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​Salaviza volta a conquistar Cannes e lamenta indiferença das entidades oficiais portuguesas

19 mai, 2018 - 00:33 • Hugo Monteiro , Catarina Santos

Foi o Brasil indígena, “historicamente negado, silenciado, assassinado”, que saiu dignificado com o prémio do júri da secção "Un Certain Regard", disse à Renascença o realizador português. João Salaviza lamenta, contudo, que o reconhecimento do cinema que por cá se faz pareça “não interessar muito” ao Ministério da Cultura ou ao ICA.

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O filme "Chuva é cantoria na aldeia dos mortos" recebeu o prémio especial do júri, na secção "Un Certain Regard", no Festival de Cinema de Cannes. A longa-metragem, que Salaviza realizou com a realizadora brasileira e sua mulher Renée Nader Messora, relata a vida de um casal de índios no Brasil.

Em declarações à Renascença, o realizador português diz que o prémio reflete o impacto que a realidade das comunidades indígenas teve no festival de Cannes. “A importância deste prémio transcende o nosso gesto cinematográfico, porque é o Brasil indígena – que foi historicamente negado, silenciado, assassinado – que sai exaltado do festival de Cannes”.

Os dois realizadores subiram ao palco com o casal de índios Krahô que protagoniza o filme. “São estes indígenas, com os quais fizemos o filme, que agora ocupam este espaço com a sua língua e como seu corpo, com os seus gestos e com os seus espíritos. A importância disto vai para além do mundo do cinema e da arte cinematográfica.”

João Salaviza, que tinha já vencido a Palma de Ouro em 2009 com a curta-metragem “Arena”, revela que foi o próprio presidente do júri daquela secção a defender a entrega do galardão ao filme. “Nós depois do prémio estivemos com os membros do júri, a conversar com o Benicio del Toro, e percebemos que foi exatamente ele a pessoa que mais força fez para que o filme saísse premiado”.

O filme foi rodado durante nove meses, em 16mm, sem equipa, na aldeia Pedra Branca, no estado de Tocantins, no Brasil.

O realizador ficou surpreendido com a forma como del Toro se “reconheceu” nos “mundos que vemos no filme”. E considera “relativamente esperançoso ver que estas vozes e estas outras formas de habitar o planeta conseguem ecoar e causar impacto em lugares imprevistos e em mentes imprevistas.”

Na quarta-feira, a equipa do filme juntou-se na passadeira vermelha para exibir cartazes em protesto “pelo fim do genocídio indígena” e pela “demarcação das terras dos povos autóctones”, no Brasil. No final da sessão de estreia, a equipa foi aplaudida e houve ainda um momento de cânticos “Fora Temer”.

Cinema português reconhecido lá fora, maltratado cá dentro

Nestas declarações à Renascença, João Salaviza diz que o cinema nacional vive um paradoxo, porque ao “reconhecimento global que o cinema português tem fora de Portugal” não corresponde o reconhecimento devido por parte das entidades oficiais portuguesas. “Isto parece que não interessa muito em Portugal”, lamenta.

“Que eu saiba, não houve [em Cannes] nenhum representante do Ministério da Cultura e mesmo do ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual]. Não sei se o presidente do ICA esteve na minha sessão ou na sessão do Gabriel Abrantes ou na sessão do Duarte [Coimbra], que teve uma curta na Semana da Crítica [“Amor, Avenidas Novas”].”

João Salaviza sublinha que o paradoxo é ainda mais gritante no contexto da “ameaça permanente dos grandes grupos económicos, que estão a tentar dominar o ICA”.

Em causa estão as alterações à Lei do Cinema, promulgadas em abril pelo Presidente da República. Tem sido motivo de protestos frequentes de quem trabalha na área a forma como são agora aprovados os júris que decidem que projetos recebem apoio financeiro.

Os resultados dos concursos de apoio ao cinema e audiovisual passam a ser da competência exclusiva do ICA, depois de consulta prévia, não vinculativa, da Secção Especializada para o Cinema e Audiovisual (SECA). Mas da SECA fazem parte, além de produtores e realizadores, os exibidores, distribuidores, canais e operadoras de televisão.

A Plataforma do Cinema, que reúne produtores, realizadores, programadores e técnicos, entende que há risco de os pareceres da SECA serem orientados por objetivos comerciais e de distribuidores e operadores de televisão influenciarem os concursos em benefício próprio, apoiando projetos que tenham interesse em incluir na sua programação.

O prémio para "Chuva é cantoria na aldeia dos mortos" é o segundo que Portugal traz de Cannes este ano. "Diamantino", de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, venceu o Grande Prémio da Semana da Crítica.

O prémio principal da secção "Un Certain Regard" foi para “Border”, do iraniano Ali Abbasi, enquanto o melhor argumento foi para “Sofia”, da franco-marroquina Meryem Benm’Barek.

A melhor interpretação foi atribuída a Victor Polster, por “Girl”, de Lukas Dhont, e o melhor realizador foi Sergei Loznitsa, por “Donbass”.

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