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“Com o Papa Francisco começou uma nova época na Igreja”

21 nov, 2018 - 15:10 • Filipe d'Avillez

O teólogo Tomás Halík defende que João Paulo II e Bento XVI concluíram, de forma positiva, a era de conflito com a modernidade e que o discurso do Papa alemão a caminho de Portugal foi o culminar desse processo.

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A eleição de Jorge Mário Bergoglio para o trono de Pedro projetou a Igreja numa nova era, considera o padre e teólogo checo Tomás Halík.

Mas o sacerdote, que foi ordenado clandestinamente durante o regime comunista, deixa claro que com esta afirmação não pretende colocar o atual Papa contra os seus antecessores. Pelo contrário, Halík foi muito próximo de João Paulo II e de Bento XVI e acredita que eles fecharam de forma muito positiva uma outra era histórica da Igreja.

“Penso que João Paulo II e o Papa Bento XVI encerraram, de forma muito honesta e positiva, um longo período da história da Igreja em que o principal desafio era o confronto com a modernidade", defende em entrevista à Renascença. "O final feliz deste confronto surge num famoso diálogo entre o Cardeal Ratzinger e o filósofo alemão Jürgen Habermas, o ano antes de aquele ter sido eleito Papa. Ambos concordam que o humanismo secular e o Cristianismo precisam um do outro.”

Um ponto alto deste processo de mudança de era surge, segundo o teólogo checo, na viagem de Bento XVI para Portugal. “Os melhores discursos dele eram feitos nos aviões… Talvez por se encontrar mais próximo do Céu”, brinca Halík. “Neste caso foi sobre a compatibilidade entre a cultura secular e o Cristianismo. Foi um discurso muito profundo e muito corajoso.”

O padre diz que este discurso “marcou o final de um longo período, mas [que] agora a modernidade acabou, vivemos numa era pós-moderna e global, a era da internet, da pluralidade radical, e precisamos de algo diferente. E o Papa Francisco está a iniciar esta nova época da Igreja. Cada vez que alguém começa algo novo é atacado, como aconteceu com muitos santos ao longo da história, mas mantêm-se fiéis à Igreja.”

“O Papa Francisco descobriu de forma nova e profunda o verdadeiro coração do Evangelho, que é a misericórdia, a solidariedade para com os pobres, a luta pela justiça social e a responsabilidade pela criação. Isto é muito importante. Estas coisas têm sido ensombradas um pouco por questões de moral sexual, que são questões importantes, mas não são as questões mais importantes. O mais importante é a solidariedade, a misericórdia e a justiça, e este é o enfoque da mensagem do Papa Francisco”, sublinha Halík.

Uma ponte chamada Jan Hus

Tomás Halík está em Portugal para dar algumas conferências e lançar o seu mais recente livro “Diante de ti – Os meus caminhos”.

Ao contrário das anteriores coleções de ensaios, este livro é essencialmente autobiográfico, embora contenha também várias reflexões teológicas. O autor admite que usou como referência as “Confissões” de Santo Agostinho, em que este narra a história da sua conversão.

Logo nas primeiras páginas torna-se aparente uma admiração de Halík – comum, aliás, a vários setores da população checa – por Jan Hus, o reformador checo que foi queimado na fogueira após o Concílio de Constança, em 1415. Algumas das ideias de Hus serviram de inspiração aos grandes reformadores como Martinho Lutero e Calvino, mas o padre Halík sublinha que o checo nunca pretendeu entrar em conflito com Roma.

“Em 1989 encontrei-me com João Paulo II e uma das primeiras coisas que ele me perguntou foi o que devíamos fazer com Jan Hus. ‘Reabilitei o Galileu, talvez seja tempo de reabilitar o Hus. Lembra-te que a delegação polaca foi a única que o defendeu em Constança’. Então eu voltei a Praga e informei o nosso arcebispo e cardeal Tomásek, mas ele reagiu de forma muito discreta, porque tinha crescido num tempo em que Hus era um símbolo da tensão anticatólica.”

O Papa voltaria a falar-lhe de forma positiva sobre Jan Hus e chegou mesmo a promover um simpósio em Roma sobre ele, em que discursou. “Aí aconteceu uma coisa muito importante, porque o Papa afirmou que ‘Jan Hus foi um sinal da divisão entre católicos e protestantes, mas poderá vir a tornar-se uma ponte entre nós’”, recorda Halík.

O teólogo acredita ainda que Hus não foi herege, mas sim percursor do Vaticano II, defendendo uma Igreja mais pobre, humilde, sem triunfalismo. “Acho que Francisco é o tipo de Papa que Jan Hus gostaria de ver”, considera.

Do “ser” ao “tornar-se” cristão

Mas o efeito da execução de Jan Hus perduraria durante séculos na República Checa. Após a sua morte os seus seguidores foram combatidos nas guerras hussitas e chegou-se a lançar uma cruzada contra o país, que foi reconvertido ao catolicismo à força. Mais tarde o catolicismo viria a tornar-se também um símbolo da monarquia austro-húngara, que dominava a região.

“O nosso caso é o contrário do que se passou na Polónia. Lá a Igreja Católica sempre foi um instrumento da identidade nacional, mas connosco não, havia sempre uma tensão entre a identidade nacional e a Igreja”, diz Halík.

O autor acredita que isto esteve na base de uma tentativa por parte dos comunistas de erradicar a crença religiosa naquele país, pelo que a perseguição à Igreja foi mais dura lá do que no resto do bloco comunista. “Mas o efeito acabou por ser o contrário, porque os checos sempre simpatizaram com os perseguidos, por isso durante a perseguição a autoridade moral da Igreja até acabou por aumentar”.

Foi neste contexto de perseguição que um jovem Tomás Halík, que nunca se tinha deixado convencer pela propaganda comunista, acabaria por abraçar uma fé na qual era batizado mas que nunca tinha praticado. Levaria ainda vários anos a descobrir e confirmar a vocação sacerdotal, mas recorda ainda hoje o primeiro momento de conversão, que compara a uma aurora.

“A fé, para mim, não é apenas uma mundivisão, uma filosofia. É uma orientação filosófica e a conversão transforma toda a personalidade. A fé infantil tem o seu encanto, mas chega sempre a um momento de crise. Para muitas pessoas essa crise conduz ao ateísmo, mas precisamos de acompanhar as pessoas através desta crise, para descobrirem uma dimensão mais profunda da fé. É uma transformação real, tal como o nascer do sol. Agora vemos tudo com uma nova luz, de uma nova perspetiva, e penso que precisamos todos desta transição perpétua, desta conversão perpétua.”

Deste processo de conversão faz parte o sofrimento e a crucificação. “A nossa é uma fé pascal, e a Páscoa é o mistério da morte e da ressurreição. Às vezes a nossa fé, tanto na nossa caminhada pessoal, mas também na caminhada da Igreja, deve ser crucificada e viver uma noite escura da alma. Deve atravessar o momento em que Cristo bradou ‘meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste’. E então, depois da Sexta-feira Santa podemos acolher a manhã da Páscoa. Não há ressurreição sem Cruz”.

E termina, dizendo “os nossos tempos pedem uma mudança, do ser cristão para o tornar-se cristão. É um processo para a vida toda”.

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