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Foi há 14 anos. As memórias de um piloto detido durante 15 meses na Venezuela

24 out, 2018 - 16:03 • José Carlos Silva

Ficou conhecido como o caso das "Três Marias de Arraiolos”. Três cidadãs portuguesas tentaram trazer cocaína da Venezuela, a bordo de um jato privado. Luís Santos era o piloto que acabou "apanhado" na teia.

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Luís Santos apareceu nos estúdios da Renascença sem a farda, sem a sua camisa branca, sem gravata e sem galões. Um homem simples, que, no corredor encontrou um amigo, com quem falou da sua última missão como piloto: o combate ao incêndio no Parque Natural de Sintra-Cascais.

Trabalhar ali, com tudo à mão - “à unha” -, respondendo aos pedidos dos bombeiros, fazer descargas de água de seis em seis minutos é um gosto. É muito diferente dos voos de médio e longo curso a que está habituado, em aviões privados, nos quais o conforto desdobra bancos em camas e onde surgem bebidas e tábuas de queijos quando menos se espera.

Foi um voo assim que o levou. neste mesmo mês de Outubro, mas de há 14 anos, à Venezuela com as “Três Marias de Arraiolos”. Foi assim que ficaram conhecidas as clientes que iam ao país de Hugo Chavez buscar droga. Não iam todas ao mesmo, é certo: uma delas foi convidada em cima da hora para fazer número e justificar bagagens que não levou.

Luís Santos deu pela "marosca" antes de descolar da Venezuela, rumo a Portugal. O avião preparava-se para partir, com excesso de peso: 12 malas que "não faziam parte do manifesto".

O piloto disse que não havia condições de segurança para voar, as malas foram retiradas e nelas acabou por ser descoberta uma quantidade de 386 quilos de cocaína. O "circo estava armado": tripulação e passageiros foram detidos.

Luís Santos não esquece as condições em que viveu na cadeia. “As condições eram piores que más. Convivi com rapazes de 17-18 anos que tinham já cometido na ordem dos 20 ou 25 assassinatos", recorda.

"Alguns tinham idade inferior ao do número de crimes que cometeram e eu estava ali com eles, com uma incapacidade e um desconhecimento de como é que podia gerir-me, em relação àquele ambiente de prisão.”

Dormiu no chão e tinha ao dispor uma espécie de retrete utilizada por uma centena de pessoas. Explica o óbvio: “A promiscuidade é muito grande, não há capacidade para se ter uma higiene pessoal como deve de ser.”

Há um outro episódio que não esquece: a entrada na prisão, “fardados com camisa branca, com galões, com gravata".

"Não nos deixaram tirar nada do avião, a não ser um cobertor e uma almofada”, completa.

Há uma pergunta que lhe fazem há 14 anos: podia ter feito diferente? Podia, mas tem dúvidas. E também uma certeza: “A mesma negação em trazer o que quer que seja; enquanto piloto profissional, a mesma atitude."

"Há muita gente que me diz 'tu tinhas posto as malas na placa de estacionamento, punham o avião em marcha, chamavam as senhoras e iam-se embora e arrancavam'", conta.

"Eu não sei se isso seria uma solução, porque, estando a polícia venezuelana da brigada anti-narcotráfico no aeroporto metida nesta situação até à raiz dos cabelos, naturalmente que iriam criar alguma situação para que nós não saíssemos daquela maneira, deixando as malas no chão. Eu acredito que havia ali com certeza uma interrupção da nossa saída.”

Luís Santos mudou desde essa altura: ficou mais atento a pormenores relacionados com o seu avião, "desde a selagem dos depósitos de combustível, à das portas do avião, com selos específicos, que , se estiverem abertos ou se a tripulação verificar que estão tocados, implica, de imediato, chamarmos as autoridades".

"E não entramos dentro do avião até que as autoridades quebrem o resto do selo que já foi mexido, abram o respetivo avião e, lá dentro, nos dêem uma autorização para entrar dentro da aeronave.”

O piloto não esconde, também, que há clientes a quem tem vontade de pedir para abrir as malas. “Tenho de ser completamente franco: algumas vezes, nesta aviação executiva, transportamos passageiros que, efetivamente, por quererem permanecer com as malas na sua posse dentro do avião, nos causam algum amargo de boca. Naturalmente, tenho muito poucas capacidades de poder pedir a um homem ou uma mulher - que está a pagar um valor avultado por hora de voo desse avião - dizendo-lhe 'Doutor, Engenheiro, etc... Abra a sua mala porque eu quero ver o que é que está aí dentro."

O piloto nunca mais regressou à Venezuela, mas garante que isso apenas aconteceu porque os aviões que está atualmente a pilotar não têm alcance para uma viagem tão longa.

Sobre a Venezuela dos dias de hoje, lembra que, apesar de todo o azar, acabou por ter apenas uma ponta de sorte. "Se fosse hoje, tudo poderia ter acabado muito pior", argumenta.

"Estou convencido de que, se eu tivesse tido este problema com este indivíduo, o Nicolas Maduro, que está na presidência, julgo que, pela sua loucura, pela sua falta de senso, pela sua falta de visão humana das coisas, eu, muito possivelmente, estaria metido em muito piores lençóis".

Luís Santos refez a vida. Depois de 15 meses de cativeiro, renovou licenças, empenhou-se em manter a cabeça ocupada. Ultrapassou um grave problema e voa, como sempre gostou.

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