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Devem os divorciados "recasados" poder comungar? O tema mais polémico do sínodo

01 out, 2014 • Filipe d'Avillez

A publicação, esta quarta-feira, de um livro que defende a posição actual da Igreja é mais uma achega para um debate público que se arrasta há meses, com cardeais de ambos os lados da barricada.

Devem os divorciados "recasados" poder comungar? O tema mais polémico do sínodo
O debate sobre o acesso aos sacramentos por parte dos "divorciados e recasados", um dos temas mais polémicos a ser discutido no sínodo da família, que começa no domingo, continua muito aceso.

Mais de uma dezena de cardeais protagonizam uma verdadeira discussão pública sobre o assunto e, esta quarta-feira, chega às bancas, no mercado italiano e de língua inglesa, um livro que contribui para a discussão.

Da autoria de cinco cardeais, a obra "Permanecendo na Verdade de Cristo: Casamento e Comunhão na Igreja Católica" está escrita em jeito de resposta às propostas avançadas pelo Cardeal alemão Walter Kasper, que visam permitir, em alguns casos, o acesso aos sacramentos por parte de pessoas em uniões irregulares.

Embora a discussão seja, normalmente, centrada no facto de, segundo o ensinamento actual da Igreja, as pessoas que se encontram neste tipo de relação não poderem comungar, a verdade é que também estão vedadas a outros sacramentos como a confissão e, até, o baptismo.

Em vários documentos, a Igreja propõe o acompanhamento destes casais e reconhece que a separação pode não ser a melhor solução, no caso, por exemplo, de existirem filhos, mas apenas permite o acesso aos sacramentos no caso de o casal se comprometer a abster-se de relações sexuais - algo a que a Igreja se refere como "viver como irmãos".

Os argumentos de Kasper...
O debate intensificou-se a partir do momento em que foi conhecido o tema do sínodo deste ano e ganhou maiores proporções quando o Papa Francisco convidou Kasper a fazer uma reflexão de abertura de um consistório, em Fevereiro, reunido para reflectir sobre a família.

A posição de Kasper tem sido reduzida por alguns críticos a uma mera aceitação dos segundos casamentos, mas a defesa da abertura que fez é muito mais limitada.

Kasper apontou casos de uma segunda união estável, em que o casal vive a fé de forma sincera e consistente e em que existe arrependimento pelo falhanço do primeiro casamento, não sendo possível repará-lo nem abandonar a segunda relação sem causar maiores danos, e em que existe um desejo dos sacramentos como fonte de sustento para a sua situação, para questionar: "Devemos ou podemos negar-lhe, após um período de acompanhamento, o sacramento da reconciliação e depois a comunhão?".

O cardeal alemão insiste que esta não seria uma "solução geral", mas sim o "caminho estreito para o que é provavelmente um pequeno grupo de divorciados e recasados, aqueles que sinceramente estão interessados em receber os sacramentos". Kasper conclui: "A vida não é a preto e branco, existem muitas nuances".

… e os dos críticos de Kasper 
Walter Kasper faz questão de dizer que a sua posição não põe em causa a indissolubilidade do casamento, uma vez que esta faz parte da "tradição da fé vinculativa da Igreja e não pode ser abandonada ou desfeita", mas é precisamente neste ponto que os críticos da proposta dizem estar a fraqueza do seu argumento.

Se não se pode pôr em causa a indissolubilidade do casamento, então, seja qual for a situação de um casal numa união irregular, caso não vivam "como irmãos", há, de facto, um estado de adultério, que configura um pecado mortal, sem intenção de emenda, o que torna inválida qualquer confissão e os impede de poderem comungar.

Estes críticos, que têm à cabeça outro alemão, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), cardeal Ludwig Müller, consideram que tanto a ideia de indissolubilidade como o ensinamento de que quem não está em estado de graça não pode comungar fazem parte da doutrina da Igreja e, por isso, não podem ser alteradas, mesmo com a melhor das intenções.

Argumentam ainda que a aceitação de uma condição que, na realidade, é pecaminosa não é verdadeira misericórdia, uma vez que esta exige confrontar a pessoa com a realidade da sua situação e convidá-la à conversão.

Cardeais conservadores contra Kasper
Do lado de Müller, encontram-se vários "pesos pesados" da Igreja, incluindo os quatro cardeais que, com ele, publicam agora este livro em defesa do ensinamento actual da Igreja.

Carlo Caffara, Walter Brandmüller e Velasio De Paolis são conhecidos como conservadores e têm credenciais académicas impressionantes. O quinto autor é o cardeal Raymond Burke, o actual prefeito da Signatura Apostólica, o supremo tribunal canónico da Igreja. 

Pelos corredores de Roma, surgem indicações de que Burke pode estar prestes a ser nomeado assistente da Ordem de Malta, um cargo a tempo inteiro que, geralmente, é atribuído a cardeais idosos. A consumar-se, a nomeação não deixará de ser interpretada como uma grande "despromoção" por parte do Papa em relação a uma das vozes mais conservadoras da Cúria Romana.

