A surreal história de uma

Ponte Eiffel

Está na natureza das pontes ficarem sempre no mesmo lugar. Não foi o que aconteceu com uma das pontes de comboio que Gustave Eiffel deixou em Portugal. Está há anos guardada numa fábrica de candeeiros da Póvoa de Lanhoso.

Rui Barros (Texto e Infografia) e Marília Freitas (Vídeo e Fotos)

Deitada, como um gigante de aço adormecido, carcomida pelos 140 anos de história e pelo abandono a que foi deixada. É preciso um certo exercício de imaginação, mas olha-se e, sim, garante David Barbosa, é uma ponte. Uma ponte de Gustave Eiffel.

A DAEL - Indústria Metalúrgica não fabrica nem repara pontes. Faz candeeiros. Mas é no estaleiro desta empresa de Covelas, a meio caminho entre Braga e a Póvoa de Lanhoso, que está, há 25 anos, um pedaço de história da ferrovia portuguesa: uma ponte projetada pela Casa Eiffel que agora jaz ali, a cerca de 60 quilómetros do local de origem.

De Âncora a Covelas, a ponte percorreu 60 quilómetros.

As circunstâncias que levam uma ponte com mais de 20 toneladas a estar tão distante do ponto para onde foi pensada perdem-se em documentos da administração pública, obras projetadas para atrair turistas, na transição de pastas nas autarquias locais e na falta de fundos para a recuperar. “Quando chegou, já estava como está agora. Se não tem vindo para cá, estaria pior, com certeza. Mas já não dava para recuperar fosse o que fosse.” O olhar experiente do responsável pela DAEL, David Barbosa, sabe identificar a maleita de que sofre a ponte centenária: faltam-lhe peças. “Muitas”, diz-nos.

“Chegou aqui a pedido da Câmara de Póvoa de Lanhoso”, lembra o engenheiro. “Estava num local semi-público, abandonada.”

David Barbosa sabe muito pouco sobre a ponte que guarda na sua empresa. Só que é da Casa Eiffel e que serviu para o comboio passar, algures, num concelho junto ao mar, até a Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso ficar com ela. Sabe também que esteve anos a fio ali perto, junto ao rio Ave, com esperança de ser aproveitada como ponte rodoviária. Partes mais pequenas da estrutura foram desaparecendo e, “há 12 ou 15 anos”, a autarquia da Póvoa de Lanhoso pediu-lhe que a ponte fosse guardada num terreno da sua empresa.

Isto tem uma história. Seria um crime destruir isto para sucata

O gigante de metal causa estranheza e desperta a curiosidade dos sucateiros, que olham para o aço da obra de arte com apetite voraz. “Acham piada a isto, porque estão aqui umas toneladas. Mas isto não é vendável: porque não é nosso e porque, no fundo, isto tem uma história. Seria um crime destruir isto para sucata”, conta o engenheiro, que não esconde um certo orgulho em ter uma ponte de Eiffel nas traseiras da empresa.

"Os vários presidentes foram passando, dizendo 'vamos ter uma solução', mas nunca mais têm solução”, conta à Renascença.

A ponte, que até 1989 servia para que o comboio da linha do Minho cruzasse aos margens do rio Âncora, na Mata Nacional da Gelfa, em Vila Praia de Âncora, aguarda por novo destino, junto a um amontoado de candeeiros de iluminação pública à espera de reparação.

Está na natureza das pontes, em especial das pontes para comboios com 32 metros de vão e várias toneladas, ficarem sempre no mesmo lugar. Não foi o que aconteceu com este projeto da Casa Eiffel, que custou 27.500 francos.

É uma das cerca de 80 pontes que a Casa Eiffel fez em Portugal durante vinte anos, como conta à Renascença Sylvain Yeatman-Eiffel, trineto de Gustave Eiffel. “Ele teve muito sucesso em Portugal.”

Fonte: Pontes de Gustave Eiffel no Norte de Portugal. Edição Edarte / Porto

As 130 toneladas que o tabuleiro suportava serviram as ligações comerciais entre Portugal e Espanha durante mais de cem anos. Com o século XX, chegaram os comboios mais rápidos e a ponte só deixava que as composições circulassem a modestos 20 km/hora. Em 1988, a CP - Comboios de Portugal decidiu substituir a ponte por uma outra que permitisse velocidades superiores.

É também nesta altura que Manuel Sousa, arquiteto paisagista e autor confesso do primeiro ato de deslocalização, começa a trabalhar no projeto para a Mata Nacional da Gelfa. As visitas regulares ao lugar fizeram-no cruzar com a ponte e com os homens que a desmontavam.

“O engenheiro que estava a acompanhar a obra disse-me que a ponte era de Gustave Eiffel e que até era uma pena ir para a sucata”. A falta de consideração por um nome grande da engenharia moderna chocou-o.

