13 mai, 2014 • Raul Santos
Rita Ribeiro doutorou-se com uma tese intitulada “A Europa na Identidade Nacional" (ed. Afrontamento). Chegou à conclusão de que os portugueses se identificam mais com o país do que que com o continente, mas é isso que se verifica também em todos os outros países europeus.
A professora no Departamento de Sociologia e investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho reconhece que os portugueses tendem a fazer uma associação imediata entre "Europa" e "dinheiro", mas encontra motivações históricas e culturais nesse processo de identificação: os portugueses encaram a Europa como um espaço de desenvolvimento e de modernidade.
Rita Ribeiro critica a União Europeia pelo défice de participação dos cidadãos na construção do projecto, responsabilizando por isso as próprias instituições europeias e os Estados mais fortes. Também por isso, não acredita que as eleições deste mês alterem o quadro de desinteresse que o eleitorado português e o dos dos outros países têm mostrado.
Todos temos a percepção de que para nós, portugueses, “Europa” significa “dinheiro”. Foi a essa conclusão que chegou, com o seu trabalho científico?
Posso dizer que essa é uma das conclusões a que cheguei, mas não esgota tudo sobre a visão que os portugueses têm da Europa. Hoje, a Europa, para os portugueses, materializa-se muito naquilo que é a União Europeia e a União tem esse significado muito imediato de ser o lugar de onde vêm os fundos e também a instituição que acaba por coordenar as nossas políticas, com um défice democrático e um défice de soberania nacional. Essa forma, que existe, é uma forma muito instrumental de olhar para a Europa, uma forma que passa pela identificação imediata da Europa com a sua natureza mais económica. Todavia, não podemos descartar a História que nos liga ao continente e toda a matriz cultural portuguesa é inerentemente europeia e, ainda que de modo menos expressivo, também fazem essa identificação da Europa como espaço histórico e cultural.
Também temos a percepção de que os portugueses não se sentem europeus ou, pelo menos, sentem-se acima de tudo portugueses e não europeus…
Não há nenhuma especificidade dos portugueses nessa matéria. A construção europeia ainda é relativamente recente e esse sentido de pertença à Europa está em directa concorrência com algo que é muito mais profundo do ponto de vista histórico, que são as identificações nacionais. Os europeus, em geral, identificam-se mais com os seus próprios países do que com essa escala maior, a do continente. Exceptuando o caso de Inglaterra, que sempre esteve mais à margem, os europeus de Portugal, como os dos outros países, sentem-se europeus sem deixarem de se sentir primeiramente cidadãos dos seus países.
O que leva, então, os portugueses a sentirem-se europeus?
As razões que levam um português a dizer que se sente europeu ou que não se sente europeu podem ser diferentes das que são apontadas por um holandês ou por um polaco. O tempo presente é muito singular. A conjuntura de crise torna mais complexa essa análise, mas, em geral, os portugueses sentem-se europeus na medida em que a Europa configura para eles um espaço de desenvolvimento e de modernidade. A modernidade tardou muito em Portugal. A nossa secular decadência, que se segue à época áurea dos Descobrimentos e da qual se queixavam muito, por exemplo, os intelectuais do século XIX, enraizou-se muito no país e tornou-se ainda mais intensa com o Estado Novo. Ficou-nos sempre esse sentimento de que estamos sempre na cauda da Europa e a ideia de que o nosso subdesenvolvimento é crónico. Nesse sentido, a Europa, ou a União Europeia, veio normalizar a nossa situação, para usar uma expressão de Eduardo Lourenço. Impôs-se a ideia de que não temos que ser o país eternamente pobre e eternamente subdesenvolvido no contexto europeu. A Europa trouxe isso: desenvolvimento e aceleração da modernização. Em poucas décadas, conseguimos avanços muito significativos e, nesse sentido, a Europa tem esse lado positivo: permitiu-nos subir de estatuto.
O seu trabalho procurou avaliar o sentimento dos portugueses face à Europa nos últimos 150 anos. No séc. XIX, por exemplo, a Europa era a França?
A influência francesa é muito determinante, especialmente, no campo cultural. A elite intelectual portuguesa lia e até falava francês, mas há outras dimensões importantes, como, por exemplo, a relação económica e política com a Inglaterra, que é determinante, e temos a própria Espanha, com quem temos uma relação muito mais ambígua. Mas a Europa não era apenas a França. Os portugueses receberam influência e exerceram influência em países tão longínquos como a Rússia. Ao analisar o modo com o Portugal encarava a Europa no século XIX, temos que ter em conta outro elemento: o facto de Portugal, que é um país geograficamente e politicamente periférico, ter tido uma história de cinco séculos de expansão, de imperialismo e de colonialismo. Tivemos um desvio histórico em relação à Europa e acabámos por nos tornar, dentro do continente europeu, numa espécie de ilha.
Como evolui, então, essa percepção portuguesa da Europa?
Há uma grande ambiguidade nestas identificações. Há uma identificação quase natural com a Europa, porque a nossa matriz cultural é europeia, e há toda a dinâmica económica, política e também cultural que Portugal desenvolve fora de portas, noutros continentes, onde estabelece colónias.
