Incêndio em Monchique
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Incêndio em Monchique Não se perderam vidas, mas a vida perdeu-se Não se perderam vidas, mas a vida perdeu-se Não se perderam vidas, mas a vida perdeu-se

Limparam-se os terrenos e investiu-se na prevenção, mas Monchique voltou a arder. O fogo apagou a cor da serra. Resta o chão e o cheiro a cinza. Agora é tempo de recomeçar, uma vez mais.

Joana Bourgard e Joana Gonçalves
 
 

Os números falam por si, mas o cenário que se encontra na Serra de Monchique revela uma devastação quase indescritível ao longo de milhares de quilómetros destruídos pelo fogo. Resta o chão e o cheiro a cinza. O fumo denuncia um fogo que teima em consumir o que se julgava já não existir. Salvaram-se as vidas, mas o que vai ser da vida?

 
 

Voltar a reconstruir

 
 

O verde da serra, o som das andorinhas, do chapim-real e do pequeno pintarroxo, “a boa água e a boa terra”, conquistaram Mónika e Bernhard, um casal austríaco que, em 1985, se mudou para Monchique. Há 12 anos instalaram-se definitivamente em Corte Grande, na Picota, o segundo ponto mais alto da serra.

“Quando vamos passear estamos sempre a apanhar coisas”, conta a artesã. As folhas secas, os ramos caídos, as cascas de sobreiro e as flores de S. João dão vida a cada peça exposta na Arte Natura, loja que alugou no centro da Vila Termal de Monchique. Era aqui que estava quando as chamas ali chegaram, no dia 5 de agosto.

O marido ficou em casa, viu de perto a aproximação do fogo, assistiu na linha da frente à destruição do armazém natural, que era para si a Serra de Monchique. Tentou salvar a horta, a casa e a oficina. Só às 3h00, quando percebeu que o fogo não ia dar tréguas, fugiu em direcção à vila. Antes de partir, procurou pelo companheiro Sambuca, cão do casal. A busca foi sabotada pelo fumo que tornou o ar irrespirável. O melhor amigo ficou para trás.

Durante a viagem, o calor transformou os estofos do carro em brasa. A adrenalina era tanta, a ânsia de chegar junto de Mónika, o desespero de quem deixa para trás uma vida, o medo de não voltar a ver o companheiro de quatro patas. Mil e um pensamentos assombraram-lhe a viagem. Iam e vinham, tão depressa que não conseguiu perceber que queimava a mão no volante. Só horas mais tarde sentiu a dor de uma queimadura de segundo grau, que lhe consumiu parcialmente a mão.

 
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Mónika e Bernhard mudaram-se da Áustria para Monchique em 1985. Ficaram com a casa e a oficina de artesanato destruídas pelo incêndio
 

“Eu assisti a muita coisa na Áustria, estava cá durante os incêndios de 2003, mas nunca vi nada tão parecido com um cenário de guerra”, desabafa. No dia seguinte, 6 de agosto, quarto dia de incêndio, voltou à Corte Grande, com Mónika.

No lugar da casa encontraram quatro paredes desabadas, a horta era agora cinza e quanto à oficina, nem uma folha resistiu ao calor. Trabalham com folhas secas, por isso não seria um problema encontrá-las desidratadas, mas a intensidade do fogo era tal que em vez de secas, desapareceram por completo. No mesmo dia reencontraram Sambuca.

De volta à loja, que sobreviveu intacta às chamas, Mónika explica que o valor de cada peça aumentou depois do incêndio. Tudo o que lhe resta está aqui. Cada artigo vendido é colocado num saco de papel decorado à mão, com flores e folhas da serra, que são agora uma raridade.

Antes de o entregar, segura um fruto de eucalipto e num só golpe retira-lhe parte da casca. Encosta-o ao nariz. “A serra cheirava assim”, explica, antes de perder a voz. As lágrimas começam a escorrer-lhe pela cara. É este o quadro de quem perdeu tudo e não sabe o que esperar do que aí vem.

