"A ideia de ir ao cinema morreu”, declara realizador David Cronenberg

Estreia hoje “Crimes of the Future”, o novo filme de David Cronenberg, o realizador considera que a pandemia mudou o cinema. Na sua opinião, as grandes salas são só para filmes comerciais. À Renascença, diz que a guerra na Europa e o Brexit são um desastre.

24 nov, 2022 - 06:18 • Maria João Costa



Foto: Maria João Costa/RR
Foto: Maria João Costa/RR

Está a menos de um ano de completar 80 anos, diz que já lhe doem os joelhos e ouve mal, mas considera o 80 “um número estranho”, até porque afirma: “não sinto que tenha 80 anos”. Vestido todo de preto, de forma desportiva, David Cronenberg sentou-se com a Renascença a conversar sobre o seu novo filme e o mundo que o rodeia.

Nesta entrevista aquando da sua passagem pelo Lisbon & Sintra Film Festival, o realizador canadiano fala sobre o futuro do cinema. Diz que a “ideia normal de ir ao cinema, morreu”, muitas das grandes salas vão encerrar, só irão ficar algumas para cinema comercial e outras para filmes de nicho.

Questionado sobre a guerra na Ucrânia, Cronenberg, cuja mãe era pianista num coro ucraniano e tocava nas aulas de ballet do bailarino russo Nureyev, considera uma catástrofe o que está a acontecer. Critica o “ego de Putin” e, embora perceba “os problemas da União Europeia”, continua a “achar que é uma solução brilhante e eficaz”.

Sobre o seu cinema, explica que é biográfico. No último filme, uma curta filmada pela sua filha, encenou a sua própria morte. Em sala estreia esta semana “Crimes of the Future”, um filme futurista num mundo onde humanos digerem plástico para regenerarem o corpo.

O filme que estreia nas salas de cinema portuguesas esta quinta-feira, “Crimes of the Future”, reflete sobre o uso do plástico no futuro. Quando tentamos acabar com o plástico, mostra uma nova forma de o usar, mas em benefício da humanidade. Que reflexão quer fazer com o filme?

Uma das discussões no filme é sobre a forma como estamos a tomar conta da nossa própria evolução. O corpo humano é diferente do que era há 100 anos. Depois da revolução industrial, houve muitas mudanças no ambiente, mas também no corpo humano. Uma das propostas do filme é, em vez de dizermos: "vamos nos livrar de todo o plástico do mundo que está nos oceanos e nas plantas", descobrirmos que a maior parte das pessoas no planeta tem microplásticos no seu sistema sanguíneo.

A proposta do filme talvez não seja inteiramente séria, é, em vez de nos tentarmos livrar de todo o plástico, aprendemos como o digerir, para o usar como comida, para que os nossos corpos o possam alterar e usá-lo como um nutriente. Assim resolveremos muitos dos problemas de fome no mundo e problemas de poluição.

É de certa forma uma proposta satírica, mas quase possível, porque já se descobriram bactérias que comem o plástico que nós produzimos. E elas vivem desse alimento, digerem-no e tiram-no do ambiente. Isto é uma brincadeira, mas ao mesmo tempo uma proposta séria que está no filme. É levado muito a sério no filme, as personagens levam-no muito a sério, e torna-se uma proposta, a qual devemos considerar.

Numa das frases do filme escutamos uma personagem a dizer que "o mundo é um lugar perigoso, agora que a dor desapareceu". Pode explicar em que medida a ausência de dor pode mudar o mundo?

O filme não apresenta uma discussão médica séria sobre o que acontece se a dor não for possível. Há uma personagem que diz isso. A dor é para nós um sistema de alerta. Claro que é algo de que nos queremos ver livres, mas sem dor não sabemos que partimos um osso, que há algo errado dentro de nós que tem se der tratado. Algumas crianças nascem sem a capacidade de experienciar a dor. E elas, normalmente, não vivem muito tempo, porque não têm os sinais que dizem aos pais que estão com algum problema que tem de ser resolvido.

Não quero ser muito explícito, mas há crianças que mastigam a própria língua, porque não percebem que estão a causar mal a elas próprias. Uma das razões por que propus no filme este universo alternativo, é porque estava interessado na ideia da cirurgia, sem anestesia. Então proponho que isso seja possível. A única razão pela qual tomamos uma anestesia é por causa da dor. Assim teríamos hipótese de fazer uma cirurgia, em locais públicos, como uma performance artística, e não teríamos de tomar uma anestesia, podíamos andar de um lado para o outro e a ser operado. Parece grotesco, mas no filme, acho que se torna uma possibilidade de uma beleza estranha, para a expressão e a arte.

O seu cinema reflete muito sobre o corpo e os seus limites. Como lida com o seu próprio corpo e o seu envelhecimento?

