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D. Rui Valério. Casos como o de Tancos "em nada diminuíram o prestígio das Forças Armadas"

22 jan, 2019 - 06:30 • Ana Rodrigues com redação

O novo bispo das Forças Armadas defende, em entrevista à Renascença, que o fim do serviço militar obrigatório deixou "um vazio" de cidadania em Portugal.

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A nomeação apanhou-o de surpresa, mas D. Rui Valério depressa percebeu que a escolha do Papa Francisco encaixava na perfeição.

Quer estar próximo da sua gente, dos militares e polícias portugueses, homens e mulheres que servem a pátria, cá ou em teatros de guerra.

São Tomé e Príncipe, para onde partiu esta semana, será apenas o ponto de partida para um périplo que vai levá-lo também à República Centro-Africana, país em guerra onde as tropas portuguesas estiveram recentemente envolvidas em confrontos.

D. Rui Valério foi ordenado Bispo das Forças Armadas em outubro de 2018. Estamos em janeiro. O que tem feito nestes primeiros meses?

Estes primeiros tempos têm sido, em primeiro lugar, de apresentação às diversas unidades e aos diversos ramos, ao mesmo tempo que há uma coincidência nessa apresentação de celebrações. Um dos motivos que levou o senhor Núncio Apostólico a antecipar tanto a ordenação Episcopal do Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança foi a iminência da aproximação do Natal.

Naquelas semanas que antecederam a celebração do nascimento de Cristo, do filho de Deus, fiz quase um périplo por todo o país, em diversas unidades, onde estive com as mulheres e os homens que servem Portugal nos quartéis, onde estive com mulheres e homens que servem Portugal na GNR, na PSP.

Estes primeiros tempos, poderíamos dizer que é um reencontro com uma realidade que eu, no fundo, já conhecia substancialmente bem, até pelo meu percurso e experiência de vida, uma vez que estive na Marinha como Capelão durante alguns anos. Por outro lado, é também uma ocasião para descobrir coisas novas ou pelo menos para passar a olhar para coisas de sempre, mas de um outro ponto de vista, de uma outra perspetiva.

E nessas visitas, pareceu-lhe que as pessoas estão motivadas? Porque é que, na sua opinião, procuram as Forças Armadas?

O que sinto é que, pelo menos fruto da minha experiência, existe uma grande confiança, acreditam naquilo que estão a fazer. Não é só para preencher, talvez, um vazio de exigência profissional que se tornam militares, mas porque começam por acreditar na missão das Forças Armadas e nas Forças de Segurança, naturalmente, e isso é muito belo. Significa que há aqui uma consciência de que, sobretudo nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança, quem envereda por este projeto, por esta carreira, o faz não apenas em vista de si próprio - uma autorrealização, de um aconchego de uma segurança que uma profissão dá -, mas fá-lo também motivado por um certo sentido de fazer bem ao próximo, fazer bem ao outro e com espírito de missão, se quisermos dizer assim. É isso que eu tenho encontrado.

É isso também que o aproxima destas pessoas? Sendo que também é um padre missionário...

Afirmativo. Não vivi a minha passagem do Seminário ou da Universidade Pontifícia para um quartel, nomeadamente para a Academia Militar, como uma coisa completamente diferente, como um solavanco, como uma viragem a 180 graus. Vivi isso como uma continuidade. E isto, dia após dia, está a confirmar-se.

Há aqui uma sintonia, uma solidariedade de intentos, que me faz acreditar que efetivamente a nossa diocese das Forças de Segurança e das Forças Armadas é uma diocese missionária. Não apenas no sentido de que é um campo de missão que o bispo tem aqui à sua frente ou que os capelães têm aqui à sua frente, mas é uma diocese missionária, no sentido de que todas as mulheres e homens que ali servem, que ali vivem, que ali se encontram, têm dentro de si também este espírito missionário.

