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Análise

Supremo Tribunal dá vitória a Trump depois do sucesso na reforma fiscal

05 dez, 2017 - 11:14 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Desde que entrou na Casa Branca que Trump não saboreava tantos triunfos. Venceu na questão da imigração e viu o Senado aprovar a proposta para mexer nos impostos.

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Donald Trump teve duas vitórias políticas em três dias, numa conjugação de factores que faz desta mini-conjuntura a mais favorável para o Presidente americano desde que tomou posse, há 11 meses.

Na segunda-feira, o Supremo Tribunal caucionou a proibição de entrada nos Estados Unidos de cidadãos provenientes de oito países – seis dos quais muçulmanos – deliberando sobre a primeira polémica desencadeada por esta administração poucos dias após tomar posse.

E na madrugada de sábado, o Senado aprovou uma reforma fiscal que, embora arrancada a ferros, corresponde, no essencial, ao que Trump pretende implementar no país.

A decisão sobre a entrada de nacionais da Síria, Irão, Líbia, Iémen, Chade, Somália, Coreia do Norte e Venezuela não é propriamente uma surpresa, já que em Junho o Supremo Tribunal tinha, numa primeira apreciação ao decreto de Trump, dado sinais de que poderia aprovar uma versão mais moderada do diploma. E foi isso que a administração fez entretanto: avançou com uma terceira versão do decreto e viabilizou a sua aprovação.

O curioso é que a decisão divulgada esta segunda-feira pelo Supremo não refere os fundamentos; é uma informação lacónica que se limita a anunciar a aprovação do decreto e a dizer que duas juízas votaram contra – Ruth Ginsburg e Sonia Sotomayor. O que pressupõe que os restantes sete juízes lhe foram favoráveis, num consenso entre conservadores e liberais um pouco inesperado num tema tão controverso.

Enquanto a decisão de Junho tinha impedido a administração de vedar a entrada a quem tivesse laços familiares estreitos ou usufruísse de bolsas de estudo ou provasse que estava de “boa fé” para permanecer nos EUA, a decisão desta semana aceita a proibição generalizada dos cidadãos dos países referidos.

A admissão desses nacionais fica agora à mercê da arbitrariedade da administração, cujo Presidente já deu sobejas provas de xenofobia em relação aos muçulmanos. A última delas foi na semana passada, quando “retwitou” três vídeos divulgados por um grupo de extrema-direita inglês com o intuito claro de incitar ao ódio anti-muçulmano.

Proibir todos os cidadãos dos seis países muçulmanos referidos de entrar nos EUA foi interpretado por vários tribunais americanos ao longo deste ano como sendo anti-constitucional por se tratar de um critério baseado na discriminação religiosa.

A administração sempre contrapôs que se tratava apenas de proteger o país contra o terrorismo, defender as fronteiras e escrutinar melhor quem quer entrar. Uma tese que o Supremo Tribunal terá acolhido, embora ainda se desconheça o respectivo fundamento.

Desde a primeira tentativa de aplicar o decreto que milhares de americanos e inúmeros grupos cívicos se mobilizaram para os aeroportos para acolher quem chegava desses países e garantir que entrava nos EUA.

Enquanto nação construída por imigrantes, muitos dos quais justamente vítimas de perseguições religiosas nas suas terras de origem, a América parecia empenhada em derrotar as intenções de Trump. Um desígnio que o Supremo Tribunal agora frustrou.

A decisão foi conhecida um dia depois de se saber que os EUA decidiram abandonar um pacto sobre migrações e refugiados a que tinham aderido no ano passado no âmbito da ONU. Embora não vinculativa, a resolução visa estabelecer regras de acolhimento aos refugiados e a ela aderiram todos os países com assento nas Nações Unidas.

O abandono do compromisso deve-se ao facto de ter sido assumido pelo Presidente Obama, de que Trump se quer demarcar obsessivamente, mas é também a expressão da política isolacionista que caracteriza esta administração.

Neste momento, os EUA são o único país do mundo que não integra dois grandes consensos globais: este pacto sobre refugiados e o Acordo de Paris sobre alterações climáticas.

Reforma fiscal

Além do isolacionismo do “America First” (América primeiro) que tinha prometido na campanha eleitoral, Trump assumiu o compromisso de alterar o sistema fiscal do país. Simplificar drasticamente o preenchimento das declarações, que são um quebra-cabeças, baixar substancialmente os impostos, reduzir os escalões e as deduções – eram os objectivos principais.

Expostos desta forma, não era difícil recolherem apoio generalizado, mas da propaganda à realidade concreta vai uma distância considerável. Depois de a Câmara de Representantes (a câmara baixa do Congresso) ter aprovado a sua versão, a discussão passou para o Senado e o objectivo era ter tudo decidido na semana passada.

Como as divergências eram enormes, a liderança republicana prolongou a sessão até à madrugada de sábado para garantir a maioria dos votos. E só às duas da manhã é que a proposta passou à justa – 51 votos a favor contra 49. Todos os democratas votaram contra, assim como um senador republicano.

