Tempo
|
A+ / A-

Investigação

Vendas agressivas, pressão e contratos de um dia. O lado negro dos "call centers"

21 out, 2014 - 12:30 • Ricardo Vieira

Há quem chore ao telefone ou entre em pânico. O trabalho é repetitivo, os tempos cronometrados. Os chefes gritam aos ouvidos dos trabalhadores: é preciso vender, vender, vender, nem que seja levando os potenciais clientes "à exaustão". O sector dos "call centers" é um dos poucos que gera emprego em Portugal, mas há um preço a pagar.

A+ / A-

Omissão de informação aos clientes, alta pressão para vender, baixos salários, "precariedade extrema" (e contratos de um dia), chamadas em série, stress, problemas de saúde e… pulgas no local de trabalho. Bem-vindo ao lado negro dos "call centers".

Sara trabalhou durante sete anos em "call centers". Tem muito para contar. Viu colegas a "chorar" e a entrar em "pânico". Outros largaram tudo a meio do turno e nunca mais voltaram, vencidos pelo stress.

"A pressão era realmente muito grande. Tínhamos muitos colegas que choravam ao telefone, entravam em pânico, porque o número de chamadas era muito grande e sentiam que não tinham apoio, nem estavam preparados para fazer aquilo", conta.

Os "call centers" empregam entre "40 mil e 50 mil" pessoas, de acordo com a Associação Portuguesa de Contact Centers (APCC). O recém-criado Sindicato de Trabalhadores de Call Center (STCC) acredita sejam "bem mais".

No sector do telemarketing (vendas ou promoções por telefone), a um salário base, que é, muitas vezes, o mínimo, somam-se prémios por objectivos. Os trabalhadores nem sempre conhecem os critérios, diz João Carlos Louçã, antropólogo que estudou durante um ano e meio a realidade dos "call centers". Mas sabem uma coisa: têm que vender, vender, vender.

Carla passou pelas vendas antes de ser transferida para o serviço de apoio ao cliente de uma instituição bancária. O trabalho era repetitivo, não podia sair do guião. Sentia-se um "gravador".

Conta que as chamadas eram ouvidas e "tudo era controlado" pelos chefes, que "muitas vezes, gritavam" com os funcionários.

Com a pressão que sentiam para vender e atingir objectivos, "as pessoas muitas vezes faziam coisas que não deviam". "Omitiam informação" ao cliente, revela a licenciada em Direito, de 26 anos.

Carla trabalhou ano e meio no "call center" e chegou ao limite. "Não aguentei e despedi-me. Há pessoas que trabalham lá 20 anos. Admiro essas pessoas."

Não? Talvez

Pelas vendas também passou Vanessa. Experimentou o mesmo clima de permanente tensão e sobressalto.

Descreve como era um dia normal de trabalho: "Ligávamos para as pessoas a tentar fazer a venda e tínhamos o supervisor atrás de nós, a ouvir-nos através de um auricular, a dizer o que fazer, como fazer: 'Insiste mais, diz que vais enviar, diz que vai gostar'. A dar toda uma série de dicas. É uma pressão enorme. Naquele 'call center' foi uma experiência um bocado difícil. Saía de lá completamente exausta."

Vanessa trabalhou para uma empresa de telecomunicações em regime de "outsourcing", uma prática generalizada no sector. Se alcançasse as metas mensais recebia um incentivo, mas "era muito difícil conseguir atingir os objectivos, senão impossível".

Hoje, Vanessa trabalha no atendimento de uma companhia aérea. Não há "outsourcing" e todos os funcionários têm vínculo à empresa. "Não temos um contrato precário, de modo nenhum. Temos boas condições de trabalho, um bom ambiente."

Também há objectivos a cumprir e o "salário é revisto anualmente", de acordo com a avaliação. "Incentiva qualquer um a ser melhor e a trabalhar melhor", refere Vanessa.

No "call center" de Carla não era assim. Era preciso levar os clientes "até à exaustão" para tentar fechar negócio e ouvir vários "nãos" antes de desistir.

E quando estes pediam para não voltar a ser contactados, nem sempre os operadores de "call center" colocavam essa indicação na base de dados: o "não" virava "talvez".

"Nós, supostamente, tínhamos essa possibilidade de colocar como não interessado. O problema é que tinhas de apresentar resultados e num dia só podias ter três não interessados. Isso obriga os trabalhadores a terem de dar a volta", adianta.