Os documentos que a Renascença obteve parecem, no entanto, mostrar que o plano não passava por vender a ponte em sucata. No mesmo ano, o jornal local “Terra e Mar” contava que a Câmara de Caminha queria que a estrutura, deixada junto à linha, fosse reabilitada e colocada “próxima da entrada do Parque Desportivo da Gelfa”. A autarquia solicitou à CP a oferta da ponte. O pedido não foi aceite.

A CP pediu 2.500 contos (cerca de 12.500 euros) respeitantes à desmontagem”, exigência que conduziu Caminha a pedir apoio financeiro ao Instituto Português do Património Cultural. Na resposta, veio um apoio institucional à pretensão de manter a ponte em uso, mas uma recusa em conceder o subsídio.

Não é certo que a transferência de propriedade alguma vez tenha acontecido. Em esclarecimento enviado à Renascença, a Infraestruturas de Portugal informa que a ponte terá sido cedida à Câmara de Caminha. Esta versão contrasta com um pedido de esclarecimento feito pelo próprio município à REFER, em 2012. Caminha queria saber onde estava a ponte.

Na resposta, a REFER esclarece que terá sido “desmontada cuidadosamente”, depois de a Junta de Freguesia de Âncora ter demonstrado interesse na ponte. Mas não foi dada continuidade ao processo e, anos mais tarde, a ponte é transportada para a Póvoa de Lanhoso. Na luta pelo direito à estrutura de Eiffel, a ponte ficou quatro anos numa das margens do rio Âncora, a ver o comboio passar.

Quis o destino (ou o sufrágio autárquico de 1993…) que Manuel Sousa, o arquiteto paisagista que acompanhara de longe a desmontagem da ponte, fosse convidado para integrar o novo executivo camarário da Póvoa de Lanhoso. E, na Póvoa, aquilo que Caminha tinha mas não dava uso, fazia falta.

Separadas pelo rio Ave, as freguesias de Garfe e São Martinho de Campo estavam ligadas por uma estreita ponte de alvenaria, conhecida como Ponte de Nasceiros, desactivada pelo risco de ruina, o que obrigava os habitantes a percorrer mais uns quilómetros para atravessar o rio.

As reivindicações da população, e a feliz coincidência da largura do Ave, naquela zona, corresponder ao comprimento do vão da ponte de Eiffel, fizeram Sousa pensar que estaria ali a solução. Juntava-se o útil ao agradável: o problema do município ficava resolvido, salvava-se o património cultural, e, quem sabe, novos turistas viriam para ver um dos trabalhos do famoso arquiteto do ferro.

“Falei na altura com alguém da CP e eles abdicaram do valor da ponte, que na altura era de cinco mil contos. Ainda era dinheiro”, relembra. As negociações, informais, ditavam que a cedência da ponte implicasse que lhe fosse dada utilidade.

Um gigante de aço não percorre 60 quilómetros sozinho, mas a vontade dos homens pode ajudar. Oito camiões do Regimento de Engenharia Nº3 de Espinho transportaram a ponte durante a noite para a Póvoa de Lanhoso. Uma grande operação logística "sem qualquer custo”, conta.

Do Âncora ao Ave

O grande problema das vontades dos homens é que nem sempre coincidem. E, quando a ponte chega à Póvoa de Lanhoso pela vontade de Manuel Sousa, na primavera de 1993, nada fazia prever que, em agosto desse ano, Sousa decidiria abandonar o cargo de adjunto do presidente da Câmara.

A ponte nunca foi grande tema. Fui quase o ‘desestabilizador-mor’

“Nunca mais ninguém pegou no assunto. E esteve aqui cerca de dez anos em depósito”, nas margens do rio Ave, junto ao local onde deveria ser colocada, recorda Sousa.

Os artigos publicados na imprensa local fizeram da vontade de Sousa uma luta quixotesca que poucos quiseram abraçar. “A ponte nunca foi grande tema. Eu fui quase o ‘desestabilizador-mor’ desta situação”, diz, entre gargalhadas.

O processo fá-lo sorrir, passados mais de 20 anos, mas, na altura, causou-lhe algum incómodo: “Cheguei a ter uma conversa até desagradável com o engenheiro [da CP] com quem negociei, ao ponto de me ter telefonado com algum mal-estar pela ponte não ter sido colocada”, conta.

As negociações terão, de facto, sido informais, já que ninguém parece conseguir dizer à Renascença com exatidão quais as condições de cedência da ponte. Do lado da Infraestruturas de Portugal, sabe-se apenas que a ponte foi transportada para servir de travessia rodoviária entre Garfe e Campo.

Todos os que visitaram a margem do rio Ave nos anos que se seguiram o puderam vê-la, depositada sem cuidados especiais e encoberta de vegetação silvestre. E há quem arrisque dizer que o apetite dos que viram no peso do metal uma oportunidade de negócio fez algumas peças desaparecerem.

Ponte de Nasceiros - entre Garfe e São Martinho de Campo, recuperada anos mais tarde como solução provisória para o problema.