Mónika e Bernhard vivem provisoriamente numa tenda, num terreno perto de Corte Grande. Uma semana após o incêndio, os efeitos da tragédia ainda se fazem sentir. Bernhard garante que não consegue dormir e sofreu um ataque de ansiedade, no sexto dia depois da tragédia. A revolta é evidente, mas recusam abandonar a serra.

 
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Casa de António no Barranco Fundo, em Alferce
 

Quem também não deixa para trás a casa, onde sempre viveu, é António. Aqui nasceu e daqui não sai. No terceiro dia de incêndio, as chamas aproximaram-se da freguesia de Alferce. “Vi-o passar lá e depois pus-me a pau. Se fosse de noite não sei como seria”, conta.

António é o único habitante desta encosta. São 15 minutos de carro, num caminho íngreme, estreito e de terra batida, até à estrada mais próxima. Poucos se aventuram a fazer este percurso, mas ele fá-lo pelo menos três vezes por semana, de motorizada. Foi também o que fez no dia 5 de agosto. Partiu durante a tarde e regressou de madrugada. A casa ficou destruída, salvou-se apenas um anexo.

Sem telefone, não conseguiu avisar ninguém do que se passava. Só no dia seguinte o encontraram. Lá estava ele, junto à casa desfeita pelas chamas, no fundo da serra. “Fiquei sem nada, só com uma muda de roupa”, acrescenta.

Agora dorme num colchão sobre o chão do anexo. “Achas que me podiam pôr aqui um tecto? Só precisava disso em dezembro, na altura da chuva”, é o único pedido que faz a João Dimas, membro da Junta de Freguesia de Alferce. Um pedido humilde que ainda não tem garantias de concretização.

 
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“Tivemos uma reunião de coordenação com as várias instituições que irão dar apoio. Aquilo que foi transmitido foi que todas as casas irão ser recuperadas. Isto leva tempo porque são fundos estruturais, tem que existir aprovação, tem que existir a saída da portaria, tem que ser feito concurso, tem que haver toda essa dinâmica institucional que levará algum tempo”, relembra José Gonçalves, presidente da Junta de Freguesia de Alferce.

Enquanto os pedidos aguardam resposta, são os voluntários que asseguram o apoio às pessoas afectadas pelo incêndio. No sétimo dia de incêndio, 24 horas antes do fogo ter sido oficialmente dominado, foi criado um centro de apoio às vítimas.

“Ajuda Monchique” é o nome do projeto, sediado na Escola E.B. 2, 3 local. O centro já recebeu 277 pedidos de auxílio, foram distribuídos mais de uma centena de kits alimentares e realojados pelo menos seis habitantes.

John Roy Dommett, natural da África do Sul, é um dos voluntários do centro. O combate às chamas impediu-o de estar presente no primeiro dia. “Não pude vir de imediato para a escola dar ajuda porque estávamos na casa dos meus avós, a defende-la", relata. "Houve uma tentativa de evacuação, mas decidimos que era melhor não darmos sinal de presença quando a GNR tentou fazer evacuação e isso permitiu que defendessemos a nossa casa, a horta, o pomar, utilizando a bomba de água, pás de trabalho, esperando que o incêndio chegasse à fronteira do terreno para depois abatê-lo”, acrescenta.

 
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Depois de defender a casa dos avós, John Roy juntou-se à “Ajuda Monchique”
 

John não é um caso isolado. São vários os relatos de habitantes que contrariaram as indicações da GNR e se esconderam no interior das habitações. Nalguns casos a evacuação foi bem sucedida num primeiro momento, mas as pessoas conseguiram regressar a casa para combater o fogo.

Já lá vão mais de 15 dias desde que John se juntou à equipa de voluntários. Ao contrário da maioria, optou por ficar. “Rejeitei várias ofertas de trabalho nos EUA, onde fiz o meu curso, para voltar para Monchique e fazer a minha vida aqui. Não é muito frequente porque o êxodo rural é um facto aqui”, explica.

Com estudos universitários em Ciência Política e Economia, John Roy vê neste concelho a oportunidade de desenvolvimento de um negócio híbrido que promova a filantropia, através do empreendedorismo, um meio rural.