"Precariedade extrema"

Natural de uma aldeia nos arredores de Turim, em Itália, Massimo Arondello chegou a Portugal em 2009 à procura de novas oportunidades. Licenciado em comunicação e semiótica, fluente em várias línguas, só encontrou trabalho em "call centers".

Atendia clientes de grandes multinacionais, mas não tinha qualquer vínculo laboral com estas empresas. "A palavra de ordem, quando se fala de 'call centers', é sempre só uma: 'outsourcing'", lamenta.

Massimo tinha contrato com uma empresa, mas prestava serviços a outra. Em bom português, este italiano de 40 anos acrescenta que "nem perde tempo a falar de precariedade quando há contratos de um mês".

Há contratos mensais, mas também semanais e "de todos os tipos possíveis e imaginários", denuncia a presidente do recém-criado Sindicato de Trabalhadores de Call Center (STCC), Paula Lopes.

Há até contratos de um só dia, denuncia. "Uma trabalhadora falou com o sindicato a indicar que, depois de uma chamada, o superior considerou que ela tinha dado uma informação incorrecta ao cliente e ligou para o telefone dela de trabalho e disse: 'Podes deixar aqui os 'headsets', amanhã já não vens trabalhar. Estás despedida'. É uma das situações que temos em mãos."


Ilustração: Ricardo Fortunato

Paula Lopes afirma que há casos de "precariedade extrema" no sector. Mas a Associação Portuguesa de Contact Centers responde com o "dinamismo notável" do sector, que se traduz também na criação de centenas de empregos, mesmo em tempo de recessão, e na melhoria das condições de trabalho.

"Desgaste rápido" e pulgas

A sindicalista considera que Portugal é um bom país para a instalação de "call centers", devido aos "salários bastante baixos", qualificações dos trabalhadores e falta de regulamentação.

Paula Lopes "sonha" com o Brasil. Lá já existe regulamentação, contrato colectivo de trabalho e ninguém faz mais de seis horas no atendimento ou nas vendas por telefone.

O STCC defende a criação de uma categoria profissional para os trabalhadores de call center e que a profissão seja considerada de desgaste rápido. "As doenças auditivas, respiratórias, as dependências, as depressões, as tendinites, são algo de constante", assinala Paula Lopes.

Os trabalhadores queixam-se da falta de condições no local de trabalho. Sara usa mesmo o adjectivo "horrível". Descreve os "call centers" como "espaços fechados", em que há problemas respiratórios por causa do ar-condicionado.

No seu local de trabalho não era agradável. Tinha "sérios problemas de higiene", uma "alcatifa gigante que não era aspirada, mas varrida" e era raro o ano em que não havia "duas ou três vezes pulgas a saltar no 'call center' e a morder as pessoas todas".

Massimo também foi atacado por pulgas e no seu escritório até chegaram a "capturar" uma para mostrar a um chefe que não acreditava que andavam por lá aqueles insectos.

A família em Itália também "nem acredita" nas peripécias que Massimo vai contando, com uma em que foi proibido pelos supervisores de "esticar as penas, de falar com os clientes em pé".