Eu acredito que esta vertente não seja de todo estranha ao facto de hoje ser muito assinalado esta nossa presença em missões internacionais. Portanto, há todo um clima que se gera. Depois também é verdade que, as tragédias, sobretudo do ano passado relacionada com os incêndios, que dizimou não apenas bens paisagísticos, mas também bens pessoais, onde as Forças Armadas e Forças de Segurança se mantiveram na linha da frente, no serviço do outro.

E esse papel é muitas vezes esquecido, não tem tanta visibilidade como as missões internacionais. É isso que pensa?

É isso que eu digo, mas sobretudo há também ainda, na minha opinião, uma certa deficiência em termos de consciência da sociedade no seu todo. Ainda estamos muito habituados a olhar para as Forças Armadas e para as Forças de Segurança apenas no sentido estrito da Defesa, no sentido estrito de quem anda com uma arma a lutar pela paz e a implementar a paz.

Ora aquilo que, na minha modesta opinião, teria sido necessário ser feito no passado, mas que estamos ainda a tempo de o fazer, é colocar ao país e à sociedade esta pergunta: o que é que Forças Armadas davam à nação, através do Serviço Militar Obrigatório, e que hoje efetivamente não está a ser promovido ou não está a ser oferecido? Eu acho que as Forças Armadas transmitiam não apenas aquela missão estrita, no sentido de ser de defesa, mas um sentido de cidadania que, eu verifico, nem a escola, nem as famílias, com todo o respeito que merecem da minha parte, foram ou estão em grado de o transmitir como faziam as Forças Armadas.

Então, na sua opinião ficou um vazio?

Claro que ficou um vazio. Quando falo de participação de cidadania é num sentido muito lato. Não é só no sentido de ter valores, não é só no sentido de ser capaz de reconhecer esta necessidade e esta urgência de "eu não posso viver apenas para mim, em vista de mim", mas falo em coisas muito mais práticas e concretas. Quanto espírito de empreendedorismo, como hoje se diz, foi oriundo de rapazes e de raparigas que passaram pelas nossas fileiras?

Mas como é que essa relação, Forças Armadas e Forças de Segurança e jovens, volta a ser próxima sem o serviço militar obrigatório?

Eu acho que é um problema, um desafio que deve ser colocado à sociedade. Não apenas aos responsáveis políticos ou nem sequer apenas aos responsáveis militares. É um desafio que a sociedade, no seu todo, tem que ser chamada a pronunciar-se. O que é que Portugal, concretamente, perdeu ou deixou de ter com o fim do Serviço Militar Obrigatório e que ainda não houve uma Instância capaz e em grado de substituir e de colmatar? Esta é a pergunta que tem de ser feita.

Eu, na minha opinião, acho que se perdeu qualquer coisa, nomeadamente no capítulo da cidadania, como conceito lato, sobretudo neste sentido de uma participação activa na construção do bem comum, que passa pelo respeito, passa pelo reconhecimento.

É um conceito muito lato e isso está um bocadinho, na minha opinião, deixado assim ao critério de subjetivismo, ou seja, se a pessoa, se o adolescente ou o jovem tem a sorte de empreender uma caminhada na família, na escola ou de outra natureza, inclusivamente numa paróquia ou numa igreja que verdadeiramente ajude no trilho, OK. Mas isso não quer dizer que esteja à partida garantido.

Penso que o país deveria fazer esta reflexão: se, ao fim ao cabo, nós passámos a despender ou a poupar mais ou menos com o fim desse projeto de que nós falávamos há pouco e que, quer queiramos, quer não, era uma forma de, pelo menos, um conceito amplo de cidadania que é muito abrangente - tem lá dentro inclusivamente memória, tem lá dentro a esperança no sentido de rasgos de perspetiva para o futuro.

Mas não defende o regresso do serviço militar obrigatório?

Não. Quem sou eu para estar aqui a avançar com uma proposta destas? O que eu digo é que é urgente e necessário tomarmos consciência de que cidadania, no seu todo, não é só apenas o reconhecimento da bandeira, dos símbolos nacionais. Não é só isso. É espírito de iniciativa. É ser capaz de contornar um problema. É ser capaz de jogar naquela equipa das soluções e não estar sistematicamente naquela equipa dos problemas, das dependências. A cidadania transmite-nos tudo isso.