“Aqui há imenso trabalho, não há muito emprego. Aquilo que tento dizer aos meus colegas monchiqueiros é que temos que nos desenrascar, temos que criar os nossos próprios trabalhos, temos que ser empreendedores. Espero que depois deste período do incêndio, de nos acalmarmos e de nos reunirmos, que haja uma revigoração de todos nós para fazer isso”, apela.

Joana Fernando, membro da Associação de Guias de Portugal, não partilha o otimismo. É também voluntária neste grupo e uma das mais presentes no terreno. Coube-lhe a tarefa de “bater todo o território afetado pelas chamas”, contactar com os habitantes e informar a equipa das necessidades de cada um. “A Protecção Civil deu-nos esta missão. Temos um questionário que damos às pessoas. Vamos diagnosticar essencialmente como é que as pessoas estão. Se têm outro suporte e também ver os danos”, explica.

Seis dias depois do fim do incêndio, encontrou pessoas em total isolamento. “Nós fomos, em muitos dos casos, os primeiros a chegar”, conta. “As situações mais complicadas são as pessoas que têm mais idade, que sempre viveram ali, sempre se sentiram seguras e habituadas a estar nestes lugares, mas que se não tiverem suporte familiar, não vão ter este cuidado próximo”, acrescenta.

Durante o dia, Joana ouve os relatos dos habitantes mais afetados, muitos perderam a casa, outros tantos ficaram sem fonte de rendimento. Entre testemunhos e apelos, não consegue deixar de recordar a própria história. A cada conversa, vem-lhe à memória a experiência de anos anteriores.

“Houve um grande incêndio em monchique em 2003, mas a parte de Casais e Marmelete não tinha ardido. Em 2004, essa parte ardeu. Nessa altura, o meu avô ainda era vivo e perdeu tudo. O trabalho de uma vida na alemanha, de uma série de anos. Era tudo. Agora em 2016, perdemos novamente. Escapámos este ano, mas não dormimos descansados, porque o verão ainda agora começou e estas zonas não arderam”.

 
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Áreas ardidas entre 2003 e 2018, na Serra de Monchique
 

A oficina de João mudou de lugar. Agora podemos vê-lo trabalhar na rua Engenheiro Duarte Pacheco, no centro da vila de Monchique. Artesão há mais de 40 anos, João Furtado refugiou-se num tanque, enquanto as chamas lhe consumiam a casa. Primeiro o quintal, depois a oficina. Foi registando tudo no telemóvel, “enquanto não fritou”.

“Perdi as máquinas todas: as máquinas de coser, as máquinas elétricas, além das máquinas agrícolas, as motosserras, os geradores e os painéis solares. Eu era auto-suficiente a energia fotovoltaica, era das mais antigas. Há 31 anos que tinha energia fotovoltaica. Perdi tudo, a história da minha vida, roupas, livros, fotografias, discos, aparelhagens, instrumentos musicais” conta. Uma semana depois do incêndio, prepara-se para fazer a primeira peça, depois da tragédia. Esta não vai vender, garante.

João trabalha com cabedal. Faz cintos, malas e sapatos. Já lhe fizeram chegar vários materiais à nova oficina provisória, montada pela N’ARTECICUS, Associação Profissional dos Artesãos e Artistas Plásticos de Monchique.

Começa por fazer um cinto, quer substituir o que tem. Enquanto o prepara, conta que a sua história de sobrevivência, “já correu mundo”. Ficou “tristemente célebre”. "Só que isto não paga os prejuízos. É só fogo de vista, o outro fogo foi pior, bem pior. Basta ver o estado em que ficaram as coisas”, desabafa.

Não é a primeira vez que João assiste a um incêndio em Monchique. Presenciou as tragédias de 1991 e 2003. “Das outras vezes foi ao pé da casa. Desta vez, veio de todos os lados ao mesmo tempo, era impossível fazer alguma coisa. Era uma chuva de fogo sobre a casa, que pegou pelo telhado. Estava preparado, achava eu, com mangueiras, baldes de água, alguidares cheios de água, só que às duas por três eram chamas por todo o lado. Tive que fugir para dentro do tanque, estive lá umas quantas horas”.

