiça penal portuguesa não funciona, não pode funcionar com os pressupostos e com os recursos orçamentais disponíveis neste momento e temo que, evidentemente, muitos destes processos acabem ou arquivados, ou sem produzir as condenações exemplares que o país precisa de ver e, pelo menos, os cleptocratas a serem condenados”, conclui Nuno Garoupa.

Nuno Botelho: “Os tempos não são de grande optimismo”

“Concordo que não é muito possível desmantelar o regime cleptocrático”, diz Nuno Botelho. “A rede de promiscuidade é tal - e não é só na CGD é também noutros bancos - que leva a que neste sistema, recorrendo a uma expressão popular o 'crime compense'. Andamos a arrastar problemas durante anos, investigações, apuramento de indícios, provas, instruções e, depois, não se chega a nada”, defende o jurista.

“Em Portugal a culpa vive solteira como dizia Luis Aguiar-Conraria. Essa é a questão central de tudo o que é partido político e de tudo o que gravita à volta do estado. Primeiro foram anos de autêntica cleptocracia - não há outra forma de colocar a questão - e, anos depois, continuamos a sentir não ter havido consequências práticas criminais dessa actuação”, diz Botelho.

“Os tempos não são de grande optimismo, mas acho que, apesar de tudo, o escrutínio é maior hoje que há dez anos, os processos funcionam melhor que há dez anos, independentemente de muitos dos protagonistas ainda serem os mesmos. Apesar de tudo, hoje o sistema tem maior capacidade de auto-controlar do que tinha, mesmo continuando a viver sem responsabilidade criminal em múltiplas questões”, remata Nuno Botelho.

Luís Aguiar-Conraria: “Não se fala da reparação destes crimes”

Luis Aguiar-Conraria, por seu turno, não esconde preocupações e aponta para a necessidade de, nestes processos, se apostar na recuperação de activos “Concordo com o Nuno Garoupa, mas chamo a atenção para um aspecto: como é que o processo Marquês vai acabar?. É evidente que hoje sabemos muitas coisas que há dez anos era mais difícil de saber, mas se este processo não acabar em condenações, em castigos, pode levar à desacreditação completa do sistema. Ainda dá para não sermos derrotistas, mas se isto não desenbocar em esclarecimentos claros e em condenações... porque é impossível não olhar para o que fomos sabendo e não ver uma série de crimes, não há outra expressão possível. Se o desenlace forem penas suspenas ou penas muito leves”, diz o professor da Universidade do Minho.

“Ou se único culpado for Armando Vara”, contrapõe Nuno Botelho. “Ou se o único culpado fôr Armando Vara e nós a saber dos vários milhões de euros que ele tem”, prossegue Conraria. “E onde está o pedido de devolução desse dinheiro? Parece que as pessoas podem roubar à vontade. Confesso sinceramente: alguém roubar milhões de euros para ficar cinco anos na cadeia, se calhar, vale a pena. Portanto, há a parte da reparação dos crimes que é um ângulo muito pouco falado em Portugal. Não se fala da forma como se aceita que Portugal que estes milhões desapareçam.

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  • J M
    04 fev, 2019 Seixal 17:17
    A justiça em Portugal não é independente do poder político. Os corruptos, os ladrões e os vigaristas de colarinho branco, filiados nos partidos do arco do poder sempre se refugiaram na magistratura, porque sabem que há-de aparecer um juiz “pau mandado” para os ilibar dos crimes que cometeram, ordenando a destruição das provas. O segredo de justiça é o início do processo de branqueamento das fraudes cometidas, depois são ilibados por falta dessas mesmas provas. Quando alguém do partido é interpelado a dar uma opinião sobre um camarada (ou colega de partido) corrupto, a resposta é sempre a mesma: O assunto está entregue à justiça; O assunto está em segredo de justiça; temos de confiar na justiça; temos de deixar a justiça fazer o seu trabalho. A política e a advocacia é unha com carne. Não é por acaso que as sociedades de advogados através dos seus lacaios, fazem-se representar em maioria na Assembleia da República disfarçados de deputados, a extorquirem o erário publico, e ao mesmo tempo fingem defender os interesses da nação. São estes os escroques que têm delapidado o país ao longo destes últimos quarenta anos, com a promiscuidade da justiça. A nossa soberania tem sido vendida a retalho aos estrangeiros, a divida pública não pára de subir, por mais impostos que paguemos, o dinheiro nunca chega para satisfazer as necessidades das instituições. Mas o povo gosta. Com um empurrãozinho, as “tevês” conseguem alienar alguns dos 3,8 dos 8,8 milhões de eleitores, a votarem no PS, PSD e CDS, os restantes 5 milhões, passam o tempo de legislatura em legislatura a lamentarem-se. Volta José Sebastião de Carvalho e Melo que estás perdoado.
  • Avelino Rosas
    03 fev, 2019 Aveiro 17:21
    Em pleno ano de 1995,em Itália na justiça assistimos a Juízes prenderem Juízes.Nesse mesmo ano ouvi de um gestor industrial a seguinte frase: "EM PORTUGAL ENQUANTO NÃO HOUVER JUÍZES A PRENDER JUÍZES ",este país não vai a lado nenhum.Estamos em 2019 e nada disso aconteceu.A minha homenagem ao economista autor da frase que citei. (Dr. Gastão de Melo).

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