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Presépio tradicional português está em risco. Saiba como preservá-lo

11 dez, 2017 - 10:54 • Rosário Silva

Uma das características é o facto de ter diferentes níveis (montes e vales) e a gruta, onde está instalada a Sagrada Família, em destaque. Especialista teme efeitos da invasão de presépios "Made in China".

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Durante um mês, o quartel velho dos Bombeiros de Santiago do Cacém é o local escolhido para acolher o Presépio Tradicional Português. A Iniciativa é do Centro UNESCO de Arquitectura e Arte preocupado com o futuro desta arte que faz parte da identidade cultural portuguesa. Em entrevista à Renascença, José António Falcão enuncia as preocupações e explica como é possível conjugar tradição com modernidade.

A proximidade do Natal faz com que o Centro UNESCO de Arquitectura e Arte (UCART), que dirige, alerte para o risco de extinção do presépio tradicional português. Que preocupação é esta?

Primeiro dizer que se aproxima o dia 8 de Dezembro, habitualmente o dia que muitos escolhem para inaugurar o presépio que desmanchamos no dia de Reis, a 6 de Janeiro. Na verdade, até estamos a notar que hoje em dia se fazem mais presépios, é talvez uma moda, mas aquele que consideramos ser o presépio tipicamente português, que caracteriza uma manifestação cultural da nossa identidade, está em risco. Por um lado, assistimos à importação de conjuntos que já vêm pré-feitos, sabe-se lá da China ou de outro ponto, e por outro lado, os materiais, além da falta de qualidade, do ponto de vista estético não revelam o melhor gosto. Finalmente, e é uma preocupação acrescida, o esquecimento daquilo que são alguns preceitos básicos.

E, quando fala nesses preceitos, nesses princípios, refere-se a quê?

Olha, o presépio tradicional português faz parte de um grande conjunto que é o presépio europeu, mas possui algumas características próprias. Uma delas, por exemplo, é o seu desenvolvimento em altura. Nós temos que imaginar que o presépio é montado em ambiente doméstico, na casa de cada um, e o espaço disponível, e a própria estrutura de base que eram geralmente mesas e cadeiras que se agrupavam para dar origem a estes conjuntos, não era excessivo, e daí a necessidade de ganhar altura. A altura é uma característica do nosso presépio. Além disso, reflecte-se neste aspecto, simbolicamente, aquela Belém longínqua, em plena Palestina, que era também montanhosa e é assim que aparece descrita nas Sagradas Escrituras.

Mas não é difícil fazê-lo?

Não. Exemplificando. Pensemos na necessidade de se montarem socalcos, surgirem cascatas, rios e lagos, tudo organizado num espaço devidamente confinado, mas conseguindo criar uma dinâmica de terceira dimensão. Ou seja, o presépio é como se fosse uma grande escultura. É um grupo escultórico, monumental, que precisa de espaço e precisa de articular com os seus espectadores, as pessoas que vêm venerá-lo, observá-lo. Há aqui uma dinâmica muito interessante com um foco na representação. Deve-se representar uma gruta com bastante protagonismo, deve ser uma gruta central ou pelo menos numa posição de algum destaque, naturalmente a Sagrada Família. Hoje, é muito desagradável ver presépios em que a Sagrada Família está encostada a um canto e parece que está ali de empréstimo, sendo que o resto é que é importante. Não, este é o fulcro. Tudo o que possamos colocar a mais no presépio, vai apenas completar a sua mensagem.

Mas estamos numa região rica em usos e costumes. A tradição, a nossa identidade passa também por aqui. São, seguramente, características do nosso presépio?

Claro, e essa representação inclui os usos e costumes, mas também os ofícios populares, tanto no âmbito campestre como no âmbito urbano. Para lhe dar outro exemplo, teríamos uma coisa muito interessante que são as cavalgadas, quer de cavalos, quer mesmo de camelos pois temos os Reis Magos, mas estes vêm acompanhados, normalmente, por um séquito. Por outro lado, temos outros aspectos interessantíssimos de cruzamento entre a terra e o mar. Não só o mundo rural, mas também o marítimo. As conchas que muitos presépios ostentam, são uma lembrança desse mar que, de resto, na Palestina estava relativamente próximo.

E há, também a natureza…

Sem duvida que existe uma grande interacção entre a esfera do humano e a esfera animal, a esfera da natureza. Temos a vegetação que desempenha aqui um papel enorme já que mostra o papel da criação no Universo e, hoje, através da vegetação podemos fazer passar uma mensagem ecológica. Nos presépios que se montam não devemos escolher espécies protegidas. Temos que ser criteriosos nas plantas que elegemos e há que olhar também para o aspecto aromático dentro desta mancha de verdura que é fundamental. Outro aspecto, os animais. Temos uma peleia de animais domésticos, mas temos outros que também vieram participar neste magno mistério do presépio e tudo isto conflui para a exaltação deste Cristo Salvador, deste Menino que nasceu e tem consigo toda a natureza, toda a Humanidade.

O religioso e o profano, no fundo, o fruto da criação. E este lado da arte, que é uma característica tão portuguesa, está de alguma forma a perder a sua expressão?

Eu diria que se perde um bocadinho a tradição de construir o presépio tal como ele faz parte da cultura portuguesa. Isto prende-se, por um lado, com a falta de diálogo entre gerações e a grande preocupação que temos de ter, para que os mais velhos ensinem os mais novos. As nossas famílias, as nossas casas deviam ser uma espécie de escola na arte de fazer os presépios. Não é muito difícil e hoje a informação circula com facilidade, mas se alguém tiver dificuldades, nós no Centro UNESCO de Arquitectura e Arte, estamos disponíveis para dar estas indicações elementares.