Mas, mesmo que estes rumores se confirmem, isso não deve ser interpretado como uma reacção do Papa à questão do livro ou às opiniões sobre o casamento, uma vez que outro dos nomes que se colocou firmemente do lado de Müller nas últimas semanas foi o Cardeal George Pell, da Austrália, que faz parte da comissão de nove cardeais criada pelo Papa para ajudar a reformar a Cúria e conhecida informalmente como "G9". Pell foi, recentemente, responsabilizado pela supervisão e reforma das finanças do Vaticano.

Ao nível do debate público que, entretanto, se tem desenrolado na comunicação social, Kasper tem estado mais isolado, embora se saiba que, no plano diocesano ou mesmo paroquial, muitos bispos e padres vêem com bons olhos a sua proposta.

Entre os cardeais, contudo, nota-se o apoio de Reinhard Marx, que diz falar em nome do episcopado alemão, e de Oscar Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa, nas Honduras, e grande amigo do Papa, que o nomeou para a comissão a "G9".

Não basta dizer "aqui está a barreira"
Quando Müller contestou pela primeira vez, num longo artigo no "L’Osservatore Romano", o discurso de Kasper, Maradiaga criticou publicamente o prefeito da CDF, numa entrevista a um jornal alemão.

Maradiaga disse que as posições de Müller são típicas de um "professor de teologia alemão" que "vê as coisas em termos de preto e branco". Mas, disse Maradiaga, "o mundo não é assim. Devemos ser flexíveis quando ouvimos as vozes dos outros, não basta ouvir e dizer: aqui está a barreira. Mas por enquanto ele apenas ouve os seus conselheiros".

Já Kasper também não tem desarmado e tem-se desdobrado em entrevistas, nas quais continua a defender a sua abordagem, embora na mais recente, publicada na revista dos jesuítas americanos, "America", salvaguarde que "o problema dos divorciados e recasados é uma questão, mas não é a única."

"Alguns meios de comunicação social dão a ideia que vai haver uma abertura e fazem campanha nesse sentido", disse Kasper à "America". "Eu também espero que haja uma abertura responsável, mas é uma questão em aberto, a ser decidida pelo sínodo. Devemos ser prudentes com estas fixações, caso contrário a reacção pode ser de grande desilusão."

Kasper insiste que não quer pôr a indissolubilidade em causa e recorda que no Concílio Vaticano II também havia muitos que consideravam que era impossível a Igreja alterar a sua postura em questões como a liberdade religiosa e o ecumenismo, mas que se encontrou maneira de o fazer sem romper com a doutrina.

À espera da decisão de Francisco
Kasper alega que, embora haja um contingente de cardeais conservadores contra ele, tem o Papa do seu lado.

Questionado sobre o aparecimento do livro dos cinco cardeais, mostrou-se surpreendido e respondeu: "Nenhum dos meus irmãos cardeais falou comigo. Eu, por outro lado, já falei duas vezes com o Santo Padre. Combinei tudo com ele. Ele concordou. O que é que um cardeal pode fazer se não estar ao lado do Papa? O alvo não sou eu, é outro".

Interrogado sobre se esse alvo é o Papa, Kasper responde: "Provavelmente, sim", embora mais recentemente, em entrevista ao "America" tenha confessado que esse juizo possa ter sido "imprudente". 

A única opinião que se conhece do Papa sobre a apresentação inicial de Kasper, que foi solicitada pelo próprio, foi de louvor. "Gostaria de lhe agradecer, porque encontrei uma teologia profunda, de pensamentos serenos. É bom ler teologia serena. Fez-me bem", afirmou.

Convém realçar, porém, que o discurso de Kasper durou duas horas e apenas uma pequena parte foi dedicada a esta questão, pelo que não é líquido que o Papa esteja de acordo com aquela proposta específica.

A isto pode somar-se a notícia de que o Papa terá telefonado a uma mulher argentina, a viver num casamento irregular, dizendo que ela devia ir comungar. A história nunca foi confirmada pela Santa Sé, mas também não foi desmentida. O único comentário foi o de que as conversas do Papa ao telefone são privadas.

Contudo, há também algumas indicações contrárias. Recentemente, o bispo Demetrio Fernandez, de Córdoba, disse que tinha perguntado directamente ao Papa qual era a sua opinião e que a resposta foi claríssima. "Perguntámos ao Papa e ele respondeu que uma pessoa casada na Igreja, que se tenha divorciado e contraído um novo casamento civil não se pode aproximar dos sacramentos. A natureza indissolúvel do casamento foi estabelecida por Jesus Cristo e o Papa não a pode alterar", contou.

Embora pareça uma resposta clara, trata-se apenas de um relato em segunda mão.

Seja qual for a opinião final dos sínodos a realizar agora em Outubro e no mesmo mês de 2015, a decisão última estará sempre nas mãos de Francisco, que certamente acompanhará muito de perto todas as discussões entre os bispos.

Acompanhe o sínodo da família na Renascença. Notícias, entrevistas e análise.

[Notícia corrigida às 13h02]