Obrigavam-no a passar o turno sentado e para ir à casa de banho tinha de pedir autorização ao supervisor. O tempo era limitado e cronometrado.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Helena Ribeiro
    02 fev, 2017 Setúbal 22:57
    É horrível fisicamente e psicologicamente.... Pressão constantante somos carne para canhão ... Tudo funciona mal é revoltante e conseguem fazer com que a maioria das vítimas acreditem que teem muita sorte em trabalhar alimentação....Chega a ser surreal!!!!
  • Soldier
    02 nov, 2016 Herzlyia 08:59
    Gente(patrões,patroezinhos,chefes,supervisores) sem escrúpulos sempre existiu e sempre existirá. A diferença está em como as autoridades agem.uma pessoa (entrevistador,vendedor)que se vá queixar que é mal tratada pelo supervisor no call center enfrenta uma burocracia e conversas do género "complicado,sabe como é, não tem provas" e outras conversas.se uma pessoa perde a cabeça e desfaz a cara dum supervisor que acontece?claro que vai logo presa.portsnto a lei é óptima para as empresas sem escrúpulos e péssima para pessoas que precisam de trabalhar.a comunicação social cita 1001 casos como os da notícia acima. se as autoridades não se mexem perante denúncias estão a dizer que as pessoas que se queixam das condições miseráveis nos call center são tudo doidos e que as empresas e respectivos chefes são excelentes pessoas.
  • António
    01 nov, 2016 Lisboa 18:36
    Pois, o governo autoriza, está previsto no CT... Não se queixem, pois então queixava-me (e mais uns milhões) dos recibos verdes, dos "talhos de carne humana" chamada outsourcings, etc... Se acho correto? Não! Está aqui um belo teto atrativo para os empresários investirem o dinheiro em Portugal.... Taxas, taxinhas e tachos... Se mais ninguém faz nada, que faça a comunicação social.... Relativamente aos altos cargos acumulativos de funções, foi preciso um "come on" vindo para cá do estranjas dizer que estamos a infringir uma lei nossa... Andamos a pagar para pessoas que nunca descontaram... Argumentam a xenofobia. Pois, eu argumento com a escravatura... A bela noticia que o desemprego baixou... Mas o crescimento em vez de aumentar, diminuiu... É tapar o sol com a peneira... É bom que os estranjas governem aqui o nosso país, pois à 40 anos que demonstramos que o não sabemos fazer... (Já agora lembrei-me que tenho de me registar no IEFP, pois assim faço parte da estatística, ou com alguns martelanços no sistema, não) Bem hajam
  • Sérgio Costa
    01 nov, 2016 S. Mamede Infesta 16:11
    Quase todos incluindo eu, trabalhamos num "call centers" ou seja vendas por telefone há muitos anos quem não se lembra dos primeiros trabalhos de vender enciclopédias!!!! mais e diziam que devemos vender aos mais próximos familiares e amigos...!!! mostravam um cheque gordo de alguém que sem escrúpulos até vende livros a cegos !!! Bom eu penso que os jovens têm falta de orientações dos mais velhos em explicar que esses trabalhos não são para toda a gente e se uma pessoa que tente não se deve sentir sob pressão a menos que saia pior do que entrou para os "centros de chamadas telefones". Pensemos; se há muita gente a trabalhar há também muita gente a comprar pelo telefona!!!... Ora os sem valores humanos, os animais predadores e desprovidos de sentimentos, vêm um negócio próspero e lucrativo, com vendas forçadas e impulsivas. Não é profissão mais velha do mundo, até que o telefone é recente face à era do Homem, não o sendo as pessoas já pensaram em recusar certos e determinados trabalhos que levam o trabalhador à loucura, será que esses escroques que montam o negócio conseguiam fazer esse volume de lucros. Paremos e se todos se levantassem e se fossem embora o que fazia o patrão hehehehehe! se as pessoas deixassem de comprar só porque lhe ligam, os que fazem os telefonemas estão altamente treinados para penetrar as pessoas pela pressão constante. Se deixarem de comprar diminui essa actividade. Comprem nas lojas especializadas
  • Ricardo MArtins
    01 nov, 2016 Lisboa 11:52
    Como diz o dr. Cabral da laranjada é melhor que nada ele é que nunca teve de trabalhar nisto portanto , é melhor que nada...
  • João Galhardo
    01 nov, 2016 Lisboa 11:17
    O problema também parece ser o «mundo cão» que existe dentro dos mesmos «call center», entre colegas e superiores. É um sistema injusto, quase mafioso e que devia acabar.
  • Soldier
    01 nov, 2016 Carrazeda zedes 08:09
    Andam a barrar os meus comentários porque ? Quanto é que a vitória cabecinha da marktest vos anda a pagar?
  • Hugo Rodrigues
    31 out, 2016 Lisboa 16:21
    E quando não são vendas mas mero atendimento administrativo e as pessoas que atendem e/ou ligam para os call-centers são agressivas e mal-educadas, sabendo que o funcionário está apenas a cumprir ordens? Quem lá trabalha é um trabalhador e uma pessoa que está a trabalhar. Gritos, insultos... os supervisores claro até acham graça e encolhem os ombros. Motivo para pagar menos e despedir mais depressa e fácil.
  • António Pais
    31 out, 2016 Lisboa 16:16
    Qual é o lado "branco" dos call centers?
  • Para refletir...
    31 out, 2016 Almada 15:48
    Que se despeçam todos! Como está quem lá trabalha acaba também por ser cúmplice do sistema. O povo unido jamais será vencido! O grande problema é que o povo não é unido, cada um só pensa em si.

Destaques V+