Por outro lado, não podemos esquecer que há, também aqui, uma questão de estética. O presépio deve ser uma manifestação de bom gosto. Há uma harmonia de cores e de materiais que deve ser preservada, mas sobretudo no que diz respeito à tradição portuguesa, há que ter em conta o jogo das escalas. Por exemplo, o presépio como objecto tridimensional é disposto num determinado recinto, pode ser a sala de cada um, pode ser numa igreja, pode ser num museu, pode ser até a via pública, mas deve convidar as pessoas a aproximarem-se e a descobrir os seus pormenores.

O detalhe é importante?

Claramente. É um jogo, quando alguém se aproxima não capta tudo à primeira, mas deve circular e dirigir o seu olhar de forma sucessiva. Isto permite conhecer melhor a riqueza daquela mensagem e ao mesmo tempo ter interesse narrativo. É um enriquecimento do ponto de vista cultural e visual para quem faz esta experiência. São necessárias horas de investimento nisto, mas como qualquer manifestação artística, há aqui uma componente pessoal que não pode ser escamoteada.

É algo que, muitas vezes, não encontramos nos presépios de rua…

Nós temos de dar espaço à inovação. O presépio tradicional português sempre incorporou contributos de épocas diferentes. O que não faz muito sentido é que esses contributos sejam de tal maneira clamorosos que façam esquecer tudo o resto. Penso que deve haver um ponto de equilíbrio que passa muito pela questão do bom gosto e bom senso, sempre essenciais neste tipo de intervenções. Por outro lado, há que ter cuidado para não cair no ridículo. Esta é outra questão. A mensagem do presépio é uma mensagem profundamente tocante, envolvente, e exige algum respeito para que possa surtir efeito e possa despertar este sentimento de magia que ao longo de tantas gerações, a todos nós, miúdos e graúdos, nos acalenta. Neste tempo, às vezes um pouco difíceis, como os que temos vivido ultimamente, a mensagem, do presépio é uma mensagem de esperança e isso também deve ser sublinhado na construção de um presépio tradicional.

E é em Santiago do Cacém, onde o UCART tem a sua sede, que o verdadeiro presépio tradicional nasce (ou renasce) este ano, com o contributo da comunidade, não é?

De facto, há já alguns anos que se faz este esforço. Foi também nosso desejo levar o presépio tradicional português a outros países. Recordo que em 2014, inauguramos um grande presépio na Basílica de Nossa Senhora de Fourviére, a padroeira de Lyon e foi visto por mais de um milhão de espectadores. Isto deixou-nos o gosto de continuar com este trabalho. Uma das maravilhas deste presépio é que ele consegue dialogar com os recintos que o recebem e, portanto, funciona bem em qualquer espaço desde que o ambiente seja de um certo recolhimento e se consiga criar empatia com o espectador. Depois de ter estado em Lyon, já esteve no Museu de Sines, e o ano passado no Museu Episcopal de Beja. Ora, este ano tornava-se necessário dar um sinal no centro histórico de Santiago do Cacém. Uma lindíssima cidade do litoral alentejano e foi o velho quartel de bombeiros, um espaço emblemático que data de 1931 e que tem a vantagem de ter grandes superfícies envidraçadas, muito bem integradas no conjunto histórico, o que permite construir um presépio com uma cenografia de grandes dimensões. Foi uma iniciativa que juntou mais de 50 pessoas. É, verdadeiramente, um presépio comunitário, houve quatro equipas que se foram revezando. Há figuras emprestadas por moradores e instituições da região.

E com a curiosidade de serem figuras, grande parte delas, com mais de 50 anos…

Creio que não há nenhuma figura que não tenha praticamente um século, mas a nossa barreira foram os 50 anos, não por uma questão de passadismo, mas porque hoje em dia, as figuras que encontramos no mercado, a sua maioria não respeita os preceitos da tradição, ou seja, não se consegue aquela harmonia que é essencial para passar a mensagem que queremos transmitir.

Portanto, Santiago do Cacém vai ter um presépio com figuras com mais de 50 anos, com características do presépio tradicional português e, mais ainda, com a colaboração da própria população?

Exacatmente. Tivemos avós e netos, tios e sobrinhos, pais e filhos, pessoas que não se conheciam e convergiam para aquele espaço. E é muito curioso verificar que como essa população, essa comunidade, se congregou em torno do presépio, e as pessoas que foram passando nas ruas, quer sejam os locais, quer sejam visitantes ou turistas, aproximaram-se. Esta é uma iniciativa que durante cerca de um mês vai ter também um programa de actividades, conferências, visitas guiadas, concertos, oficinas de presépio, tudo o que permita passar a mensagem e difundi-la a um público que queremos começar a formar desde muito novo, as crianças que são os futuros construtores de presépios.

Aliás, a união da família, da própria comunidade, é a mensagem do presépio.

Repare, nesta agenda do Natal, um tempo sempre muito conturbado em que todos nós andamos um pouco nesta vaga consumista, proponho que resistamos a esse excesso de consumo e dediquemos algumas horas, em família, entre amigos, a construir presépios de qualidade. A mensagem do presépio é uma mensagem evangélica e remete-nos para o coração das nossas comunidades. Depois, voltemos ao nosso presépio, ao tradicional.

Temos de ter consciência, e aí o papel da UNESCO neste âmbito, de que se nada for feito as coisas podem complicar-se muito. Nós temos feito estatísticas ao longo dos últimos anos e verificamos que é cada vez menor o numero de presépios que respeitam aquilo que são as normas do presépio tradicional português. Atenção, isto não significa um passadismo, não temos que ficar congelados no passado. Temos é de conseguir integrar o que é antigo e o que é moderno de uma maneira profundamente equilibrada.

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