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Eurovisão. Catering, filmar e fotografar é trabalho ou é voluntariado?

26 fev, 2018 - 14:00 • João Carlos Malta

RTP e IPDJ abriram candidaturas para voluntariado no Festival da Eurovisão, em Lisboa, que se realizará em maio. Há lugar para 400 jovens distribuídos por 18 funções. RTP diz que “proporciona experiência profissional”, sindicatos e especialista em direito do trabalho falam de “trabalho encapotado”.

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Assistência à coordenação de transportes, atender no “front desk”, ajudar na organização de prioridades dos espaços de catering, gerir prioridades no serviço de refeições, gestão e informação ao público ou fotografar e filmar, “trazendo o próprio material para cumprir a função”. Em troca, os voluntários do Festival da Eurovisão podem receber uma t-shirt, refeições, um seguro, um certificado de participação e “obviamente a possibilidade de se divertir imenso”.

Não haverá direito a dormida, mas a organização sugere o “couch surfing” e quanto a transportes não há ainda certezas, mas há negociações para que haja bilhetes para aqueles que se voluntariem a estar no evento que ocorrerá no Altice Arena.

No total, a RTP e o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), que estão a lançar o processo de recrutamento, têm 18 funções em aberto para 400 voluntários de toda a Europa, para os quais os portugueses terão primazia na seleção. Ou seja, mais de um terço do total das 1.100 pessoas que vão estar envolvidas em tudo o que rodeia o Festival da Eurovisão, desde a preparação até a desmontagem, de 1 de abril a 15 de maio, fá-lo-ão em regime de voluntariado.

Mas será que a especificidade e a quantidade de funções para que o trabalho não remunerado é requerido neste evento se pode definir como voluntariado? Ou será transferir trabalho profissional e remunerado para trabalho gratuito, e assim poupar dinheiro?

Modelo internacional

A EUB (União das Emissoras Europeias) delega à RTP, como televisão local o papel de organização do evento, e a diretora de Marketing e Comunicação da televisão pública, Marina Ramos, sublinha à Renascença que “o recurso ao voluntariado faz parte do modelo do ESC (Festival da Eurovisão). É um padrão que se repete anualmente. O objetivo é proporcionar experiências profissionais e contactos, a nível internacional, normalmente muito apelativos para quem quer enriquecer o currículo, participando em eventos internacionais”.

A responsável salienta que “a participação é em regra bastante solicitada”, e que em menos de uma semana a RTP já recebeu 700 candidaturas.

A mesma responsável explica ainda que este modelo é partilhado por outros grandes eventos internacionais: Mundiais e Europeus de futebol, Jogos Olímpicos ou a Web Summit. “Em Estocolmo [na Eurovisão], há dois anos, estiveram 475 voluntários. (…) Não é caso único”, detalha Marina Ramos.

O advogado e especialista em direito do trabalho Garcia Pereira defende que o argumento não colhe.“A generalização da ilegalidade nunca produz a legalização do que é ilícito. Além de que estou a falar do quadro legal que é aplicável às condições de trabalho constituída com trabalhadores portugueses e que é firmado em território ao território nacional. A luz do direito de trabalho português parece-me estar perante uma fraude à lei”, considera o especialista.

“O argumento de que noutros países se faz da mesma forma, salve o devido respeito, não tem a menor validade, em limite levaria a que em países que se pratica a escravatura não traria grande mal, e quereria dizer que não haveria problema e não estaríamos fora da lei se seguíssemos o trabalho escravo ou análogo ao escravo”, acrescenta.

O secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, afirma que a organização ao defender que apenas segue um modelo europeu é “um argumento frágil”.

“Nada obriga a RTP a seguir maus exemplos de outros, depois estamos a falar de um evento que mobiliza centenas de milhões de euros, algo que movimenta tanto dinheiro não se justifica que se recorra ao trabalho de voluntariado para se fazer trabalho de serviço permanente”, considera o sindicalista.

Seguindo este raciocínio, argumenta Arménio Carlos, o âmbito da Eurovisão “nada tem a ver com a solidariedade social e nada tem a ver com atividades que temos muitas vezes de prestar aos nossos concidadãos”.

Voluntariado é ou não para enriquecer currículo

Marina Ramos, da Comunicação da RTP, diz que o modelo faz parte do contrato, reforça que “ainda bem que lá está” porque “estamos a proporcionar uma grande oportunidade aos jovens de participar num evento desta dimensão.”

Garcia Pereira mais uma vez não podia estar em maior desacordo. “O serviço de voluntariado não serve para enriquecer currículos profissionais. É uma ação de interesse social e comunitário, realizado de forma desinteressada pelas pessoas, não é uma atividade profissional nem serve para enriquecer currículos profissionais”, defende.

Para o advogado esta justificação é usada para as formas mais escusas de mão-de-obra jovem qualificada, ou seja, “toda a panóplia de fraudes que os nossos jovens são vítimas, desde os recibos verdes fraudulentos até aos contratos de estágio que eram mediamente remunerados, e depois passara a ser pessimamente remunerados, até serem gratuitos”.

