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Papa faz diagnóstico: Uma "Europa avó" presa no "tecnicismo burocrático"

25 nov, 2014 • Carla Caixinha

Francisco deixa uma espécie de texto de estudo a todos os europeus e eurodeputados, onde aborda os principais problemas que a Europa enfrenta e alerta para a "cultura do descartável" e do "consumismo exacerbado".

Papa faz diagnóstico: Uma "Europa avó" presa no "tecnicismo burocrático"
Francisco dirigiu-se a todos os cidadãos europeus para deixar uma "mensagem de esperança e encorajamento". Mas no seu discurso, no Parlamento Europeu, além de traçar um retrato de uma Europa "envelhecida e engelhada", o Papa deixou vários recados sobre a importância da família, da educação, das políticas de trabalho e da protecção da dignidade humana.

O "pastor" Francisco dirigiu-se a todos os cidadãos europeus para deixar uma "mensagem de esperança e encorajamento". Mas no seu discurso, no Parlamento Europeu, o Papa além de traçar um retrato de uma Europa "envelhecida e engelhada", deixou vários recados sobre a importância da família, da educação, das políticas de trabalho e da protecção da dignidade humana.

No primeiro discurso que fez na cidade francesa deixa uma espécie de texto de estudo a todos os europeus e eurodeputados, onde aborda os principais problemas. "Uma Europa avó que já não é fecunda nem vivaz. Daí que os grandes ideais que inspiraram a Europa pareçam ter perdido a sua força de atracção, em favor do tecnicismo burocrático das suas instituições".

O Papa pediu à Europa que recupere raízes religiosas e defenda a liberdade de culto. "Queridos eurodeputados, chegou a hora de construir juntos a Europa que gira não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis; a Europa que abraça com coragem o seu passado e olha com confiança o seu futuro, para viver plenamente e com esperança o seu presente".

Desafiou os representantes dos 28 Estados-membros, com mais de 500 milhões de habitantes, a deixar de parte a ideia de uma "Europa temerosa e fechada sobre si mesma" para promover a "Europa protagonista, portadora de ciência, de arte, de música, de valores humanos e também de fé".

O drama da solidão e da cultura do descartável
No seu diagnóstico de "doenças" alerta para o drama da solidão. "Vêmo-la particularmente nos idosos, muitas vezes abandonados à sua sorte, bem como nos jovens privados de pontos de referência e de oportunidades para o futuro; vêmo-la nos numerosos pobres que povoam as nossas cidades; vêmo-la no olhar perdido dos imigrantes que vieram para cá à procura de um futuro melhor".

"Uma tal solidão foi, depois, agravada pela crise económica", sublinha.

A isto juntam-se estilos de vida egoístas, "caracterizados por uma opulência actualmente insustentável e muitas vezes indiferente ao mundo circundante, sobretudo dos mais pobres", disse, arrancado uma salva de palmas dos eurodeputados. O resultado é a "cultura do descartável" e do "consumismo exacerbado", alerta o Papa, pedindo aos eurodeputados para cuidarem da fragilidade dos povos.

"No centro do debate político, constata-se lamentavelmente a preponderância das questões técnicas e económicas em detrimento de uma autêntica orientação antropológica", advertiu.

Neste contexto, condenou o recurso à eutanásia e ao aborto, como frutos de uma visão que reduz o ser humano "a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um bem de consumo a ser utilizado, mas quando deixa de ser funcional é descartado, como no caso dos doentes terminais, dos idosos abandonados e sem cuidados, ou das crianças mortas antes de nascer".

Liberdade religiosa e a dignidade humana
Na sua intervenção recordou as numerosas injustiças e perseguições que atingem diariamente as minorias religiosas, especialmente cristãs, em várias partes do mundo. "Comunidades e pessoas estão a ser objecto de bárbaras violências: expulsas das suas casas e pátrias; vendidas como escravas; mortas, decapitadas, crucificadas e queimadas vivas, sob o silêncio vergonhoso e cúmplice de muitos", denunciou.

Segundo Francisco, promover a dignidade da pessoa significa reconhecer que ela possui "direitos inalienáveis" de que não pode ser privada por ninguém, "muito menos para benefício de interesses económicos". Defendeu ser necessária uma abertura ao transcendente para "afirmar a centralidade da pessoa humana", pois, caso contrário, esta "fica à mercê das modas e dos poderes do momento".