Gaba-se de não ter fugido e conta que quando saiu do tanque ainda usou um balde para salvar algumas casas. Mercedes, uma artesã com quem divide esta oficina improvisada, não arriscou. Fugiu com o filho de dois anos, uma hora antes do fogo chegar a Alferce, onde vivia.

 
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Já é o terceiro incêndio que passa pela casa do artesão João Furtado, mas este foi o único que lhe destruiu a casa e a oficina
 

Seguiram em direcção a S. Marcos da Serra, ainda antes da estrada ser cortada. “A minha casa foi uma das que arderam completamente”, explica. Também Mercedes perdeu o espaço de trabalho. A bijuteria é a principal fonte de rendimento e trabalha sobretudo com resinas e flores secas.

“Tenho sempre uma caixinha com stock e é isso que vou ter que usar por agora, para as vendas, até recuperar materiais e fazer novos trabalhos. Vai demorar algum tempo. Trabalhava muito com a natureza, com flores e plantas secas, que agora aqui em Monchique é um bocado difícil de encontrar, está tudo queimado”, acrescenta.

O verde deu lugar ao negro. Onde antes se ouviam pássaros, agora ecoa o som das cigarras. Nem as raízes sobreviveram. Uma história que se repete há mais de 50 anos, mas que “desta vez foi muito pior”. Como Joana, também Mercedes, João, Mónika, Bernhard, José e António viveram a pior das tragédias. Não foi a primeira e o receio de que não seja a última vai-lhes subtraindo noites de sono.

“Felizmente não morreu ninguém durante o combate, durante a operação, mas as pessoas estão agora a iniciar a sua morte, algumas delas. É difícil viver num sítio em que 20 quilómetros em redor não existe nada verde", acrecenta. "As pessoas vão sofrer muito como em 2003, apesar de haver alguma resiliência. O problema é o acumular da carga emocional que se vai carregando todos os dias até que existe uma altura em que a sobrecarga é insuportável”, explica José Gonçalves, presidente da Junta de Freguesia de Alferce, a aldeia mais afetada.

Ainda é possível viver da floresta?

 
 

Estava tudo limpo, e mesmo assim não restou nada. É esta a frase que mais se ouve em Alferce. Arderam eucaliptos, sobreiros, medronheiros e colmeias. Na “Sintra do Algarve”, como lhe chama Emílio Vidigal, “os prejuízos são incontáveis, as perdas irreparáveis”.

O presidente da Associação dos Produtores Florestais do Barlavento Algarvio aponta a desertificação como um obstáculo à prevenção e ao combate eficaz de incêndios. Em 50 anos, entre 1960 e 2010, Monchique registou um decréscimo populacional na ordem dos 60%. Onde antes o número de pessoas em idade ativa era seis vezes superior ao número de idosos, agora o envelhecimento populacional faz-se notar a um ritmo preocupante. Por cada idoso, há um jovem em idade ativa, o segundo valor mais baixo na região do Algarve.

“Se tivermos muita gente a trabalhar na floresta, as pessoas cuidam dela porque é o seu ganha pão. Mas, se estiver abandonada, os incêndios vão acontecendo e ninguém se preocupa com isso”, desabafa.

João Dimas contraria a tendência. Aos 35 anos é um dos mais jovens apicultores da aldeia de Alferce. Faz parte da terceira geração que mantém vivo o negócio de família. “Tínhamos poucos jovens na freguesia. Fiquei eu e mais dois ou três, os outros abalaram para Portimão à procura de empregos. Agora ficámos sem nada”, conta.

Das cerca de duas mil colmeias que tinha, perto de 200 ficaram totalmente destruídas. O prejuízo ultrapassa os 20 mil euros. Ao material queimado somam-se ainda as perdas indiretas. Não restam flores para a produção de mel e as abelhas vão levar tempo a regressar.