“Já conhecemos hoje estágios em que é exigido ao estagiário que pague porque está a enriquecer o currículo. Esse argumento só reforça a ilegalidade”, alerta.

Carlos Silva, secretário-geral da UGT, reage igualmente de forma negativa à tese de “da grande oportunidade”.

“Não me confundam com o argumento de que é para os jovens terem um primeiro espaço de contacto com determinadas áreas que são importantes. As pessoas vão trabalhar de borla. Andamos a discutir a precariedade no nosso país, a mão de obra barata, e os salários baixos. Isto é um evento que gera milhões e milhões de lucro para todos os participantes”, defende o sindicalista.

Exigir à RTP mudanças

Também o líder da CGTP, considera que não faz sentido que se esteja a recorrer ao voluntariado para serviços que deviam ser remunerados e suscetíveis de ter um contrato.

“Há aqui uma atitude que não podemos deixar de criticar e de exigir junto da RTP para remunerar os que vão prestar um trabalho. Não se trata de voluntariado. Tem a ver com a substituição de um contrato de trabalho remunerado por um trabalho de voluntariado não remunerado. Isso não faz sentido”, critica o sindicalista.

Também a UGT pede que o Governo intervenha junto da RTP. “Cabe ao Governo em primeira linha determinar as orientações políticas das boas e das más práticas da RTP, porque é a televisão pública e deve dar o exemplo. Não se pode exigir aos outros, o que depende de nós em primeiro lugar”, argumenta.

Apesar de no formulário se usarem expressões como “assistência à coordenação”, “gerir prioridades”, “assegurar a manutenção de espaços”, “organização de documentação” ou “atendimento de chefes de delegação”, a RTP garante através de Marina Ramos que estes jovens “não vão coordenar, não vão gerir nada”. “Não podem”, salienta.

Complementar ou essencial

A diretora de Marketing e Comunicação da RTP assegura de que os voluntários serão sempre complementares aos elementos do 'staff' nas diversas funções. Garcia Pereira diz que esse argumenta não torna aceitável o processo.

“Considero isso um expediente para tentar tornear este dispositivo legal da complementaridade. Não pressupõe que todo o trabalho e todas as tarefas sejam feitas por voluntários, o que proíbe é que a contratação de um voluntário sirva para substituir recursos humanos que são necessários à prossecução da atividade”, começa por afirmar.

E depois precisa: “Estamos a falar de uma situação em que para cumprir uma determinada tarefa são precisas dez pessoas e estão lá cinco do quadro, e cinco do voluntariado. É óbvio que temos a violação do princípio da complementaridade à mesma.”

Oportunidade ou trabalho gratuito

A poupança nos gastos com pessoal é uma crítica a este modelo de voluntariado. Marina Ramos não nega que haja poupanças, mas rejeita que seja essa a lógica, sublinhando que essa é uma conta que a organização não faz.

“Vemos isto pelo lado positivo. Estamos a proporcionar uma grande oportunidade”, reitera a responsável da RTP, que adianta ainda que os voluntários terão turnos máximos de cinco horas diárias e folgas normais, daí serem precisos vários voluntários para cada função do ESC.

Garcia Pereira critica o princípio e o fim do que considera uma ilegalidade. “Vejo um expediente para ter uma mão de obra que será muito generosa e dedicada e gratuita...”, acredita o advogado.

Carlos Silva corrobora a tese: “Corremos o risco de transformar o voluntariado num conjunto de tarefas repartidas por não sei quantas funções que são apenas uma máscara porque vão fazer coisas que de outra forma seriam remuneradas.”

Também do lado dos patrões e dos empresários, esta não é uma prática bem vista. O presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, João Vieira Lopes, defende que o Festival da Eurovisão é um evento com características comerciais com patrocínios e prémios “e como tal deve ser organizado e gerido de uma forma profissional”.

O líder empresarial pensa que com a complexidade e a diversidade de áreas que a organização abrange impõe-se uma actuação e um nível de serviço, que “constitui ao mesmo tempo uma oportunidade para os profissionais e empresas de prestação de serviços das diversas áreas envolvidas.”

E conclui que “substituir em grande escala a contratação de empresas ou pessoas pelo trabalho 'voluntário' de centenas de pessoas acaba na prática por ser uma forma de concorrência desleal em relação às empresas de prestação de serviços nessas áreas.”

Segundo Garcia Pereira esta situação deveria levar à atuação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), mas tem poucas expectativas de que isso aconteça e fala da situação lastimável em que se encontra a instituição.

“Mesmo antes do diretor-geral ser demitido, já a ACT do ponto de vista da sua capacidade inspetiva estava inerte, quanto mais quando é para contender com interesses e objetivos económicos e até políticos importantes”, resume.

Num momento em que o Governo do PS e os parceiros na Assembleia da República fazem do combate à precariedade um tema central das políticas laborais, Arménio Carlos defende que se trata de “um contra-senso” e, por isso, se justifica “que a tutela que acompanha a RTP tome medidas no sentido de pôr termo esta situação”.

[notícia corrigida - jovens distribuídos por 18 funções e não por 14]

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