"Considero fundamental não apenas o património que o Cristianismo deixou no passado para a formação sociocultural do Continente, mas também e sobretudo a contribuição que pretende dar hoje e no futuro para o seu crescimento", observou.
 
Para o Papa argentino a Europa deve ser uma família de povos, onde as peculiaridades de cada um constituem uma autêntica riqueza. "Manter viva a realidade das democracias é um desafio deste momento histórico, evitando que a sua força real – força política expressiva dos povos – seja removida face à pressão de interesses multinacionais não universais, que as enfraquecem e transformam em sistemas uniformizadores de poder financeiro ao serviço de impérios desconhecidos. Este é um desafio que hoje vos coloca a história".

Papel da família e do trabalho
Família, trabalho e ecologia são outros dos temas abordados neste primeiro discurso. "A vós, legisladores, compete a tarefa de preservar e fazer crescer a identidade europeia, para que os cidadãos reencontrem confiança nas instituições da União e no projecto de paz e amizade que é o seu fundamento", lembrou.

O Papa destacou o papel central da "família unida, fecunda e indissolúvel" para a formação das novas gerações. "Sem uma tal solidez, acaba-se por construir sobre a areia, com graves consequências sociais. Aliás, sublinhar a importância da família não só ajuda a dar perspectivas e esperança às novas gerações, mas também a muitos idosos, frequentemente constrangidos a viver em condições de solidão e abandono, porque já não há o calor dum lar doméstico capaz de os acompanhar e apoiar".

Também sublinhou a importância da educação, que mais do que fornecer conhecimentos técnicos deve "favorecer o processo mais complexo do crescimento da pessoa humana na sua totalidade".

No campo do trabalho, realçou a relevância de "promover as políticas de emprego" e de "devolver dignidade ao trabalho", procurando "novas maneiras para combinar a flexibilidade do mercado com as necessidades de estabilidade e certeza das perspectivas de emprego". Para tal, é necessário promover um contexto social que "não vise explorar as pessoas, mas garantir, através do trabalho, a possibilidade de construir uma família e educar os filhos".

Neste discurso de 15 páginas recordou que a Europa sempre esteve na vanguarda do compromisso ecológico e da promoção de fontes alternativas de energia, "cujo desenvolvimento muito beneficiaria a defesa do meio ambiente".

Referindo-se ao sector agrícola, chamado a dar apoio ao homem, afirmou que "não se pode tolerar que milhões de pessoas no mundo morram de fome", enquanto toneladas de produtos alimentares são deitadas fora. "Além disso, respeitar a natureza lembra-nos que o próprio homem é parte fundamental dela".

A questão dos migrantes
Para Francisco, a Europa deve enfrentar em conjunto a questão migratória.

"Não se pode tolerar que o Mar Mediterrâneo se torne um grande cemitério! Nos barcos que chegam diariamente às costas europeias, há homens e mulheres que precisam de acolhimento e ajuda. A falta de um apoio mútuo no seio da União Europeia arrisca-se a incentivar soluções particularistas para o problema, que não têm em conta a dignidade humana dos migrantes, promovendo o trabalho servil e contínuas tensões sociais. É necessário agir sobre as causas e não apenas sobre os efeitos", advertiu.

A terminar, o Papa argentino disse aos eurodeputados que chegou a hora de construírem juntos uma "Europa que gira, não em torno da economia, mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis; a Europa que abraça com coragem o seu passado e olha com confiança o seu futuro, para viver plenamente e com esperança o seu presente".

Arrancando novos aplausos dos eurodeputados, o Papa disse ser o momento de abandonar a ideia de uma "Europa temerosa e fechada sobre si mesma para suscitar e promover a Europa protagonista, portadora de ciência, de arte, de música, de valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais; a Europa que assiste, defende e tutela o homem".

O Papa está Estrasburgo para a viagem internacional mais curta dos pontificados modernos. Depois do Parlamento segue-se a visita ao Conselho da Europa, com novo discurso de Francisco, marcada para as 12h05, última paragem antes do regresso a Roma, pelas 13h50.

Francisco torna-se o segundo Papa a visitar o Parlamento e o Conselho da Europa desde as suas fundações, depois de João Paulo II, que fez essa viagem em 1988.