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D. José Traquina. Instituições sociais não estavam preparadas para serem "empresas"

29 mar, 2018 - 00:02 • Eunice Lourenço (Renascença) e Lurdes Ferreira (Público)

Bispo de Santarém defende que as instituições de solidariedade social são afetadas pelo vaivém de prioridades dos ministros que tutelam o sector. E que precisam de um maior acompanhamento da Segurança Social.

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Bispo de Santarém. "Temos que pagar ao Estado para ajudar"
Bispo de Santarém. "Temos que pagar ao Estado para ajudar"

Para D. José Traquina, bispo de Santarém desde novembro passado e presidente da comissão episcopal para a Pastoral Social, “não pode ser só o mérito” a definir o pagamento do trabalho. “As pessoas podem não ter a mesma habilitação, a mesma formação, mas têm uma família para criar”, frisa em entrevista à Renascença e ao Público.

Está à frente de uma diocese relativamente recente. Tem quarenta e poucos anos, um bocado “entalada” entre Lisboa e Leiria-Fátima. Que realidade encontrou?

A palavra “entalada” fica bem. Acho mesmo que é a única diocese de Portugal que não tem extrema com Espanha nem com o Oceano Atlântico. Tem pelo meio o rio Tejo, uma linha de comboio e uma auto-estrada. É uma diocese com características próprias das cidades, vilas e aldeias, de 250 mil habitantes, num conjunto de sete vigararias, 113 paróquias, 70 padres sendo que cerca de 60 no ativo, com responsabilidades nas comunidades. Obriga a uma entrega às vezes preocupante.

Dizem as estatísticas que se trata de uma região com um poder económico acima da média do país, mas com muito pouco dinamismo económico e um grande envelhecimento. Que realidade social encontrou?

Temos essa preocupação em zonas da diocese, nomeadamente na zona sul do rio Tejo, por exemplo, zonas do município da Chamusca, em que são comunidades mais pequenas e não houve grandes investimentos económicos. Corresponde de facto a uma zona deprimida nesse sentido. Precisa de maior desenvolvimento para fixar população. Há uma dimensão de interioridade, mesmo às portas de Lisboa, e que se identifica com grande parte do país que é o interior que não teve investimentos. Uma santa casa da misericórdia, as câmaras municipais são instituições que garantem alguns empregos e depois há uma ou outra empresa que assegura também, mas o comum [das pessoas] fica muito dependente. Ou vem para Lisboa ou vai para outra cidade mais próxima onde encontra algum trabalho.

Temos outras preocupações da parte institucional, e não é só o caso do Ribatejo ou da diocese de Santarém, que é como é que as nossas instituições de solidariedade que prestam atenção e cuidado às pessoas - tendo as pessoas menos rendimentos para poder colaborar e sendo instituições que conseguem garantir emprego - se vão segurar no futuro.

Essas instituições não acabam por estar muito dependentes do Estado?

Sim, mas a certa altura também foram aliciadas a criar valências para servir as populações, mas depois mudam-se as regras e as instituições ficam com funcionários seus sem conseguir corresponder. No percurso das instituições de solidariedade há alguma injustiça no que respeita ao tratamento continuado. Vem um ministro que cuida por cantinas sociais e pede às instituições que peguem naquela valência; muda-se o ministro, acaba-se essa proposta. E os empregados que se colocaram o que se faz? As instituições sofrem com estas mudanças todas. Há uma mudança de ordenados, muito bem, mas as instituições podem não estar habilitadas. É bom que se faça acompanhamento das instituições para saber se aguentam.

Tem neste momento instituições sem essa capacidade?

Temos uma santa casa da misericórdia na diocese que teve de ter uma intervenção do bispo, da diocese, para resolver pontualmente uma crise que tem a ver com a economia da instituição. E ainda não está resolvida. Teve que se fazer uma paragem nos estatutos, porque a direção não conseguiu resolver o problema. Entrou uma comissão por seis meses e está a pedir mais seis para tentar equilibrar a instituição e depois entregá-la aos irmãos.

Como é presidente da comissão episcopal da pastoral social terá mais algum conhecimento da realidade do país. Há muitos casos de instituições assim para além da sua diocese? Esses problemas colocam-se de forma generalizada?

Colocam-se, há instituições com muita dificuldade em resolver o seu problema económico, porque as instituições não estavam preparadas para se tornarem "empresas" com rendimentos próprios. Por exemplo, na infância, apoiaram-se centros sociais paroquiais para terem creche e jardim-de-infância. A seguir, o Estado constrói um jardim-de-infância ao lado, a certa altura não justifica a infraestrutura. Mas fica a educadora de infância, que não tem ordenado mínimo, que o merece, mas precisa de crianças para educar. Então despede-se com indeminização justa com certeza. Isso leva a instituição a uma situação complicada de gerir.

