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Tiago Cavaco. A palavra de Deus “não está escrita para nos acomodar”

30 abr, 2018 - 14:39 • Maria João Costa

Pastor protestante da Igreja Baptista, Tiago Cavaco acaba de lançar “Milagres no Coração”, um livro que reúne 24 sermões que pregou entre 2011 e 2012 e que têm como eixo central o Evangelho de Marcos.

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Pastor da Igreja Baptista na Lapa, em Lisboa, Tiago Cavaco lê a Bíblia pelo menos uma vez por ano. Além de músico, responsável por lançar nomes como Samuel Úria ou B Fachada, Cavaco é também autor de “Milagres no Coração”, livro recém-editado pela Quetzal que reúne vinte e quatro sermões pregados por si entre 2011 e 2012.

“No contexto de hoje, ter fé não é uma coisa fácil”, admite Tiago Cavaco à Renascença, ao falar da “grande aventura” que é ler o Evangelho de Marcos em que está centrado o seu livro. Em tom pausado, contrapõe que "é impossível" a Bíblia não estar na moda, mesmo “no momento pós-religioso ou secularizado" que o mundo ocidental atravessa.

Porque escolheu o Evangelho de Marcos como espinha dorsal para o livro “Milagres do Coração” em que reúne os seus sermões.

Há uns anos, em 2011, na igreja de que fazia parte em São Domingos de Benfica, tinha um grupo pequeno mas crescente, com cerca de vinte, trinta pessoas. Usando um jargão evangélico, estamos a plantar uma igreja nova e pensámos fazer algumas coisas que não eram assim tão comuns na maior parte das igrejas, como por exemplo escolher livros da Bíblia e estudá-los do início ao fim. O Evangelho de Marcos tinha uma vantagem óbvia porque é o mais breve deles, mas também é tido como mais antigo. Sendo o "mais poupado", dava-nos um bom resumo daquilo que, por exemplo, também ira ser lido em Mateus ou em Lucas. Eu pessoalmente também já o tinha estudado noutros contextos e foi isso que me levou a pensar que Marcos era a porta de entrada ideal. Também o facto de Marcos, na sua brevidade, ser mais concentrado nas ações de Jesus e não tanto nos seus discursos, para uma comunidade que estava a começar isso também ajudava no encontro com a personagem que Jesus é nos Evangelhos.

Que imagem é que o Evangelho de Marcos dá dessa personagem principal de Jesus?

A Bíblia é uma leitura que nunca acaba. No meu caso, eu sou pastor, portanto um dos hábitos que tenho é todos os anos ler a Bíblia do início ao fim. É o mínimo que se pode esperar de alguém que trabalha a Bíblia como vocação. Quando se acredita que foi o próprio Deus que se revelou naquele texto, de facto ele tem a capacidade de, através do Espírito Santo, trazer sempre novos significados para a pessoa que está a ler. Sobretudo se for crente, e mesmo para quem não é crente, se tiver uma leitura sincera eu acho que continuará a ser surpreendido. No caso do Evangelho de Marcos, em particular, uma coisa que é também surpreendente é que, sobretudo se estivermos a pensar em pessoas que nunca leram um Evangelho do início ao fim, a personagem Jesus é uma personagem que nos desarruma um pouco.

Em que sentido?

Os factos começam a acontecer rapidamente. É facto atrás de facto, há muito milagre, muita coisa a acontecer, pouca pausa até para digerir, e nessa rapidez até as ações e reações de Jesus tendem a ser, eu diria, numa primeira leitura, até estranhas. Tenho essa estranheza que acontece na leitura como uma coisa muito ambiciosa, como uma grande oportunidade e uma grande aventura.

Para leitores de primeira viagem, ou não crentes, "Milagres no Coração" ajuda de alguma forma a entrar na Bíblia e no Evangelho de Marcos?

Eu espero que sim! Apesar de reconhecer que pode haver quase uma espécie de aparente contradição. O título soa bonito e agradável, mas a verdade é que para chegar a um título como "Milagres no Coração" há uma leitura cheia de atrito, cheia de rugas e dificuldades. Na minha opinião, isso só valoriza mais quando o "Milagre no Coração" acontece, porque ele não vem com facilidade. É nessa medida que mesmo uma pessoa que não tenha familiaridade com o texto bíblico pode até ser mais surpreendida. Pode ser aquele tipo de leitura onde se calhar as coisas não são fáceis, não são imediatas, mas à medida que nós vamos insistindo o valor daquilo que começa a tornar-se claro para nós amplifica-se bastante. É uma grande aventura ler o Evangelho de Marcos.

Há muito interesse hoje na Bíblia, há novas traduções. Podemos dizer que a Bíblia está na moda?

É impossível não estar na moda, porque no nosso contexto ocidental, tido como pós-religioso ou secularizado, ter fé não é fácil sendo cristão, independentemente de serem cristãos protestantes como eu ou católicos romanos. Nunca foi fácil, na verdade. É curioso porque às vezes pode parecer que, porque os cristãos estão a ser restituídos a um lugar de minoria, onde as opiniões que temos ou as posições que defendemos começam a ser tidas cada vez mais como impopulares - pelo menos no mundo ocidental - mas ironicamente a Bíblia continua sempre a atrair pessoas. A Bíblia continua a ser algo que não dá para contornar, mesmo que nós estejamos no contexto onde injustamente a Bíblia e o próprio cristianismo possam ser tidos incorretamente como coisas do passado que nós precisamos de ultrapassar.

