Um filósofo e um físico na escola do sofrimento de Cristo
01 abr, 2015 • Filipe d'Avillez
Haverá uma linha entre crentes e não crentes? Entre os ateus que dão de beber a quem tem sede e os católicos que "fecham a sua religiosidade entre o Pai Nosso e o Ámen", há muitos diálogos a manter e muitas portas por abrir, dizem José Luís Nunes Martins e Paulo Pereira da Silva.
"Acontece-me muitas vezes estar a falar com aqueles que dão de comer a quem tem fome, dão de beber a quem tem sede, vão visitar os doentes e os que estão presos e que vão ser salvos e que muitas vezes não têm grande devoção, não têm grande fé em Jesus Cristo. E sou eu que tento aprender com eles, o que lhes move."
É um católico que o diz, o filósofo José Luís Martins. Em contraposição, afirma à Renascença, existem demasiados católicos que se "fecham a sua religiosidade entre o Pai Nosso e o Ámen, que se fecham na Eucaristia dominical."
Com Paulo Pereira da Silva, formado em Física Teórica, Martins escreveu o livro "Via Sacra para Crentes e Não crentes" (ed. Paulus, 2015).
Que relação é que um ateu pode ter com a história da paixão, morte e ressurreição de Jesus? A resposta não é simples. Se a ressurreição apenas está ao alcance da fé, a paixão e morte de Cristo são realidades traduzíveis para a vida de qualquer pessoa, acredita José Luís Nunes Martins.
Para Martins, a própria figura de Jesus crucificado é indissociável da universalidade da mensagem cristã: "No crucifixo, Jesus Cristo é um homem de braços abertos, prestes a abraçar quem o quiser. Foi condenado a essa posição. Vejo tantos sentidos que qualquer pessoa pode ver, mesmo sem ter ido à catequese, que acho que quem se reivindica ao direito de ter uma leitura exclusiva daquele gesto e desta vida é que está errado".
"É fantástico este abrir das portas da Igreja de dentro para fora, para que as pessoas de fora possam ver todas as belezas e a luz que cá temos dentro. E a luz que cá temos dentro vai iluminar o que está lá fora."
Esconder o sofrimento?
"A paixão de Cristo é algo tremendamente rico e carrega em si uma verdade que chega a todas as pessoas, independentemente da sua fé neste ou naquele credo. Falamos aqui em traição, tortura, morte, sofrimento, dor... Isto é comum a todas as vidas. O que está errado é chamá-la para uma leitura que só o cristão pode entender", diz José Luís Nunes Martins.
Paulo Pereira da Silva, o outro autor do livro, acrescenta que o estar atento a este tipo de sofrimento é algo que faz falta e que choca com a mentalidade actual: "Vivemos numa sociedade em que celebramos muito o sucesso, as coisas que correm bem, a vitória, a celebridade, e esquecemos a parte difícil da vida."
"A vida está intimamente ligada à morte", prossegue. "Todos nós passamos por esse aspecto, que é natural. São aspectos extremamente importantes na vida de todos nós e talvez os mais importantes, a razão pela qual existimos. Qual é a razão da nossa vida? Qual é a finalidade da vida?".
"Acho que é importante reflectir sobre isso, relativizar o que não é importante, ver o que é essencial, o que é importante, e nesse aspecto a morte e o sofrimento podem relativizar muita coisa da nossa vida do dia-a-dia. O escondê-lo, fazer como se não existisse, deixa-nos todos um bocadinho alienados", diz o físico.
Um dos objectivos deste livro é trazer a devoção antiga da Via Sacra para os tempos modernos, ajudar as pessoas a identificarem-se com ela e com a figura de Jesus.
Cada uma das 14 estações da Via Sacra tem um texto para crentes e outro para não crentes, mas José Luís Martins, que se encarregou da parte dirigida a quem não acredita, explica que o objectivo imediato não é o proselitismo.
Também esse percurso até à crença é como uma Via Sacra, diz o filósofo, e "este será talvez o primeiro dos 14 ou 15 passos que têm de ser dados até essa conversão. O primeiro dos passos é identificar o que se passou com Jesus Cristo e mostrar que isso pode ter um significado na vida comum de todas as pessoas e que as pessoas devem ser chamadas a reflectir e meditar um pouco sobre isso e sobre a sua própria vida."
Independentemente de isso conduzir à fé, terá efeitos na vida das pessoas, afirma. "Isto é a Verdade. Quem consegue explorar estes episódios terá acesso a algo com um valor superior e esse algo com um valor superior logo agirá".
Na ressurreição está a esperança
Para estes autores, a linha entre crentes e não crentes não é clara, tanto que a mera crença não é necessariamente salvífica e a Igreja sempre se dirigiu a todos e não só a alguns.
"Todas as coisas que aparecem escritas são dirigidas a crentes e a não crentes, todos os documentos papais são escritos para crentes e não crentes, dirigem-se a todos os homens de boa vontade. Se calhar nós, que estamos ligados aos sacramentos com maior frequência, somos é muito pouco crentes em relação àquela pessoa de Jesus e por isso não acolhemos como devíamos os outros, que nem deviam estar nas margens", diz Paulo Pereira da Silva.
Apesar de esta sua obra focar muito o sofrimento a que foi sujeito Jesus, ambos os autores concordam que o sofrimento não é o cerne do cristianismo. O fundamental é, antes, o amor levado ao extremo e que conduziu a esse sofrimento.
"Gosto de pensar que da felicidade faz parte a tristeza, porque quando amamos também entristecemos, temos medos e isso é sinal de que nos preocupamos e que o objecto do nosso amor tem algum valor e esse sofrimento tem valor, não é todo negativo", diz Martins.
"Uma pessoa que está só daria tudo para ter algo pelo qual pudesse sofrer com sentido", conclui o filósofo.
Pereira da Silva lamenta que haja quem associe o cristianismo ao sofrimento só por si. Se é verdade que às vezes são os fiéis que transmitem essa ideia, por outro lado, ela pode decorrer de uma certa confusão de conceitos, alerta.
"O catolicismo é uma fé que é difícil, porque não é suficiente cumprir rituais, a salvação não vem de um cumprir de rituais todos os dias, todos os meses, todos os anos, mas vem de um examinar da consciência, cada dia a cada momento. Essa procura da fidelidade em cada momento, em cada dia, em cada momento da nossa vida, traz alguma preocupação."
"Mas isso não é enaltecer o sofrimento. É o contrário: se formos tristes não somos cristãos, como disse o Papa", afirma.
Os dois dizem que a Via Sacra só faz sentido porque a seguir existe a ressurreição. "É aí que está a esperança".