Disse quando foi nomeado que era importante ser um bispo de proximidade. Foi por isso que decidiu fazer essas visitas aos quartéis que tem andado a fazer e que agora se compromete a fazer as visitas as forças nacionais destacadas?

É curioso, e ao mesmo tempo muito belo, este horizonte da missão e da proximidade, porque houve aqui uma confluência de circunstâncias que me levam a dizer que é verdadeiramente esse caminho que o Senhor, através da ação do Seu espírito quer para o meu mundo, para o exercício do meu magistério episcopal, como bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança.

Repare, a minha eleição e a minha nomeação aconteceram em pleno ano missionário. A minha consagração episcopal aconteceu no Mosteiro dos Jerónimos que tem uma relação única com a epopeia missionária dos portugueses.

Depois, faço nota e registo que os próprios dois senhores ministros que tutelam as áreas onde sou bispo, que é das forças de segurança, o professor doutor Eduardo Cabrita, e das Forças Armadas, professor doutor João Cravinho, não se cansam de referir que é um bispo missionário que temos aqui. Inclusivamente o senhor chefe Estado-Maior General das Forças Armadas, o senhor Almirante Silva Ribeiro, faz questão de me recordar, quando eu vou ás unidades, que eu sou um bispo missionário. Portanto, há aqui uma consonância de perspetivas que me facilitaram a vida, no sentido em que vou progredir e realizar a minha missão. É exatamente neste sentido de que falava: ir ao encontro. Esta é a palavra-chave. Ir ao encontro, dar o primeiro passo, sair da zona de conforto.

E vai visitar todas as forças nacionais destacadas? Iraque, Afeganistão, República Centro-Africana?

A ideia é essa mesma. A visita que agora irei fazer a São Tomé é o começo, é a primeira de uma serie delas que se seguirão. Nós, como sabe, temos ali a guarnição do nosso navio "Zaire", que está ali já há um ano e alguns dias ou semanas, em São Tomé.

Irei visitá-la e, ao mesmo tempo, irei contactar com a realidade local. Irei encontrar-me com a igreja e com a sociedade civil de São Tomé, naquele sentido de incrementar e preencher aquela união e aqueles laços que historicamente nos unem, não apenas pela língua, mas também, pela fé, sendo que uma das ações que irei ter é a celebração de uma Eucaristia campal.

Depois irei também visitar instituições de cariz social, que são regidas por missionários e por missionárias. Esta proximidade com as nossas mulheres e homens que servem em Portugal e que servem a paz através das Forças Armadas é efetivamente específico da minha missão e também da minha identidade como bispo.

A República Centro-Africana também vai receber a sua visita. O que é que sentiu ao ouvir as notícias dos confrontos violentos que têm acontecido na República Centro-Africana e que têm envolvido os militares portugueses?

A primeiro reação que brotou imediatamente no meu coração foi aquela de me retirar em oração. Eu sei que o fiz num contexto que não era sequer numa igreja. Eu estava em Lisboa, estava para participar numa atividade cultural quando recebi a informação do que sucedia nesse teatro, eu retirei-me silenciosamente em oração para acompanhar e para pedir e para entregar as nossas mulheres e homens que ali servem Portugal nas mãos de Deus e nas mãos de Nossa Senhora da Paz.

Senti que é a forma privilegiada de estarmos em comunhão com alguém. Senti essa dor, essa incerteza que os nossos militares se sentiram, como se fosse minha, como se tivesse a ser vivida por mim. Tanto mais que com o senhor general português Serronha, e que é o segundo comandante daquela força e que é o responsável pelos nossos militares, há toda uma relação e uma permanência de contactos em que me faz estar próximo de todos eles.

Já sabe quando é que vai ser essa essa visita à República Centro-Africana ?