Sete dias após a tragédia, João Dimas ainda não conseguiu contabilizar todos os danos. Passeia pela serra e aponta as zonas mais afectadas. “Ali em baixo estão mais colmeias. Estava tudo limpo à volta, estavam no topo das pedras e mesmo assim”, desabafa

 
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Os incêndios frequentes ameaçam gravemente a biodiversidade da Serra de Monchique
 

Tal como João Dimas, vários produtores garantem que tinham os terrenos limpos, conforme as diretrizes do regime de redes secundárias de faixas de gestão de combustível.

Em 2015, foram mais de 100 os proprietários notificados pelo Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro da GNR com autos e coimas, pelo incumprimento da limpeza dos terrenos em faixas de 50 e 100 metros em redor das casas e da aldeia. José Gonçalves, presidente da Junta de Freguesia de Alferce, garante que o episódio serviu de emenda aos proprietários.

“Houve uma consciencialização para a necessidade de limpar em volta das habitações. Esta era uma freguesia tipo, era uma das mais limpas do país. Basta ver que praticamente não houve nenhum auto de contraordenação este ano”, assegura.

Entre janeiro e agosto, foram registados oito autos de contraordenação, na aldeia de Alferce. Todos estes proprietários são estrangeiros e, de acordo com o presidente da Junta, “procederam prontamente à limpeza dos terrenos” após a notificação.

Desde abril deste ano, a GNR instaurou mais de 1900 autos de contraordenação por falta de limpeza das matas, em todo o território nacional. Deste total, 535 foram entretanto anulados, depois dos proprietários terem procedido à limpeza dos terrenos.

Paulo Rosa, presidente da Associação de Produtores de Aguardente de Medronho do Barlavento Algarvio, relembra que as despesas duplicaram. Depois do investimento na prevenção, somam-se aos prejuízos os custos do “mato que vai nascer de forma espontânea e abusiva”.

“Cada vez que há um incêndio, o mato nasce como se fosse cabelo. Muito e por todo o lado, porque o fogo ativa muitas sementes que só germinam quando encontram condições favoráveis, o fogo é uma dessas condições”, acrescenta.

Os medronheiros e sobreiros não têm tanta sorte. Nalguns casos, o período de recuperação ultrapassa os 15 anos. “A maior parte dos sobreiros da freguesia do Alferce, quase todos, ficaram irremediavelmente perdidos, a maioria já não recuperam. O medronhal, agora depois dos incêndios, demora três a quatro anos a começar a dar medronho. A recuperação completa em termos de produção vai demorar até dez anos”, explica.

Entre bancos de jardim ouvem-se vizinhos: “Tu nunca mais vais tirar cortiça”. Seguem-se risos que denunciam o tom de brincadeira, que tenta camuflar o drama de quem fala. Alguns dos proprietários destes sobreiros ardidos somam mais de 80 primaveras. Feitas as contas, terão de chegar até aos 100 anos para voltar a recolher cortiça. Uma tarefa que pode ser dificultada se a tragédia deste ano se repetir.

 
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Em cima, a aldeia de Alferce, a freguesia mais ameaça pelo incêndio. Em baixo, José Gonçalves, bombeiro voluntário e presidente da Junta de Freguesia de Alferce
 

José Gonçalves é também segundo comandante dos bombeiros de Silves, soma mais de três décadas de experiência em combate às chamas. “As ribeiras da Odelouca e de Monchique têm plantas autóctones. Em 30 anos de bombeiro, sempre houve aqui incêndios, nunca vi as ribeiras arderem. Este ano, as linhas de água ficaram completamente destruídas”, relata.

A água é também uma das bandeiras deste concelho. A cerca de 18 quilómetros de Odelouca, no centro das Caldas de Monchique, encontramos a fábrica da empresa Água de Monchique.

