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Entrevista

Hungria. "Orbán tem sido protegido pelo PPE, o maior partido do Parlamento Europeu"

11 abr, 2018 - 17:30 • Elsa Araújo Rodrigues

A investigadora norte-americana Kim Lane Scheppele diz que o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, conhecido como "o ditador da Europa", tem sido protegido pela política partidária das instituições europeias.

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Viktor Orbán passou de um político libertário a um conservador nacionalista em menos de uma década. Pelo caminho, transformou a incipiente democracia da Hungria pós-comunista numa ditadura, de facto.

A norte-americana Kim Lane Scheppele, investigadora na Universidade de Princeton, conheceu o atual primeiro-ministro húngaro nos anos 90, quando Orbán ainda era considerado "um zé-ninguém".

De passagem por Lisboa para participar na conferência Ulisses, a professora de Sociologia e Assuntos Internacionais falou, em entrevista à Renascença, do impacto que sentiu ao conhecer a "personalidade magnética" de Orbán.

Para Scheppele, o Partido Popular Europeu (PPE) tem sido o principal apoio do chefe de Estado da Hungria porque prefere colocar a política partidária à frente dos ideais democráticos da União Europeia.

Kim Lane Scheppele defende, ainda, que Durão Barroso "percebeu perfeitamente" o que se estava a passar na Hungria e tentou travar a deriva ditatorial de Orbán, sem sucesso.

Conheceu pessoalmente Viktor Orbán. Em que circunstâncias?

É uma história muito estranha. Estava a dar aulas numa cidade de fronteira, chamada Uzhhorod, na Ucrânia, que se chama Ungvár, para os húngaros, e que fica no território que fez parte da Hungria até à I Guerra Mundial. Estava no meu hotel, uma manhã, quando olhei pela janela e vi uma caravana de carros com bandeirinhas da Hungria. Do primeiro carro saiu Viktor Orbán, reconheci-o da televisão. Dos outros carros todos saíram membros do Fidesz no parlamento.

Isto foi em 1995, depois da derrota abrangente que teve em 1994 e num momento em que estava a repensar a sua estratégia, para descobrir como poderia seguir em frente. Estava, nesse preciso momento, a "dar a volta", estava deixar de ser um libertário - que foi onde começou, em 1990 - para se tornar um conservador nacionalista. Orbán foi àquela parte da Ucrânia para descobrir se os húngaros étnicos que viviam para lá da fronteira eram pessoas a quem ele poderia apelar. Estava a testar a sua mensagem nacionalista.

O símbolo do Fidesz é uma laranja e eu sabia que no primeiro andar do hotel havia um cesto com fruta. Desci do meu quarto, agarrei numa laranja e fui ter com ele. Entreguei a laranja ao Viktor Orbán e disse-lhe "bem-vindo a Ungvár", em húngaro. Ele olhou para mim, com cara de quem está a pensar "mas quem és tu?". Naquela altura, o inglês dele era melhor que o meu húngaro e acabamos por mudar de língua. Orbán explicou-me o que andava a fazer e eu pedi se podia segui-lo, na espécie de pré-campanha que andava a fazer. Ele anuiu.

O que é que aprendeu com Orbán, nesses três dias?

Estava a dar aulas, mas durante boa parte do dia saía com a comitiva para conhecer os húngaros étnicos de Ungvár. Depois, ia jantar com eles.

Viktor Orbán tem uma característica que toda a gente subestima: tem uma personalidade quase magnética, que é muito mais forte em pessoa do que é na televisão.

Passados os três dias, regressei a Budapeste e disse aos meus amigos 'acabei de conhecer a pessoa mais perigosa que alguma vez conheci na vida'. Eles disseram-me: "Ah, o Viktor? É um zé-ninguém, não tem qualquer posição na vida pública húngara". Ao que eu respondi: "Não, este homem é muito perigoso".

