Tempo
|
A+ / A-

Avós abrem as portas para partilhar memórias e saberes

10 abr, 2018 - 09:53 • Olímpia Mairos

Projeto “Viva@vó” pretende criar no meio académico um novo produto turístico para as aldeias do distrito de Bragança.

A+ / A-

Maria da Graça Afonso de 76 anos, antiga professora primária, natural e residente em Agrochão, no concelho de Vinhais, e é uma das avós do projeto “Viva@Vó” da Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo de Mirandela (EsACT) do Instituto Politécnico de Bragança.

Entrou nesta aventura pelo amor à terra e por considerar “muito importante fazer o levantamento do património, sobretudo imaterial, para que nada se perca e fique como um tesouro vivo para os mais novos”.

Maria da Graça recebe a Renascença vestida a preceito, como uma mulher do campo transmontana, onde não falta o típico lenço na cabeça. Tem diante de si a sua ‘relíquia’: mais de 300 páginas A4 com receitas, lendas, cantigas e estórias que tem vindo a recolher e a atualizar.

Quando foi contactada para integrar o projeto, Maria da Graça pensou que era para partilhar “as receitas de culinária” que foi recolhendo ao longo dos tempos, mas, depois, percebeu que era “algo muito maior” e passava por “atrair turistas à terra e partilhar memórias e tradições”.

“Abracei o projeto com muita alegria porque o que eu mais quero é que nada se perca do que me deixaram os meus antepassados, os hábitos, os costumes”, conta à Renascença.

Depois, com voz melodiosa, entoa o hino da aldeia: “Ó como é bela a nossa terra, a linda aldeia de Agrochão; sempre que alguém a visita, preso cá fica seu coração”.

Quanto às gentes, são acolhedoras e hospitaleiras, sabem “bem receber” e quem “vier cá, não vai dar o tempo por perdido”.

Avó é uma enciclopédia viva

A avó de Agrochão mais parece uma enciclopédia viva de estórias, lendas, relatos, cantares e saberes populares. E começa logo por explicar a designação da sua terra, Agrochão: “provém da palavra Agrochano, que significa terra boa. Ou seja, agro (terra) e chão (bom)”.

A antiga professora primária tem todo o gosto em “passar umas horas ou até um dia com os turistas” a cantar cantigas, a falar dos tempos antigos, dos tempos em que se extraía ali minério, dos trabalhos agrícolas, das várias lendas, como a do caúnho, da fonte milagrosa que “corre gota-a-gota e nunca seca”.

Apaixonada por tudo o que é antigo, e que quer partilhar com os turistas, Maria da Graça ainda hoje se admira como no passado, “com tanto trabalho, tanto trabalho, um sol tão ardente, se cantava pela hora do sol, ao anoitecer e se cantava ao vir para casa”.

E continua -“Era assim: ‘ó senhora, minha ama, ponha a candeia na sala. Vêm aqui os segadores de fazerem sua cegada. Eu quero ser o primeiro a subir a escaleira, para dar as boas noites à senhora cozinheira’”.

As ceifas ou segadas, as malhadas, os ciclos do linho e da lã, a serrada das velhas e os serões à lareira, são atividades e tradições de tempos passados, património imaterial, que a avó Graça quer dar a conhecer a quantos se queiram deslocar à localidade. “Eram tempos ricos, de verdadeiro comunitarismo, de são convívio e amizade”, conta.

E quando falamos no ciclo da lã, Maria da Graça logo se apressa a dizer que, para as moças, a parte da ‘escarramiça’ era a mais fascinante porque, no fim, havia baile certo ao som do realejo. Faziam, assim, da ‘escarramiça’ uma noite bem passada, muito alegre e frequentada por amigas ou vizinhas que, sendo raparigas, atraíam um grande número de rapazes que ajudavam a ‘escarramiçar’ e a namorar.

‘Escarramiçar’, palavra que não consta do dicionário português, é, segundo Maria da Graça, uma palavra que só se usa para os lados de Vinhais e significa separar bem os fios, para que a lã fique macia e seja mais fácil fiá-la.

E em Agrochão, diz Maria da Graça, é obrigatório visitar os museus, o etnográfico “onde estão as raízes da terra e dos antepassados” e o do azeite “dos poucos que está completo”, o santuário do Senhor da Piedade e o da Senhora do Areal ou das Arenas, os moinhos, a Igreja Matriz, e desfrutar das “belíssimas paisagens”.

Para confortar o estômago dos turistas, nesta época, Maria da Graça tem para oferecer “couve guisada com carne assada”.

Combater o isolamento e promover o conhecimento

O projeto-piloto “Viva@vó” arrancou com duas avós. Maria da Graça, de Agrochão, e Lucinda Veloso, 60 anos, de Vila Verde da Raia, no concelho de Chaves. O objetivo dos impulsionadores é que o número aumente para seis avós e que abranja toda a região transmontana.

O professor do IPB, Ricardo Correia, conta à Renascença que o projeto surge da conjugação de duas realidades: o isolamento e o conhecimento.

Cada vez mais as pessoas vivem isoladas, mas têm um grande conhecimento, um grande património intangível, e pretendemos conjugar este grande património e o isolamento com o convívio com turistas que valorizam tudo o que são estórias e tradições”, explica.

A ideia é proporcionar ao turista a descoberta da região pelos olhos da avó. “Nós queremos que o turista, mais do que um guia na região, tenha uma avó que lhe conte estórias e lhe faça viver experiências inesquecíveis”, diz o docente do IPB.

A oferta é dirigida a um segmento muito específico de turistas que, segundo Ricardo Correia, é um “turista acima dos 35 anos, com habilitações de nível superior e que viaja acompanhado dos filhos”.

“Pelas características da região não pretendemos um turismo massificado. Terão que ser pessoas dispostas a passar bons momentos, a conviver durante uma tarde ou um dia com uma pessoa que tem um grande património de conhecimento”, realça.

O IPB está a desenvolver o projeto-piloto para depois o entregar a uma agência, que já está identificada, que, depois, poderá explorar como um negócio viável.

“Nós pretendemos criar uma plataforma onde caiam todas as reservas. A agência será o interlocutor entre a avó e o turista. A avó nunca receberá um contacto direto do turista, isto para evitar possíveis burlas”, conclui o professor do IPB.

O projeto “Viva@vó” resulta de uma parceria entre o Instituto Politécnico de Bragança, o Instituto Politécnico de Viana do Castelo e a empresa A. Montesinho. Tem o apoio do Portugal 2020 e da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+