Dos finais do séc. XIX até ao início do Estado Novo, Portugal está a refazer-se. Como os outros países europeus, está a dar uma nova importância aos espaços coloniais, por razões e económicas e políticas, e está também a redescobrir-se porque, como tinha perdido o Brasil, reorientou-se para África, de modo a refazer o seu Império, iniciando um colonialismo moderno. Com o Estado Novo, esse processo intensifica-se, mas comporta uma característica diferente: um fechamento muito maior ao espaço europeu. Fazendo uma síntese simplista, porque as coisas não são assim tão lineares, pode dizer-se que o Estado Novo voltou as costas à Europa.
Com a instauração da Democracia, nós fazemos de imediato uma rotação, em direcção à Europa, ao mesmo tempo que encerramos o capítulo do Império. As elites e responsáveis políticos da Democracia entendem que a modernização, desenvolvimento e estabilidade do país dependem dessa aproximação à Europa, percurso que culmina com a nossa adesão à CEE, em 1986.
Costuma dizer-se que Portugal foi grande quando virou as costas à Europa. Esta ideia é um mero chavão, com pouco ou mesmo sem sentido, ou traduz algo de relevante?
A Inglaterra também foi grande quando deixou a Europa. Temos que ter em conta que é da Europa que sai o movimento de globalização que se inicia no século XV e no século XVI. Se não militarmente, os europeus conquistam politicamente e economicamente boa parte do resto do mundo e, na verdade, é a saída da Europa para o mundo que a vai enriquecer e torná-la no continente dominante. Não faço aqui uma leitura de excepcionalidade em relação a Portugal. Portugal fez o que tinha a fazer, atendendo às suas condições do tempo, e esse caminho também foi feito por outros países, como Espanha e Inglaterra, sobretudo, mas também pela França ou pela Holanda. Todos tiveram processos históricos semelhantes. Esse chavão decorre, decerto, do facto de a dimensão que temos à escala europeia ser menor do que aquela que, historicamente, conquistamos no resto do mundo.
Há risco de a crise que atravessamos levar a uma alteração estas identificações?
Haverá algum risco. A leitura que as pessoas fazem da crise, dos protagonistas, dos agentes que estão na origem das dificuldades que estão a sentir está muita centrada nas instituições europeias. É-lhes atribuída uma grande responsabilidade nos problemas. Não é de excluir que possa haver ou vir a haver uma tendência para os portugueses se desvincularem desse sentido de pertença à União Europeia.
O que antevê para estas eleições europeias? Mais interesse e participação ou ainda mais distanciamento?
Não tenho muitos dados para me posicionar em relação a essa questão, mas não espero muitas alterações, porque há a crise conjuntural e há outros aspectos, anteriores a isso, como o desligamento cada vez maior dos cidadãos em relação à política e em relação aos actos eleitorais e, no que diz respeito às eleições europeias, isso foi sempre assim, em todos os países. Existe a percepção de que as questões nacionais são resolvidas com as eleições nacionais e, por isso, as eleições europeias tiveram sempre pouca importância. Mas importa sublinhar que têm pouca importância porque o Parlamento Europeu é visto como um elemento menor na estrutura política da União Europeia e os europeus não se sentem suficientemente representados. Isto também leva as pessoas a negligenciar estas eleições. Já é positivo que as eleições decorram ao mesmo tempo em praticamente todos os países, porque se gera um acontecimento em que as pessoas – 400 milhões – participam em conjunto. Mas muito mais tem que se feito.
A Europa caminha para uma federalização? Isso será possível numa Europa de Nações?
Não é impossível. Já vêm sendo dados passos nesse sentido. Já há uma enorme partilha de soberania, há um processo de “des-soberanização” dos Estados nacionais, há uma moeda única, há políticas com formato federal ou “protofederal”. Todavia, há outros aspectos em que esse elemento falha e, desde logo, naquilo que é crucial: parece que se quer fazer uma federação às escondidas, nas costas dos cidadãos. Na velha política de pequenos passos que a União tem seguido, medida após medida, directiva após directiva, decisão após decisão vamos caminhando no sentido da federalização. Todavia, os aspectos que são mais importantes - como garantir a igualdade dos Estados que participam, assegurar a representação dos europeus e perceber qual é a vontade dos europeus nesse projecto - têm sido negligenciados. Se, por um lado, a federação não é um cenário impossível e já se foi montando uma estrutura nesse sentido (já foi pensada, até, há vários séculos - o Emmanuel Kant já sugeria uma federação europeia), na verdade, começou-se pela estrutura política e económica sem se querer perceber que as várias nações europeias são realidades muito diversas. Os europeus foram, entre si, inimigos e adversários durante muitos séculos e é preciso que as pessoas percebam que uma federação europeia seria algo de benigno para aceitarem entrar nesse projecto. Querer fazer isso escondendo tudo dos europeus não é melhor caminho. Tudo esbarra aí, tal como esbarra no facto de alguns países, nomeadamente os mais importante, os politicamente e economicamente mais fortes, não quererem ceder poder. A federação implica sempre um equilíbrio de poderes. Não se conseguindo esse equilíbrio, isso torna-se num impedimento.