Quando estamos com ele, é como se o nosso cérebro derretesse, como se não tivéssemos um cérebro independente do dele. Sou uma pessoa com uma vontade muito forte e isso nunca me aconteceu antes de o conhecer nem voltou a acontecer depois, com mais ninguém. Falamos com Orbán e, de uma forma estranha, ele tem uma forma de puxar o nosso cérebro para dentro do cérebro dele. É uma habilidade fascinante.

Percebo perfeitamente porque é que as pessoas que lhe são próximas se têm mantido fiéis ao longo do tempo. É porque é alguém com uma personalidade muito, muito especial. É capaz de nos convencer que o mundo está virado do avesso. Quando Orbán nos explica como é o que o mundo funciona, é muito difícil não acreditar nele. E, repito, sou céptica por natureza e considero que sou muito difícil de convencer, mas, depois daqueles três dias, pensei: "Isto é perigoso, tenho que sair daqui". Foi quase como se tivesse conhecido o líder um culto.

Nessa época, Orbán ainda era considerado um "zé-ninguém"?

Quando falei com os meus amigos, que não eram seus apoiantes, disseram-me que estava a ser ridícula, que Orbán nunca seria ninguém. E todos eles se lembram dessa conversa que tivemos. Porque, agora, ei-lo: "O ditador da Europa".

Nos três dias que passou com Orbán, alguma vez suspeitou que poderia vir a tornar-se um ditador?

Suspeitava que iria tornar-se perigoso, porque é o tipo de pessoa que não tolera desacordo. Ele acredita que só há uma forma de fazer as coisas e acha que todos os que não concordam com ele estão simplesmente errados.

Não tolera o debate nem a oposição...

Não partilha da visão de que deve haver um espaço de debate político. Não me parece que seja um político democrático, sempre me pareceu um demagogo. Repito: parecia o líder de um culto ou de movimento social revolucionário. Foi por isso que pensei que, se continuasse na política, acabaria por se tornar perigoso. Mas nunca antecipei que a Hungria pudesse voltar a ser um país de partido único.

Como disse, conheci Orbán em 1995, o comunismo estava morto apenas há meia dúzia de anos. Todos se lembravam bem dos Estados de partido único e dos perigos que encerravam. Um dos dilemas de todos nós é que, olhando para a Hungria e, agora, também para a Polónia, é que estas são populações que se lembram de apenas existir um único partido. Então, porque é que voltaram a cair no mesmo sistema?

Porquê?

Os eleitores não pensavam que estavam a votar num partido único. E, quando Orbán concorreu em 2010, foi um momento particular. Nessa altura, a Hungria tinha-se tornado num sistema de dois partidos e meio, com Orbán à direita, os socialistas à esquerda e, depois, um minúsculo partido neo-nazi. Os socialistas tinham passado os últimos oito anos no executivo e estavam a governar quando surgiu a crise financeira. É claro que não preciso de explicar a ninguém, aqui em Portugal, o que é que acontece em tempos de crise.

Na Hungria, as consequências da crise foram diferentes?

Sim, porque a Hungria não faz parte da Zona Euro. O que aconteceu é que as pessoas começaram a hipotecar as suas casas em euros ou francos suíços. Depois, o florim húngaro caiu 60% em relação ao euro e ao franco suíço. De repente, todas as famílias de classe média que tinham hipotecas deixaram de poder pagar as casas. Quem pensa que estar na Zona Euro é mau, devia experimentar estar fora do euro mas com a dívida em euros. Foi o que aconteceu na Hungria, que teve que ser resgatada pelo Fundo Monetário Internacional, em 2008. O FMI insistiu num governo provisório formado por tecnocratas, porque os socialistas haviam falhado redondamente nas políticas económicas e também porque eram bastante corruptos.

Era muito difícil votar pelos socialistas outra vez. Um eleitor são, olhando para o histórico dos socialistas no governo, não poderia votar neles. Só restavam duas escolhas: o Fidesz e os neo-nazis. E um minúsculo partido a que chamei vagamente "verde", vagamente "jovem", mas essencialmente, "vago" - um partido que não defende nada em particular.

O que está a dizer é que o eleitorado não tinha alternativas viáveis?