Como deve compreender, neste momento é altamente arriscado avançar com uma data. Compreende-se o porquê. A ideia era que quando a visita ocorresse, eu pudesse encontrar-me com pelo menos todos eles e com cada um. Neste momento não é dito que isso seja possível, exatamente por aquelas circunstâncias de que os militares, como deve compreender e que conhece pessoalmente, nem sempre estão reunidos na mesma localidade e com disposição de receber quem os vai visitar.

Portanto, neste momento, pelas notícias que nos chegam, trata-se de uma ação que está a ser bastante proativa, o que significa que há um desdobramento do pessoal, em que é preciso garantir uma segurança, é preciso tudo fazer para promover a paz e que obriga, exatamente, ali a uma circularidade de pessoal. Quando o senhor General Serronha me falou a primeira vez desse projeto, a ideia era permanecer lá até durante alguns dias, eventualmente uma ou duas semanas, para ter uma visão e poder acompanhar no seu conjunto todos esses nossos homens que ele estão destacados.

As Forças Armadas têm estado, como sabe, envolvidas em vários casos polémicos que têm fragilizado a instituição militar. É o caso de Tancos, da corrupção nas messes da Força Aérea, o caso das mortes no curso de Comandos. Fica triste com todos estes casos? Como é que vê que Instituição militar possa recuperar o prestigio de outros tempos?

Da minha parte como bispo, daquilo que é o meu esforço, é exatamente manifestar, revelar e expressar que todos e cada um desses casos, em nada belisca a dignidade, a integridade e o sentido superior em termos de valor e em termos de caráter que caracterizam as mulheres e os homens das Forças Armadas e Forças de Segurança.

Costuma-se dizer, em bom português, que não é por causa de uma andorinha que deixa de ser primavera ou que não é por causa de um alho que deixa de haver uma alhada. São exceções que, exatamente por serem exceção, confirmam aquele princípio de que Forças Armadas e Forças de Segurança se batem na sua conduta moral e ética, pelos elevados princípios e valores que fazem do homem um cidadão com letra maiúscula. Portanto da minha parte de Bispo, a primeira reação é reafirmar, junto dos próprios militares, um certo orgulho e uma certa honra em poderem servir o país, a nação e a sociedade através daquela vocação e daquela missão.

Que depois hajam casos, que possam porventura, eu digo porventura sublinhando essa palavra, contradizer isso, é verdade, mas em nada diminui o prestígio das Forças Armadas e é isso também que eu tenho verificado.

Mas o caso de Tancos, até pela continuidade de todo este processo, tem estado a prejudicar a imagem das Forças Armadas. Como é que se ultrapassa isso?

Da minha parte o que posso dizer é que os militares, homens e mulheres, não se deixem abater, não desistem dessa forte confiança que, como eu dizia há pouco, encontrei nas visitas que já fiz. É uma missão, é uma vocação na qual nós podemos acreditar integralmente porque é regida por níveis de princípios e valores superiores, que seria digamos desejável, que transcendessem o âmbito dos quartéis, o âmbito da vida militar e pudessem, de certa forma, penetrar as consciências da sociedade civil.

Que marca é que quer deixar nesta sua passagem pelas forças Armadas?

Um bispo missionário. De proximidade. Um bispo missionário que sabe ir a todo o lado e sobretudo um bispo missionário que abraça como causa própria aquilo que é a causa das mulheres e dos homens que servem Portugal nas Forças Armadas e nas Forças de Segurança. Se eu conseguisse deixar esta marca, ao mesmo tempo que isso fosse associado, não a uma carolice própria naquele homem Bispo, mas que se fosse associado à fonte que me anima que é Jesus Cristo e o Divino Espírito Santo, a felicidade seria a 100%.

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  • Filipe
    22 jan, 2019 évora 23:30
    E , resta no entanto saber quantos casos ainda existem em Portugal parecidos ou iguais nos quartéis abandonados pelos heróis do 25 Abril e despojados na corrupção até das sopas ... quantos mais armamento . Vão lá contar a vassouras e esfregonas ...

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