Durante 12 dias esteve parada. Apesar de não ter sofrido nenhuma perda direta, fora um camião parcialmente afetado pelo calor a que esteve sujeito, os prejuízos ultrapassam o meio milhão de euros. “Estamos a falar de uma perda de faturação que rondará os 60 mil euros, por dia. Os danos directos são relativamente limitados. O incêndio, felizmente, esteve circunscrito à zona envolvente da fábrica. O interior não foi diretamente afetado”, explica Vítor Gonçalves, actual CEO da empresa.

Onde antes se viam garrafas de água para trás e para diante, paletes empilhadas até ao tecto e o som das máquinas em esforço, agora faz-se notar a ausência de stock, o eco que denuncia o vazio. A fábrica ficou coberta por cinzas. No décimo dia iniciaram-se as limpezas.

Um cenário encarado com surpresa, pelos 32 funcionários da empresa. “O fogo começou muito longe das Caldas de Monchique. Aliás, muito longe da vila de Monchique. Nunca ninguém pensou que o incêndio fosse alastrar-se tanto, durante tantos dias e que tomasse estas proporções. Efectivamente a Proteção Civil no sábado deu ordens para dar início à evacuação dos espaços e nós fizemo-lo por segurança. Nunca imaginámos que o incêndio chegasse e estivesse aqui ao lado da nossa fábrica”, conta.

Segundo Vítor Gonçalves, foi a primeira vez que a fábrica parou, pelo risco de proximidade de incêndio. A Protecção Civil ordenou a suspensão da atividade e evacuação do espaço, na sexta-feira, dia 3 de agosto. A fábrica reabriu no dia 15.

A cinza, que invadiu a fábrica e atrasou em dois dias a reabertura do espaço, não chegou para contaminar o aquífero de onde é extraída a água de Monchique. “Falamos de um aquífero de profundidade. A nossa água é captada a 900 metros de profundidade, é uma profundidade muito grande onde, os hidrocarbonetos, as cinzas, o carbono orgânico não atingirão nem agora nem aquando da vinda das chuvas”, assegura o CEO da empresa.

Se a fábrica escapou às chamas, o mesmo não se pode dizer de mais de 27 mil hectares de serra, palco das caminhadas promovidas pela Proactiventur, uma empresa de turismo responsável.

“Trabalhamos muito com os artesãos, com a malta que produz medronho, organizamos atividade em que as pessoas caminham e depois vão fazer piqueniques no meio da serra, a apanhar medronho”, explica João Ministro, gestor da empresa.

 
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Paulo Rosa, presidente Associação de Produtores de Aguardente de Medronho do Barlavento Algarvio
 

Depois do incêndio, o cenário que antes convidava a exploração, agora começa a preocupar os primeiros turistas a quem chegam as notícias da tragédia. “Ninguém quer caminhar durante horas no meio das cinzas. Já recebi telefonemas dos meus clientes alemães e holandeses e, inclusivamente, tinha um programa novo que foi suspenso, precisamente por causa da questão do fogo”, conta.

Julho e agosto representam a época baixa da Proactiventur, “porque é verão e ninguém caminha com 40 graus”. Por esse motivo, a empresa não tinha clientes durante os dias do incêndio em Monchique. Porém, até ao final do ano, estão já asseguradas 20 semanas de reservas.

A empresa recebe, em média, entre 600 e 700 clientes, por ano. Um dos programas mais requisitados inicia-se, precisamente, com três dias de atividades em Monchique. Durante este período os clientes ficam alojados em unidades hoteleiras do concelho.

Dentro de duas semanas chegam os primeiros caminhantes do mês de setembro. João Ministro procura uma alternativa rápida, que pode passar pela eliminação de Monchique do percurso turístico. “Se eu fizer isto, significa que vou deixar de pôr pessoas a dormir em Monchique, as pessoas deixam de comer em Monchique”, alerta o gestor.

A resiliência carateriza estes empresários, mas quando se perde tudo pela segunda e terceira vez, o ceticismo toma o lugar que o otimismo não consegue mais garantir.

Um incêndio esperado

À entrada de Alferce os vestígios do incêndio são incontornáveis. Candeeiros derretidos, sinalética ardida que impede a leitura do que nela antes estaria inscrito, viaturas carbonizadas e habitações transformadas em ruínas.

