26 mai, 2014 • Filipe d'Avillez
Do convite inédito para uma jornada de oração entre os presidentes israelista e palestiniano Shimon Peres e Mahmoud Abbas ao abraço entre Francisco e o Patriarca Bartolomeu, passando pelo momento em que o Papa beijou a mão aos sobreviventes do Holocausto, recorde aqui os principais momentos desta peregrinação à Terra Santa.
1 – Um convite inédito
Este gesto revela duas coisas. Em primeiro lugar uma enorme autoridade moral do Papa, uma vez que o convite não teria sido feito em público se não tivesse sido já aceite em privado. Se a jornada de oração não der em nada não fará nem mais nem menos que a maioria dos outros encontros já promovidos entre israelitas e palestinianos, mas o facto de se realizar, e a forma como foi anunciado, mostra que apesar das suas recentes críticas à Igreja Católica, a ONU ainda tem uma ou duas coisas a aprender com esta instituição. Afinal de contas, que outro líder do mundo poderia ter feito tal desafio?
Em segundo lugar, comprova, se dúvidas houvesse, que estamos perante um Papa que acredita verdadeiramente no poder da oração, como ficou provado já aquando da convocação do dia de oração pela Síria.
2 - Consciência para o mundo inteiro
O Papa com o Rei da Jordânia. Foto: EPA
O Papa fez cerca de 15 intervenções, entre discursos e homilias, durante a sua peregrinação, mas um dos discursos mais marcantes destes dias foi a do Rei Abdullah, da Jordânia, logo na recepção ao Santo Padre em Amã.
Entre outras coisas, o Rei apelidou Francisco de "consciência para o mundo inteiro". Não se deve menosprezar o significado destas palavras, sobretudo vindas de um monarca árabe, cuja legitimidade advém do facto de ser descendente directo de Maomé.
3 – Um abraço a dois pulmões
O Papa e o Patriarca de Constantinopla. Foto: EPA
O encontro entre o Papa e o Patriarca de Constantinopla seria sempre um dos pontos altos desta peregrinação e foi mesmo a ideia que inspirou a viagem. O abraço e as relações estabelecidas entre os dois líderes são de uma importância que não pode ser subestimada.
É preciso ter em conta que o diálogo ecuménico se faz a vários níveis. A comunhão só virá do diálogo doutrinário e esse está nas mãos dos especialistas, cujo trabalho não é de invejar. Mas esse diálogo só é possível porque assenta sobre um ecumenismo de amizade, que está ao alcance de todos, e de que foi dado, novamente, tão bom exemplo do topo da hierarquia.
As imagens não deixam dúvidas. Bartolomeu e Francisco vêem-se como irmãos. Irmãos impedidos de comer do mesmo pão, um facto que justamente os escandaliza. Todos os caminhos podem ser longos, mas o primeiro obstáculo é a falta de vontade de caminhar. Durante 900 anos faltou vontade. Agora já se caminha e sonha-se com o destino e isso já é uma vitória.
4 – O muro mudou de lugar
Há dois muros verdadeiramente simbólicos na Terra Santa. Os anteriores Papas sempre fizeram questão de ir ao Muro das Lamentações, salientando dessa forma o vínculo entre cristãos e judeus junto do local mais santo do Judaísmo, tudo o que resta do Templo de Jerusalém.
É verdade que este Papa também lá foi. Mas com a sua paragem não agendada junto ao outro muro, o muro que separa a Palestina de Israel, trocou a ordem de importância dos dois locais e realçou o muro da divisão. Não foi preciso dizer nada. Bastou parar para rezar.
Que dizer sobre este muro? Quem vive longe não pode compreender como esta construção afecta a vida e a dignidade dos palestinianos. Nessa qualidade é uma mancha e sinal de divisão e opressão com cuja destruição todos devem sonhar.
Mas quem critica o muro tende a ignorar um dado importante: os atentados suicidas em Israel praticamente cessaram desde que foi construído. Para os israelitas isso é prova de que o muro cumpre a sua função.
O problema, por isso, não é tanto haver ou não haver muro. O muro é apenas uma extensão da divisão que já existe no coração daqueles dois povos. Enquanto esse muro existir, todo o betão do mundo não passará de uma distracção.
É precisamente este facto que dá importância ao tal encontro de oração que se irá realizar em Roma.
5 – Beija-mão trocado
O Papa e os sobreviventes do Holocausto. Foto: EPA
Tal como o Papa "trocou as voltas" à questão dos muros, também o fez esta segunda-feira de manhã, quando foi ao memorial Yad Vashem. A tradição entre os cristãos é de se beijar a mão ao Papa. Os não cristãos podem não o fazer, mas normalmente inclinam ligeiramente a cabeça enquanto lhe apertam a mão, em sinal de respeito.