Quem esteve na gestão das instituições sabe o que custa. Quase todas as instituições são geridas por voluntários que ganham coisa nenhuma. Estão ali de corpo inteiro, não recebem, mas às vezes não são considerados. Nem todos funcionaram bem... É natural. Quando se trata da interioridade do país, naturalmente por haver interioridade, também existem menos pessoas habilitadas para gerir instituições.

O que é preciso então?

Que haja um acompanhamento da parte da Segurança Social, que entrega o dinheiro. Não é só entregar e ver se o serviço está bem feito. Mas também, em alguns casos, verificar se, ano a ano, pelas contas que a instituição apresenta, a gestão está a ser bem feita, para não haver surpresas desagradáveis em relação ao futuro.

Na parte que me compete, todas as instituições que me apresentarem as suas contas, é verificar e comentar o estado da instituição, elogiar quem tem situação mais desafogada e chamar a atenção para quem tem prejuízos consecutivos sem alteração na gestão.

A Segurança Social devia ter um papel mais ativo na auditoria destas instituições?

Penso que já o faz, mas às vezes faz numa exigência, numa fiscalização. Não é isso que estou a pedir. Estou a pedir ajuda de acompanhamento. Na instituição que referi, a Segurança Social portou-se muito bem, porque faz parte da comissão de acompanhamento. Não se pôs do lado de fora. Também é preciso elogiar quando faz bem.

Deveria ser assim para todos os casos?

Sim. Se é uma situação difícil, devia entrar, é do interesse da comunidade. Existem dois tipos de dificuldade. Um deles é a mudança de política, a outra é a dificuldade de gestão de pessoas menos habilitadas para os cargos. Pode acontecer.

Se a Segurança social deve ter um papel mais ativo, que pode fazer a Igreja? Não deve ser um primeiro nível de controlo sobre as suas próprias instituições?

E fazemos tudo o que é possível fazer para manter estas instituições ao serviço, mas se a certa altura se muda o paradigma por parte da Segurança Social ou do Estado, podemos criar uma situação de menos capacidade de resposta. Se nos obrigarem a ter meios próprios de rendimento para responder às necessidades das populações, nós não temos.

Muitas destas instituições cresceram para dar resposta a necessidades mas depois não têm sustentabilidade financeira. É isso?

Isto já é velho. No passado através da igreja surgiu o Património dos Pobres. Há paróquias com dezenas de residências entregues a famílias pobres com dificuldades. A Igreja manteve, zelou, acompanha e está lá. Estão-lhes entregues. Agora, a Igreja que fez isto aos pobres tem de pagar IMI das casas. Como vai pagar? Tem de pagar.

O que vai acontecer?

Vai parar ao Estado, não? Se a Igreja não pode pagar o IMI, os pobres também não, só há uma maneira: o Estado toma conta das casas, claro. Já que toma conta das casas faça também a gestão dos pobres, da aproximação, do cuidado aos pobres. Não estava previsto ajudar os pobres e ter de pagar ao Estado para ajudar os pobres.

Na semana passada, o Presidente da República manifestou vergonha pela pobreza que ainda existe no país pelas desigualdades que Portugal ainda tem. Como bispo e responsável pelo sector da pastoral social, revê-se nestas declarações?

Revejo e deve constituir uma preocupação a nível político, porque há coisas que não se resolvem apenas com boa vontade. Têm de ser pensadas ao nível político. Porque se há melhorias económicas e o risco de pobreza [ou exclusão social] se mantém elevado, de 23,3%, o que corresponde a 2,4 milhões de pessoas, é muita gente em Portugal que corre este risco. O Presidente fez muito bem em mostrar essa preocupação e foi talvez a sua intervenção que fez mais eco, se não ficava do lado estatístico. As estatísticas passam a ser coisa banal.

E como se combate?

São medidas de carácter político e também uma cultura. Não pode ser só o mérito, as pessoas podem não ter a mesma habilitação, a mesma formação, mas têm uma família para criar. Não é pelo mérito, é pela necessidade. Precisamos de uma filosofia de trabalho e dedicação, mas em relação ao pagamento do trabalho tem de haver dignidade. O abandono das pessoas à sua pobreza soa a indiferença, é dizer que "o problema é deles que não querem estudar, não querem trabalhar", é uma indiferença perigosa. Porque quem é agastado e abandonado não tende para fazer bem. As pessoas quando são descartadas vão fazer mal.

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  • Rui Reguila
    29 mar, 2018 Évora 08:36
    "Acho mesmo que é a única diocese de Portugal que não tem extrema com Espanha nem com o Oceano Atlântico" - acha mal, D. José. Lamego e Viseu também. Boa entrevista, todavia.

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