Tem atualidade?

Mesmo quando a Bíblia ou a fé cristã podem ser impopulares, acho que há modos de elas continuarem na moda. Eu fico contente quando o meu livro é colocado nas livrarias na secção de "espiritualidade" porque fico assim numa companhia meio estranha, de xamãs e gurus, mas percebo que isso faz parte da "concorrência" religiosa de hoje. Eu fiz 40 anos no ano passado e na minha geração, como o nosso mundo é tido como pós-religioso, mais secularizado, há uma curiosidade das pessoas mais novas pela velha religião. A religião dos avós para os pais parecia arrumada, mas os filhos começam a olhar com olhos novos. Foram educados numa tradição religiosa que lhes parece, às vezes, demasiado fantasmagórica e nesse sentido há uma curiosidade nova. Noto isso com uma geração mais nova do que a minha, mesmo adolescente, na casa dos 20 anos. De repente interessam-se por tudo aquilo que na religião parecia desagradável para a geração anterior, como coisas da tradição e da história. Por isso este é um tempo interessante para viver.

É assim a plateia que tem na igreja onde é pastor?

Na nossa Igreja Baptista da Lapa, diria que a maioria vem do mesmo contexto que eu. São pessoas que já foram educadas em igrejas evangélicas e baptista, mas depois há pessoas novas. Nas pessoas novas que chegam, há pessoas que, por exemplo, viveram numa tradição católica mais nominal, portanto não tiveram uma vivência muito profunda e, nesse sentido, estão abertas a olhar para o cristianismo de uma perspetiva diferente. E depois há também aqueles que não tiveram qualquer tipo de ligação religiosa. Nestes dois últimos casos, uma das coisas que me parece interessante é que, ao contrário do que se calhar pensaríamos há 20 anos, tudo aquilo que parecia pesado, antigo e que, portanto, não chamaria muito atenção, interessa muito a esta juventude. Esta juventude surpreende-nos.

A nova geração quer saber mais sobre religião?

Diria que, talvez por vivermos num mundo mais fragmentado, está mais interessada em encontrar as ligações entre as coisas. Não sei se é uma boa referência, mas acho que isto é um pouco inevitável, sobretudo no contexto europeu. Ao andarmos pelas cidades muitas vezes deparamo-nos com aquilo a que alguns chamam "as carcaças de cristandade", igrejas abandonadas ou feitas outras coisas. Em alguns lugares na Europa são bancos, são lugares turísticos.

Museus?

Sim, museus ou pistas de skate. Nos países nórdicos há um parque de skate dentro de uma igreja. E esta geração, se por um lado se pode tornar indiferente, por outro há nela quem reaja e tente perceber o que é isto e que carcaças são estas, o que é que elas significam. É muito interessante chegar a esta nova geração que surge cheia de boas perguntas.

Voltemos ao livro "Milagres no Coração" e aos sermões onde fala de questões atuais abrindo sempre a janela para o Evangelho de Marcos. Com o livro, quer ajudar as pessoas a perceberem que "essa velha religião" tem ensinamentos para os dias de hoje?

Sem dúvida. É óbvio que sou um crente e nunca consigo falar além da minha crença. Mas acho difícil ler de coração aberto qualquer parte da escritura, ou o Evangelho de Marcos em particular, e não sentir que há alguma coisa de fantástico a acontecer ali, mesmo que a pessoa não tome uma determinação religiosa depois de fazer a leitura. É um texto indomável. Uma das coisas que acho impressionante é que o Evangelho de Marcos não está escrito para nos acomodar. Aliás, diria que toda a palavra de Deus não está escrita no sentido de nos acomodar, ou seja, não lemos para nos sentirmos melhor acerca de nós.

Há um desassossego?

Sem dúvida. Receio que algum tipo de leitura que seja mais fácil de apanhar, quando as pessoas têm algum tipo de preocupação existencial, filosófica ou até religiosa façam uma leitura de "onde é que eu vou

arranjar alguma coisa que me acalma ou que atenue a a minha consciência". Nesse sentido, os Evangelhos não funcionam assim. Querem, de facto, dar uma resposta que seja muito mais durável do que as respostas que geralmente encontramos nesta literatura mais feita para o sossego imediato.

Comentários
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  • Rogério Gomes
    01 mai, 2018 Rio de Mouro 11:03
    Eu penso que dizer o Evangelho de Marcos não é correto, uma vez que o evangelho não é de Marcos, Mateus, Lucas ou João, mas sim o Evangelho segundo os mesmos isto é de acordo com a maneira como cada um viu o Evangelho de Jesus.
  • Católico
    01 mai, 2018 pt 00:00
    Faz todo sentido uma rádio católica fazer propaganda a um livro protestante, não haja dúvida.

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