Sim, não tinha. Neste contexto, o Fidesz recolheu 53% dos votos e, devido ao funcionamento do sistema eleitoral, isso correspondeu a 68% dos lugares no parlamento. Foram eleições muito especiais e é claro que os eleitores não votaram a favor de uma ditadura, mas "foi o que lhes saiu na rifa".

A ditadura foi uma consequência...

Sim. Logo que chegou ao poder, Orbán mudou a Constituição, alterou mais de mil leis, reescreveu o sistema eleitoral para que não pudesse perder nas eleições seguintes, em 2014. No primeiro ano de governo, emendou a constituição 12 vezes e mudou 60 partes diferentes. Um ano depois, apresentou uma Constituição que foi secreta até ter sido votada no parlamento, onde não chegou a ser discutida. Nem sequer houve muito debate e foi aprovada apenas com os votos do próprio partido.

Chegaram ao poder com um plano para trancar todas as instituições independentes, para que ficassem sob o seu controlo. Destruíram o que restava da separação de poderes, tomaram a justiça, introduziram um novo organismo de regulação dos meios de comunicação.

Parece um procedimento pensado...

Sim, penso que foi. Em três anos, consolidaram uma ditadura, sem nunca terem dito aos eleitores e à sociedade em geral, que o iam fazer.

Orbán é o segundo líder há mais tempo no poder na Europa, depois de Merkel...

Bom, mas são situações muito diferentes. Ninguém temia a reeleição de Merkel, enquanto que as pessoas têm boas razões para se preocuparem com a reeleição de Orbán.

Mas foi, de facto, reeleito e conseguiu maioria qualificada. Em 2015, Jean-Claude Juncker chamou a Orbán "ditador da Europa". Era piada, mas agora parece cada vez mais sério. A UE devia agir?

Estou em Portugal e tenho que dizer isto: Barroso compreendeu realmente a situação da Hungria e tentou fazer tudo o que podia. Ele tinha a sensação, como disse frequentemente, que não tinha ferramentas para fazer mais.

A UE foi desenhada baseada no pressuposto de que os Estados eram democráticos e que a preocupação tinha que ser evitar que Bruxelas tivesse demasiado poder. Os freios e contrapesos da UE estão do lado dos Estados-membros, para que se possam defender das instituições europeias. Praticamente não existem freios e contrapesos formais que as instituições da UE possam aplicar aos Estados-membros. É mais um dos problemas estruturais da união.

Mas a UE tem margem de manobra, a nível económico, sobretudo, através dos fundos de coesão...

Durante os mandatos de Barroso, a UE tentou ir por aí. A Hungria tem estado em défice permanente, em valores bem acima dos definidos no Pacto de Estabilidade e Crescimento. E, com base nos valores do défice, Barroso deu início ao procedimento para cortar os fundos de coesão à Hungria e instaurou um processo por défice excessivo (PDE). Devido à forma de funcionar do PDE, é preciso ser aprovado no ECOFIN e, aí, Orbán evitou o voto de outros países membros, lembrando que eles também tinham défices. Mas Barroso tentou cortar os fundos de coesão à Hungria, pelo menos, mais três vezes.

De vez em quando, surgiam notícias na imprensa húngara, baseadas em fugas de informação, de que a UE tinha congelado os fundos à Hungria, com base em preocupações relacionadas com a boa gestão dos mesmos ou com preocupações relacionadas com as leis de contratação pública. O problema é que, quando a UE congela os fundos de coesão a um país, não há nenhum procedimento que torne essa medida pública. É uma decisão tomada com base no diálogo entre a UE e o Estado-membro e é secreta, por lei.

Mais uma vez, penso que isso acontece porque a UE não tem freios e contrapesos em relação aos Estados-membros. Assume-se que "se o país se está a portar mal", basta fazê-lo saber que a UE está preocupada para que o problema se resolva.

A simples manifestação de preocupação não tem estado a funcionar?

Não, e não é isso que se irá passar com Orbán.

O que poderá UE fazer?

