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A alegria dos que se mancham por sair à rua

13 dez, 2013 • Rosário Silva

O jesuíta Hermínio Rico analisa um documento do Papa que agitou o mundo.

A alegria dos que se mancham por sair à rua
A primeira exortação apostólica do Papa Francisco tornou-se viral nas redes sociais, usufruiu de grande impacto mediático e contém críticas contundentes ao sistema financeiro. Na "Alegria do Evangelho", título da exortação, o Papa chega dizer que "esta economia mata". Francisco lamenta ainda que haja muitos evangelizadores azedos e com "cara de funeral", apesar de a alegria ser uma característica inerente aos cristãos. Em entrevista à Renascença, o padre jesuíta Hermínio Rico, professor do Instituto Superior de Teologia de Évora e responsável pela pastoral universitária na Arquidiocese de Évora, analisa o documento passo-a-passo, no qual o Papa escreve que prefere "uma Igreja acidentada, ferida e manchada por sair à rua em vez de uma Igreja enferma pela reclusão".


O que há de distinto nesta exortação apostólica do Papa Francisco?
Começo por dizer que a li como nunca li nenhum outro documento da Igreja, pois começa com um estilo muito diferente. É escrito como o Papa Francisco fala. Nós vamos lendo o documento e encontramos coisas que ele foi dizendo nas suas homilias ou entrevistas. Significa que ele fez um esforço de escrever da mesma maneira que procura desempenhar o ministério de Papa, estando próximo das pessoas, falando directamente e na primeira pessoa, sem usar uma linguagem demasiado formal, embora tenha um documento de grande profundidade, riqueza e até algumas partes difíceis de compreender. Mas a preocupação do Papa é chegar realmente ao coração das pessoas. É um documento que a gente começa a ler e depois tem dificuldade em largar.

A "alegria" é tema central ao longo da exortação. Que alegria é esta que o Papa proclama?
O Papa não nos deixa parados, não nos deixa simplesmente a pensar, mas quer mover-nos. O Papa diz que o grande risco do mundo actual é a tristeza e, portanto a grande resposta que o Cristianismo tem para dar é precisamente a alegria, que de resto que dá titulo à exortação - 'A Alegria do Evangelho'. A primeira coisa a perceber é que a Igreja tem uma coisa a dizer a este mundo que vive em tristeza: Jesus vem salvar-nos. Isto é razão de alegria para todos. A primeira preocupação, que é o primeiro capítulo desta exortação, é a transformação da Igreja, isto é, a Igreja que saia. Aliás, a palavra que é mais vezes repetida é sair, sair, sair … Isto é, anunciar aos outros a alegria que tem dentro de si. O título deste capítulo é 'Transformação Missionária', ou seja, uma Igreja que fique não preocupada com as suas estruturas, com os seus funcionamentos, com o manter aquilo que já é a grande 'máquina', mas uma Igreja que vá ao encontro dos outros, precisamente para anunciar esta alegria.

Há um sentido muito coloquial neste texto do Papa. De que forma é que esta opção valoriza a mensagem?
Sim, o Papa usa essas frases muito coloquiais, muito de conversa amiga e diz coisas, às vezes, muito duras e muito exigentes, mas sempre de uma forma muito calorosa e muito ternurenta. Noutros pontos da exortação, ele diz que os evangelizadores não devem aparecer com 'cara de funeral' - se estão a anunciar a alegria, têm que tê-la. Portanto, é este desafio que ele põe - o de sermos verdadeiros. Se estamos a dizer que anunciamos o Evangelho, não podemos estar ao mesmo tempo com cara de tristes.