A cada esquina, em cada banco, nas conversas entre vizinhos há uma pergunta que assombra esta aldeia: “Se estava tudo limpo, o que é que correu mal?”

 
 

Os relatos denunciam indicações contraditórias e um intenso sentimento de desamparo. “Não havia bombeiros em Alferce. Mesmo que não conseguissem controlar o fogo, era um apoio que precisávamos para não nos sentirmos abandonados”, confessa Paula.

Em menos de uma hora o fogo atravessou a serra e chegou à aldeia, num acelerado “efeito de chaminé”. “Não houve tempo de diálogo”, conta José Gonçalves, bombeiro e presidente da Junta de Freguesia. Um diálogo que talvez tivesse evitado a confusão que rapidamente se instalou em Alferce. “Houve alguma perturbação na informação. Tinha dado a indicação ao posto de comando de que se devia fazer o acantonamento das pessoas. Os primeiros militares da GNR a chegarem quiseram fazer a evacuação”, explica.

A Junta de Freguesia de Alferce aderiu ao programa “Aldeia Segura”, uma proposta criada através da resolução de Conselho de Ministros, a 27 de outubro, depois dos incêndios de 2017. O principal objetivo do projeto é promover a implementação de “iniciativas de prevenção e preparação face a incêndios rurais“, como se pode ler no guia de apoio à implementação.

Entre as medidas propostas pelo programa, que já chegou a mais de mil aldeias, estão a criação de locais de abrigo e de refúgio e a determinação de um oficial de segurança, alguém com “conhecimento adequado da realidade geográfica, humana e das estruturas existentes a nível local”.

 
 

No dia em que o incêndio chegou à aldeia de Alferce, a junta de freguesia pediu a todos os habitantes que se reunissem no ponto de segurança. Algumas estradas estavam cortadas e determinou-se que seria demasiado perigoso tentar abandonar o local. Apesar do apelo, vários habitantes relatam indicações contraditórias da GNR, que terá incentivado a evacuação.

Paula descreve, com revolta, um cenário de desorganização. Garante ter assistido a episódios durante os quais algumas pessoas terão sido incentivadas a sair da aldeia por meios próprios, sem acompanhamento ou orientação. Foi uma das primeiras a intervir.

“Houve pessoas que fazem parte da junta que falaram com os sargentos e explicaram que tínhamos o plano da aldeia segura. A partir daí, aceitaram que houvesse o acantonamento, com normalidade, dentro de uma situação de catástrofe”, explica José Gonçalves.

Na altura, o presidente da Junta de Freguesia estava a combater uma frente de fogo em Silves. O acesso ao Alferce esteve temporariamente cortado, o que dificultou a entrada na aldeia.

“O que acontece é que todos os meios estavam balanceados para a frente, a norte. Eventualmente deverá ter havido no planeamento uma falha porque existiam corporações a sul. Como estávamos em alerta vermelho, as equipas disponíveis deveriam ter vindo pelo sul para chegar aqui”, acrescenta.

Em maio deste ano, uma equipa de investigadores do Instituto Superior de Agronomia e da Universidade de Lisboa publicou um mapa que incluía os 20 concelhos com maior risco de incêndio. Monchique liderava, com risco máximo. Três meses depois a previsão cumpriu-se.

 
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Monchique é caracterizadas por muitos declives, tornando difícil o acesso a alguns locais da serra
 

Emílio Vidigal, presidente Associação dos Produtores Florestais do Barlavento Algarvio, sugere uma possível negligência por parte do governo. “Eu acredito muito na comunidade científica e tenho pena que os sucessivos governos financiem as universidades a fazer estudos e depois não ponham em prática o que é defendido. Só estávamos à espera do dia e da hora para este fogo eclodir. Este ano, professores universitários alertaram que havia um barril de pólvora escondido em Monchique e esse barril de pólvora explodiu. O Governo não quis saber, não teve a atenção suficiente”, desabafa.

Em março deste ano, o Governo lançou um concurso para a criação de faixas de interrupção de combustível. A Câmara Municipal de Monchique concorreu a duas fases e foi informada da aprovação no final do mês de junho.