Já percebem o que se está realmente a passar, especialmente agora, que a Polónia parece estar a seguir pelo mesmo caminho. A UE sabe que tem um problema sério pela frente, porque o único mecanismo de sanções disponível é o que consta do artigo 7.º do Tratado da União Europeia: permite que a UE coloque um Estado-membro numa espécie de quarentena, retirando-lhe o poder de voto no Conselho Europeu.

Claro que podem sempre cortar os fundos, mas é um mecanismo complexo de pôr em prática. E, mais importante que isso, é que se a decisão for seguir o caminho das sanções, a decisão terá de ser votada por unanimidade no Conselho Europeu.

O que tem sido difícil de conseguir...

Sim, porque basta uma aliança entre dois Estados, em que um proteja o outro, para que não funcione.

Penso que a solução futura terá de passar pelo congelamento dos fundos de coesão do próximo programa-quadro, os Fundos Europeus Estruturais e de Investimento 2020. Vários Estados-membros, como a Alemanha, por exemplo, já vieram a público afirmar que a UE não deve pagar a Estados que minem ou ataquem o projeto europeu, a democracia ou o Estado de Direito. Face a esta posição, pode ser que a atribuição dos próximos fundos europeus venha a ser condicionada.

Além disso, vários países, incluindo Portugal, votaram pela existência de um procurador europeu que possa investigar casos de corrupção envolvendo fundos europeus. A Hungria não assinou e podem usar isso como argumento para congelarem a atribuição dos fundos.

Orbán tem sido protegido pelas instituições europeias?

O partido de Orbán, o Fidesz, é membro do Partido Popular Europeu (PPE), que, ao longo destes oito anos, sempre defendeu ambos. Agora, a Polónia poderá vir a ter que lidar com uma ação relativa ao artigo 7.º lançada pela Comissão Europeia e nada têm feito em relação à Hungria.

A UE tem agido em relação à Polónia, onde o partido do governo, o PiS, faz parte dos Reformistas e Conservadores Europeus, que é um pequeno partido europeu, cuja maioria dos membros são os "torys" britânicos, que estão de saída. O PiS não tem bons amigos no parlamento europeu. Mas Orbán faz parte do PPE, que o defende sempre que o parlamento europeu tenta passar uma resolução.

O PPE defender Orbán? Não é uma contradição?

Gijs de Vries [deputado holandês do PPE], que escreveu uma resolução contra a Hungria, teve muito sucesso em dividir o PPE em relação à questão húngara. Mas até ao momento, foi o único que conseguiu fazer alguma coisa. De Vries é um bom político e conseguiu semear a divisão no PPE de forma notável, mas tem sido muito difícil.

De Vries lançou a resolução contra a Hungria, mas o processo parece ter estagnado...

O PPE têm-se mantido unido na defesa de Orbán. O primeiro-ministro da Hungria crítica a UE e o PPE responde: “Ah, mas ele não quis dizer exatamente isto ou aquilo”. É preciso relembrar que o comentário de Juncker sobre Orbán ser um ditador era, supostamente, uma piada. Vai chegar o momento em que a UE terá de dizer, de forma aberta e clara, que um ditador não é bem-vindo na união.

Juncker não o fez e o PPE também não. A única pessoa que tem lutado contra Orbán tem sido o primeiro Vice-Presidente da Comissão Europeia Frans Timmermans, cujo partido na Holanda está afiliado com os socialistas.

Frans Timmermans está a ser bloqueado?

O que vemos é que este tipo de política partidária atravessa o Conselho Europeu, o parlamento e a Comissão Europeia. Todos têm protegido Orbán e continuam a fazê-lo. Nesta última campanha, Manfred Weber, deputado alemão do PPE, publicou vários "tweets" de apoio a Orbán. E Joseph Daul, presidente do PPE, visitou a Hungria para defender Orbán. É esta que tem sido a política atual da UE.

Comentários
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  • Anónimo
    12 abr, 2018 00:39
    As direitalhas, por mais democráticas que tentem parecer, acabam sempre a proteger a facharia. A mim não me enganam.

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