O Papa escreveu que a "Igreja de saída é uma Igreja com portas abertas". Esta frase dele é muito exigente para a dimensão de acolhimento da Igreja... 
Sem dúvida. No segundo capítulo, ele fala daquilo que está mal, digamos assim, aquilo que é obstáculo à experiência de alegria: primeiro no mundo e aí ele olha para as questões da economia, da cultura ou as dificuldades que as pessoas vivem; depois, o Papa olha para aquilo que ele chama 'as tentações dos agentes pastorais', ou seja, aquilo que são rotinas ou coisas que lentamente vão entrando e que dificultam este entusiasmo missionário, a alegria da evangelização, o gosto de viver em comunidade, o acolhimento, a abertura aos outros. O Papa vai falando muito directamente dessas coisas e aí aparece este aspecto - a Igreja é para estar aberta a todos. 

"Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e manchada por sair à rua em vez de uma Igreja enferma pela reclusão." Parece que era uma frase já muito presente no ministério de Jorge Bergoglio em Buenos Aires, antes de ser Papa...
Lendo este documento, percebe-se muito bem que aqui está uma pessoa que tem uma longa experiência pastoral, com gente simples, com os pobres e em cidades - ele fala nas novas culturas urbanas, o que não é muito habitual nos documentos da Igreja. A Igreja, durante muito tempo, alimentou esta nostalgia pelo equilíbrio, bonito, rural, por uma cultura marcada pelos tempos da natureza. Ele fala claramente das culturas urbanas e fá-lo com uma experiência longa de bispo, de alguém que lida com sacerdotes, com as paróquias, com dioceses, com instituições, onde se percebe que ele foi reflectindo durante muito tempo em como é que isto se pode tornar mais evangélico, mais missionário. E aqui propõe as suas ideias.

"Hoje e sempre, os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho. Devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata", lê-se na exortação. Como vê este desafio tão actual nesta cultura de globalização que, porém, não tem uma dimensão solidária globalizada?
Isso está na primeira parte do segundo capítulo, que é toda sobre esta questão da economia da exclusão, a globalização da indiferença, a idolatria do dinheiro, o consumismo, a desigualdade social que gera a violência - são os temas que ele trata nesta parte, com afirmações muito fortes. Também diz que não cabe à Igreja ter as 'soluções técnicas', mas cabe à Igreja não calar esta defesa da pessoa e da sua dignidade, o lugar da ética em todas as actividades humanas e, inclusive, na economia. Já no capítulo quarto, ele faz esta ligação intrínseca entre a evangelização e a dimensão social: não pode haver o anúncio do Evangelho sem que isso tenha necessariamente repercussões sociais e que exija um compromisso com os outros. 

"Devo pensar numa conversão do papado", escreveu Francisco. O que traz como novidade esta disponibilidade para rever o ministério pontifício?
O Papa fala na transformação missionária da Igreja, ou seja, que todas as instituições eclesiais sejam cada vez menos centradas sobre si próprias para auto-preservação, como ele diz, e mais viradas para fora e para o anúncio da alegria. Este é um aspecto muito importante de revisão deste ministério, de estar disponível para isso. Outro ponto onde ele é muito claro é quando diz que não se deve esperar do Papa que tenha a última palavra sobre tudo. O desafio que ele faz é este também: não esperem que seja o Papa a dizer tudo e a saber tudo - têm que ser as pessoas nos locais, os bispos, as dioceses, as conferências episcopais, a darem directivas mais concretas sobre as situações reais que vivem.

O Papa fala na necessidade de "curar as feridas". Como se pode entender esta expressão?
Eu penso que este 'curar das feridas' é aquilo a que o Papa chama de 'novo estilo de evangelizar'. Este documento, mais do que conteúdos, é sobre um estilo, uma maneira de estar. Muitas vezes ele diz que a Igreja tem de se apresentar pela positiva. Em vez de começar a condenar, tem de começar a propor aquilo que tem de construtivo. A Igreja tem de ser tolerante, aceitar os outros e reconhecer o seu esforço. Ele diz isto muitas vezes: "é para todos, é para todos, é para todos". É um estilo que, se calhar, todos nós Igreja precisamos de nos converter a ele, de nos virarmos para acolher e não para excluir, para encorajar e fortalecer e não para condenar.