“Nós imediatamente lançámos o concurso, mas ficou deserto, não houve nenhuma empresa que tivesse concorrido. É difícil em cima da hora aparecerem empresas e o dinheiro que o Estado dá por quilómetro é muito pouco. Para o Alentejo é fácil porque as empresas conseguem concorrer e ter algum retorno, aqui os 1.500 euros por quilómetro que representa dois hectares não são suficientes para serem apetecíveis para as empresas e o nosso concurso ficou deserto”, explica o presidente da Câmara de Monchique, Rui André.

Na tentativa de contrariar este obstáculo, a autarquia contactou diretamente com algumas empresas do concelho e conseguiu um acordo. “Neste momento estávamos a fazer as faixas que aproveitam a estrada existente e fazem mais dez metros para cada lado. Não é limpeza raza, é gestão de combustível. Infelizmente não tivemos tempo de concluir”, acrescenta.

Como muitos outros testemunhos, também Rui André assegura que nunca antes o município esteve tão limpo. Para o presidente da Câmara “a questão das faixas de intervenção (de combustível) não passa de um mito urbano”. “Um incêndio desta natureza não se consegue travar com faixas de dez metros nem com a limpeza das casas de 50 metros. Há a necessidade de fazer outro tipo de intervenção na paisagem”, esclarece.

 
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Emílio Vidigal, presidente da Associação dos Produtores Florestais do Barlavento Algarvio
 

Emílio Vidigal partilha a opinião, “com a desertificação, as práticas de presença na serra e as práticas de gestão da serra alteraram-se. Agora limparam-se 50 metros à volta das casas, mas antigamente as pessoas que viviam no campo todas tinham um rebanhozinho de ovelhas ou de cabras. Elas próprias faziam a gestão desses matos e não era nos 50 metros à volta, era nos 100 ou nos 200. Os campos estavam todos muito menos vulneráveis aos incêndios”, afiança.

De acordo com o Sistema Europeu de Informação sobre Incêndios Florestais, Portugal é o país da União Europeia com maior área ardida, entre 2008 e 2017. No ranking europeu de número de incêndios, registados no mesmo período, Portugal ocupa o quarto lugar, com uma média de 138 incêndios por ano.

Em 2017, os portugueses assistiram em Pedrógão Grande ao maior incêndio, em território nacional, dos últimos dez anos. Isilda Gomes, presidente da Câmara Municipal de Portimão deixa o alerta, “se nós não fizermos nada, provavelmente vamos continuar a ter incêndios cada vez mais agressivos. E quem diz incêndios diz outros acontecimento, como por exemplo chuvadas”.

“A sensibilização de todos os cidadãos é fundamental para que tenhamos uma outra consciência ambiental. Isso é um papel que nós temos de transmitir às atuais e às futuras gerações, porque de facto vivemos num planeta ameaçado, e essa ameaça é feita por nós. E se somos a ameaça ao nosso planeta, então também está nas nossas mãos corrigir os erros que temos feito ao longo dos anos”, acrescenta.

A floresta é de todos e a responsabilidade de a gerir também. Uma frase de autor desconhecido, repetida em cada discurso que se faz ouvir em Monchique. Segue-se o apelo à descentralização e um pedido de auxílio.

Na passada quarta-feira, dia 22, o ministro da Agricultura, Capoula Santos, anunciou um programa de apoio aos agricultores afectados pelo incêndio de Monchique, no valor de cinco milhões de euros. As candidaturas devem ser apresentadas até dia 30 de setembro e o financiamento deverá começar a chegar aos proprietários no início de novembro.

Em Monchique o chão voltou a arder. A serra perdeu, uma vez mais, a cor. Os animais abandonaram as encostas. São cada vez menos os jovens que ficam e cada vez mais os que optam por partir. Por cada tragédia, uma nova “janela de oportunidade” é aberta, mas os incêndios sucedem-se e as janelas voltam a fechar-se.

 

Agosto de 2018 – © Renascença

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