A maioria tangencial foi garantida pela liderança republicana graças a dias e noites de negociações que se transformaram numa espécie de feira onde valeu de tudo. Cada senador republicano que tinha objecções à proposta colocou em cima da mesa as suas reivindicações, que em muitos casos eram completamente alheias às questões fiscais.

É assim que, na barganha generalizada em que se transformou o Senado, juntamente com o projecto de lei fiscal, foi aprovada a rejeição da obrigatoriedade do seguro de saúde contemplada no Obamacare. Ou a exploração de petróleo e gás numa reserva natural do Alasca. Ou dada a garantia de que os jovens filhos de imigrantes não documentados não serão expulsos do país.

As quase 500 páginas da proposta de lei espelhavam o quanto as negociações tinham sido árduas. Eram inúmeras as anotações nas margens, os cortes de secções inteiras, as emendas de artigos, que só terminaram uma ou duas horas antes da votação final. Tudo manuscrito e em muitos casos ilegível. Mas a obsessão em aprovar a proposta naquela noite falou mais alto do que a dignidade dos legisladores.

Em termos substanciais, a proposta baixa os impostos para as empresas, que passam de 35% para 20%, e avança com um esquema de descida de impostos individuais que favorece quem tem maiores rendimentos.

Segundo o gabinete orçamental do Congresso, uma entidade independente que analisa o impacto das medidas económicas no orçamento, as famílias que ganham até 75 mil dólares por ano vão pagar mais impostos no médio prazo porque algumas das deduções fiscais existentes acabarão. E aquelas que ganham até 30 mil dólares serão igualmente penalizadas.

O principal alerta do gabinete orçamental respeita ao enorme aumento do défice resultante da proposta. A baixa generalizada da receita provocará um aumento de cerca de 1 trilião de dólares (bilião, na equivalência portuguesa) a somar aos deficitários 20 triliões de hoje. Vários senadores exprimiram a sua preocupação em relação ao assunto, mas a liderança republicana contrapôs que o impacto da descida de impostos teria um efeito de crescimento na economia que compensaria a perda de receita.

O secretário do Tesouro prometeu apresentar um estudo comprovativo do fenómeno, mas nunca viu a luz do dia. Em contrapartida, o gabinete orçamental estimou em menos de 1% o crescimento económico induzido pela descida dos impostos. Daí a previsão do gigantesco aumentou do défice federal.

Na tradição do conservadorismo fiscal, alguns senadores republicanos objectaram a um tal aumento do défice e propuseram a criação de um mecanismo automático de aumento de impostos caso o efeito benéfico na economia não se verifique ao fim de algum tempo. A liderança da bancada não aceitou, o que fez com que o senador Bob Corker, autor da proposta, votasse contra o diploma. Foi o único republicano a fazê-lo.

Convém lembrar que os republicanos aprovaram há dois anos a obrigatoriedade de qualquer medida económica significativa ter de ser analisada pelo seu impacto na despesa antes de ser aprovada.

A argumentação oficial dos conservadores é que esta proposta se paga a si mesma com o crescimento económico que vai gerar, mas não há uma única análise independente que corrobore o argumento.

Estímulo desnecessário

A filosofia da proposta assenta naquilo que ficou conhecido como “trickle down economics” no tempo de Ronald Reagan, nos anos 1980. E consiste basicamente em baixar impostos aos ricos para que o investimento aumente, a economia cresça e a prosperidade se generalize, chegando também a quem tem baixos rendimentos.

A experiência de Reagan, contudo, não comprovou a teoria. A riqueza criada não “escorreu” (trickle) para os de baixo, as desigualdades sociais aumentaram e o défice orçamental disparou. O sucessor de Reagan, George Bush “pai”, acabou a denominar o esquema como “economia vudu”.

Para além do debate ideológico, porém, surgiram vozes críticas a alertar para os riscos de um estímulo fiscal neste momento. Segundo esses especialistas, a economia americana não precisa de tal estímulo porque os indicadores são todos positivos: o crescimento ronda os 3%, o desemprego ronda os 4%, o que é virtualmente nulo, e a bolsa continua a bater recordes.

Os sinais da grande recessão desapareceram no horizonte e um estímulo fiscal nesta conjuntura poderá ser contraproducente. Por um lado, porque faltará dinheiro público para investimento em infra-estruturas de que o país muito necessita. Por outro, porque poderá provocar inflação, forçando a Reserva Federal a subir as taxas de juro, e acabando por inibir o investimento que visa estimular.

Mas sejam quais forem as consequências económicas, é inegável que a aprovação da proposta fiscal é uma clara vitória política para Trump, a que veio juntar-se esta segunda-feira a decisão do Supremo Tribunal sobre a imigração.

Se na frente política se percebe optimismo nas hostes trumpistas, na frente judicial adensam-se as nuvens com a investigação à interferência russa na campanha eleitoral.

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