Foi preciso virar o século para que a ponte voltasse a entrar no debate público.

Em 2006, o então presidente da câmara, Manuel Baptista, avança com obras de reabilitação da Ponte de Nasceiros. O anúncio é acompanhado por uma promessa: a recuperação de uma “ponte metálica de Gustave Eiffel, oferecida pela CP, Caminhos de Ferro Portugueses ao município povoense” e que a autarquia acreditava poder “potenciar o interesse turístico e académico do local.”

Mas para a pôr no sítio era preciso dinheiro e a promessa de dar novo uso à estrutura estava dependente de um visto de Bruxelas. A instalação da ponte centenária foi incluída num pacote de intervenções na área da Cultura, na ordem dos 1,05 milhões de euros. Não sabemos se o dinheiro alguma vez chegou. Em janeiro de 2009, o site da autarquia da Póvoa de Lanhoso dá as obras de reabilitação da ponte de alvenaria como terminadas. Sobre o projeto da Ponte Eiffel nada se diz e as questões agora colocadas pela Renascença ao município não tiveram resposta, não sendo possível perceber porque razão o projeto anunciado em 2006 nunca foi avante.

Terá sido na altura em que a câmara da Póvoa de Lanhoso anunciou a pretensão de restaurar a ponte que esta terá chegado à DAEL, a empresa de candeeiros de iluminação pública que dá abrigo à estrutura.

Desde então, David Barbosa pouco mais soube dos planos camarários. "Chegou a haver um projeto para isto, para a colocar no Parque do Pontido, onde iria ser uma estrutura para fazer a fachada de um bar”. Mas desse plano pouco consta a não ser a memória do empresário.

A experiência diz-lhe que, no estado em que a ponte está, devolvê-la à atividade para que foi talhada “não é possível”. "Esta construção metálica em que as ligações são rebitadas a quente já não se usa. Estar aqui a reconstruir isto com soldadura ou com ligações aparafusadas iria desvirtuar toda esta construção. Já não faz sentido”, defende o metalúrgico.

"Isto é apenas um exemplo do desperdício e pouca valorização que fazemos do nosso património", sustenta o presidente da Associação Portuguesa para o Património Industrial, Manuel Cordeiro. E lamenta que este não seja caso único: "Quando se faziam as substituições, ia tudo para a sucata. Por exemplo, a Ponte de Barcelos, que era do Eiffel, foi substituída e foi para a sucata. Outras pontes terão tido o mesmo destino."

O professor universitário lamenta ainda ainda o facto de Portugal desperdiçar o potencial turístico e aponta o dedo aos governantes: “O que me choca mais neste processo é a insensibilidade dos responsáveis, o desconhecimento que têm dos assuntos que deveriam merecer uma atenção redobrada.”

Em busca da ponte perdida

O estado de abandono do gigante de aço não permite, no entanto, antever que há vontade de ficar com tal pedaço de história da ferrovia portuguesa. Mas Âncora quer o regresso da ponte.

“Considero um pouco agressivo a ponte não estar aqui, naquilo que seria o local de origem”, diz António Brás, presidente da Junta de Freguesia de Âncora, que durante vários meses procurou a estrutura pela região minhota. Encontrou-a na Póvoa de Lanhoso.

Deparado com a inutilidade dada à estrutura, Brás logo quis que ela voltasse a habitar as margens do Âncora.

“Decidimos abordar a Câmara Municipal da Póvoa de Lanhoso, no sentido de procurar agilizar uma forma de fazer regressar a ponte”, relata.

“Acabámos por conseguir uma reunião, na altura com a vice-presidente, que demonstrou alguma compreensão, mas disse que isso implicava uma decisão política. Que haveria necessidade de a Assembleia Municipal se pronunciar, uma vez que tinha sido feita uma aquisição pelo município. Compreendemos e ficámos sempre na expectativa de que nos fosse dada uma resposta”, lembra o presidente da junta. Mas a resposta não chegou.

As margens do Âncora já não são aquelas que a ponte de Eiffel conheceu durante os mais de cem anos que por lá morou. Um supermercado nasceu ali por perto, a passagem de nível perdeu o guarda e, neste momento, uma ciclovia nasce ali perto. Intervenção que Brás encarou como uma oportunidade para fazer regressar a obra a casa: ou para fazer a ciclovia atravessar o Âncora ou como elemeto decorativo de um bar de apoio à praia fluvial.

“A primeira grande vontade é fazer regressar a ponte à freguesia”, defende Brás, ainda que reconheça “não ter um projecto delineado” nem “capacidade financeira para pedir opiniões de âmbito arquitectónico que possam fornecer outro tipo de ideia”.

"Neste momento, se me a tirassem de cá, eu agradecia. Mas se me disserem que a vão pôr ali, abandonada, eu digo 'deixem estar aqui que gente guarda’”, graceja David Barbosa, para quem a ponte já faz, de algum modo, parte da empresa.