09 fev, 2015 • Graça Franco e Ângela Roque (entrevista). Inês Rocha e Edgar Sousa (vídeo)
Não se encontra um microfone, mesmo antes de começar a entrevista. “Reza-se o responso a Santo António que aparece já!”, dispara, divertido, D. Manuel Clemente, que no próximo sábado será feito cardeal pelo Papa Francisco. Deixa transparecer uma fé tão natural e simples que desarma, quando temos em conta que é visto como um dos maiores intelectuais portugueses e uma das vozes mais influentes da actualidade.
É essa humildade e simplicidade em que avulta a sintonia total com o Papa, que se adensa depois ao longo dos 45 minutos de conversa. Uma conversa em que se pronuncia sobre os temas que têm dominado a actualidade da vida da Igreja.
Sobre o sínodo da família, aponta o caminho que acredita será seguido: “incrementar” os processos de nulidade do matrimónio.
É um recurso que já “está disponível, mas pode-se incrementar”, diz D. Manuel. E explica porquê: “Hoje, e cada vez, mais temos conhecimento do que é um ser humano na sua psicologia, até na sua sociologia, na sua dependência do meio, muito maior do que noutros tempos e temos até uma compreensão mais continuada do que é a existência humana. Há coisas que na altura do matrimónio não se notam, mas que se revelam depois, embora já lá estivessem em germe.”
O Patriarca de Lisboa julga que será por este caminho – a via latina – que a assembleia de Outubro do sínodo dos bispos se irá pronunciar.
Paralelamente, defende uma preparação muito mais cuidada para o matrimónio.
“A preparação para o matrimónio é uma preparação para uma vida a dois. Isto exige uma educação para sair de si, para viver em função do outro e isto é criativo, depois, em relação aos filhos que nascem. Esta educação não se faz em meia dúzia de reuniões, isto começa em casa”, afirma o Patriarca de Lisboa.
Casais mais “ecológicos”
Ainda no tema da família, D. Manuel reconhece que há uma falta de conhecimento, mesmo entre os católicos, dos métodos naturais para o controlo da natalidade.
“Há uma falha nossa, agentes pastorais. Não só dos padres, mas também dos casais cristãos que procuram viver e conviver segundo os métodos naturais, médicos e médicas, enfermeiros, muita gente que tem conhecimento e que não encontrou maneira de chegar a todos”, afirma D. Manuel.
O futuro cardeal diz que os casais têm de ser “mais ecológicos”. “Quando falamos em ecologia, falamos na boa ordem do universo e em respeitar todos os ritmos naturais, tudo quanto é animal e planta. Mas parece que essa ecologia pára quando se entra no corpo de cada um. Há aqui uma enorme discrepância porque, depois, quando se chega ao homem e à mulher, desde que haja possibilidades químicas e vontade, tudo serve”, explica o Patriarca.
Esta é uma questão que não se coloca só em termos confessionais, mas à humanidade em geral, acrescenta.
D. Manuel, que durante anos acompanhou equipas de casais que hoje têm entre 60 e 70 anos, vai em breve passar a acompanhar uma equipa com casais jovens, recém-casados.
Desafios aos cristãos na economia e na política
Ao longo dos 45 minutos de entrevista, marcada pela intimidade com os microfones da Renascença (rádio onde marcou presença semanal ao longo de 12 anos), D. Manuel vai-se mostrando agora como cardeal, mas ainda como o mesmo homem que prefere escolher sempre o lado bom das pessoas, das situações, do próprio país.
De todas as respostas ressalta o seu olhar “esperançoso”. Uma esperança que faz questão de mostrar que não tem a ver com um optimismo tolo. É uma esperança “preenchida”, insiste, para que não sobrem dúvidas. E nem com o quadro pintado pelas perguntas da Renascença (com um chorrilho de dados negros do INE) deixa soçobrar o seu optimismo.
Não põe em causa a bondade de um programa de emergência na luta contra a pobreza. “Com certeza que é importante”, diz. Às dificuldades no horizonte, faz questão de somar muitas mais, como a consciência da mudança radical nas relações laborais, a menor necessidade de mão-de-obra devido ao recurso à robótica e as menores possibilidades de realização do homem através do trabalho.
Neste cenário diz que, em primeiro lugar, a Igreja tem de “lembrar constantemente os níveis de exigência da dignidade humana que saem do Evangelho e, aí, vai ao encontro da reflexão e das aspirações da humanidade”.
Depois, exorta todos os cristãos que estão nos mundos da economia, das empresas e das instituições para que tenham “vontade de resolver o problema”. Com “a vocação religiosa acrescida de saber que quando estão a resolver o problema dos outros estão a resolver o seu próprio problema porque não há maneira de chegar a Deus sem ser através dos outros”, defende.
O “padre Manel”
D. Manuel diz que conhece muita gente que não fechou empresas por convicção religiosa. E acentua: “Isto é a encarnação cristã e o cristianismo no seu melhor.”
Tal como encarnação cristã também é participar na política. “Se Jesus nos diz para dar a Deus o que é de Deus, também diz para dar a César o que é de César. César é o mundo, é a polis, e é uma ordem [que Jesus dá] e cumprir esta ordem é também muito evangélico e muito necessário.”
“Não se pode desistir da política e não se pode apagar pela sua caricatura ou pela sua corrupção”, afirma o Patriarca de Lisboa.
No sábado receberá do Papa Francisco os símbolos do novo título que passa a ter – cardeal –, mas diz que o que lhe vai bem é ser o “padre Manel”.
Pode ouvir a entrevista na íntegra na "Edição da Noite" da Renascença, depois das 23h00.