Mas quando o Papa foi apresentado aos seis sobreviventes do Holocausto, no memorial, inverteu os papéis e foi ele que se inclinou perante aqueles judeus, beijando-lhes a mão. Como não ver aqui um paralelo com o gesto de Cristo na Última Ceia, de lavar os pés aos seus discípulos? E como não ver também um reconhecimento, por parte de Francisco, de que o facto de terem vivenciado aquele episódio da história da humanidade, torna estes homens e estas mulheres, de alguma forma, sagrados?
6 – Lição para os guardiães do Santo Sepulcro
Francisco e Bartolomeu no Santo Sepulcro. Foto: EPA
O Santo Sepulcro é um lugar de profunda contradição para os cristãos. Antes de mais, é o símbolo máximo do que os une: a crença na morte e ressurreição de Cristo, naquele lugar. Mas por outro lado é sinal visível do pior das divisões. São seis as confissões cristãs que partilham a custódia do complexo e as lutas, mesmo físicas, são frequentes. A situação é tão grave que às vezes é preciso soldados judeus entrarem para separar monges que trocam murros e pontapés e a chave da Igreja está confiada a uma família muçulmana…
É por isso que foi tão importante o gesto ecuménico de Francisco e de Bartolomeu ter lugar ali. Será que a lição foi apreendida por todos os que testemunharam ao vivo?
7 – Estatuto de Jerusalém
Jerusalém tem importância "universal". Foto: EPA
Estas viagens incluem sempre uma gigantesca dose de diplomacia. Cada palavra é medida para se avaliar o seu potencial impacto. No que diz respeito ao conflito israelo-árabe, a posição da Santa Sé é clara, apoiando uma solução de dois estados soberanos, com um estatuto especial para Jerusalém, que garanta o acesso a todos os fiéis. Este estatuto poderia passar ou por uma partilha de soberania entre Palestina e Israel ou mesmo uma soberania internacional, por exemplo. A direita israelita rejeita firmemente abdicar da soberania de Jerusalém.
O Papa não abordou directamente o assunto, mas em pelo menos dois dos seus discursos falou da importância "universal" de Jerusalém e do acesso aos lugares santos. A mensagem, calculada para não tornar-se um incidente diplomático, terá sido bem captada.
8 – Cansaço natural
Com tanto entusiasmo à volta do Papa Francisco, é fácil esquecer-se que ele está a caminho dos 78 anos e, como é público, não goza de uma saúde de ferro. O Papa pareceu cansado nesta viagem, sobretudo no final. Foram três dias, três países, várias viagens e 15 intervenções públicas… quem não ficaria cansado? Mas é bom recordar que o Papa não é de ferro.
9 – Vieram do fim do mundo
Foto: EPA
Quando o Papa foi eleito disse aos fiéis que os cardeais o tinham ido buscar "ao fim do mundo". Quem diria que, pouco mais de um ano depois, seriam três líderes religiosos argentinos a dar o exemplo do diálogo inter-religioso? Embora só tenham aparecido juntamente em público na visita ao Muro das Lamentações (pelo menos de forma mais notória), o abraço entre o Papa Francisco e os seus amigos o rabino Abraham Skorka e o imã Omar Abboud grita mais alto do que qualquer discurso de ocasião a importância da humanidade comum e da amizade que pode transcender divisões de credo, sem as menosprezar.
10 – Cristãos perseguidos
Já era de esperar, mas não deixou de ser impressionante a forma como o Papa falou dos cristãos perseguidos, muitas vezes no contexto em que falava de pessoas afectadas pelas guerras e os conflitos em geral.
O Iraque e a Palestina estiveram em destaque, naturalmente, mas foi a tragédia na Síria que foi mais vezes falada. O Papa nunca disfarçou a sua preocupação pela situação na Síria e os sírios apreciam certamente essa atenção.
No encontro com o Patriarca Bartolomeu, Francisco voltou a uma tema de que já tinha falado antes, o "ecumenismo de sangue".
"Quando cristãos de diferentes confissões se encontram a sofrer juntos, uns ao lado dos outros, e a prestar ajuda uns aos outros com caridade fraterna", disse Francisco, "realiza-se o ecumenismo do sofrimento, realiza-se o ecumenismo do sangue, que possui uma eficácia particular não só para os contextos onde o mesmo tem lugar, mas, em virtude da comunhão dos santos, também para toda a Igreja".