Acha que eu estou a envelhecer?! [risos]

Bem, acho que desde muito novo que penso no envelhecimento. Sempre tive pais e avós que estavam a envelhecer e observava o que isso significava. E, claro, também fui pensando que também eu iria experienciar isso se vivesse tempo suficiente.

Eu não considero que o meu olhar sobre o corpo seja muito diferente do de outras pessoas. É o meu corpo, eu tenho de aceitar que tenho quase 80 anos. É um número estranho, eu não sinto que tenha 80 anos, mas ao mesmo tempo, às vezes doem-me os joelhos, tenho uma prótese auditiva, as questões habituais. E lido com isso, como toda a gente. Tomo alguns comprimidos, faço alguns tratamentos.

Claro que agora todos vão para a internet e tornam-se os seus próprios médicos! Todos pesquisam para que serve este comprimido? Como é que o tomo? Será que o meu médico estava certo ao sugerir que tomasse aquele medicamento para aquela dor de cabeça ou será que é perigoso?

É um novo mundo com os conselhos médicos que estão na internet e que, claro, podem tornar-se confusos e podem ser perigosos, porque as pessoas se tornam paranoicas e entram em pânico, devido aquilo que leem na internet. É um mundo novo de tratamentos médicos e há muitos médicos a usar a internet também para pesquisar. Quanto a mim, não acho que seja muito diferente das outras pessoas.


Foto: Clemens Bilan/EPA
Foto: Clemens Bilan/EPA

Tal como a artista Marina Abramovich pediu ao encenador Bob Wilson para fazer um espetáculo em que encenava a sua morte em espetáculo, David Cronenberg acaba de fazer uma curta-metragem em que retrata a sua morte. Porque o quis fazer? E porque pediu à sua filha para realizar o filme?

Perturba-a muito fazer esse filme chamado "A Morte de David Cronenberg". Eu usei manequins muito reais que foram criados e moldados a partir do meu corpo para uma série de televisão chamada "Slasher". Eles permitiram-me que usasse os corpos, que para mim são muito semelhantes ao que acho que vou parecer quando estiver morto! [risos] Mas tive de criar uma ficção. Pensei, sinto-me emocionalmente ligado a estes corpos...

Não foi assustador para si?

Sim, muito assustador. Estava com um aspeto um pouco púrpura, com a boca aberta. Tinha uns dentes perfeitos. Os criadores dos efeitos especiais eram muito bons! Acabaram também a trabalhar no meu último filme. Pensei: "vou levar estes corpos para minha casa durante algum tempo e acho que tenho de fazer alguma coisa com eles". Precisava de fazer este pequeno vídeo de mim próprio a abraçar o meu próprio cadáver. Posso dizer que fui eu a abraçar a inevitabilidade da minha própria morte, e senti que foi doce, foi muito emotivo, mas de forma positiva.

E a sua filha?

A minha filha ajudou-me a filmar. Ela é fotógrafa e dirigiu o seu primeiro filme recentemente. Mas perturbou-a, claro, mais a ela do que a mim! Não mexeu assim tanto comigo. Se eu vou conseguir manter isso até ao momento da minha morte, não sei. Mas eu sou um existencialista, não sou crente, sou ateu, por isso sinto, tal como no filme "Crimes of the Future" há um mantra que diz que "o corpo é a realidade", eu acho que isso é verdade. Quando o corpo morre, nós também acabamos. Para muita gente, isto é impossível de imaginar ou aceitar, mas eu acho que é a realidade, por isso tento aceitá-lo.

A pandemia mudou as nossas vidas. De que forma viveu a pandemia e encara este vírus invisível que mudou quotidiano a nível global?

Para quem trabalha em ciência e medicina isto é muito normal. Os vírus já cá andam há mais tempo do que nós. Eles não têm vida, são mais uma espécie de máquinas moleculares que provocam danos.

Mas são verdadeiros sobreviventes.

Bem, são muito espertos, não como nós, mas têm a sabedoria da evolução. Replicam-se muito depressa, sofrem mutações e são essas mutações que permitem continuarem a infetar, mesmo que encontremos formas de os matar.

A pandemia de Covid não foi a primeira que eu vivi. Houve a poliomielite quando eu era criança. Todos tínhamos medo. Tínhamos a noção, como crianças, que era uma ameaça real. Em criança, quando ficávamos com uma dor de estômago, ficávamos logo com medo de ter pólio. Alguns foram infetados.

Depois veio a vacina que travou essa grande ameaça, por isso, para mim, é ainda hoje estranho que haja pessoas que consideram que a vacina da Covid-19 é uma espécie de experiência clínica. As vacinas são usadas há mais de meio século e realmente funcionam e salvam muitas pessoas. Para mim, esta histeria com as vacinas de que o Bill Gates nos está a tentar controlar através de um microchip é uma loucura! As novas vacinas para a Covid são fantásticas. São um grande avanço da medicina e a sua tecnologia será usada no futuro para impedir a explosão de muitas doenças.

Como vê o futuro do cinema? Com os “streamings”, as séries televisivas, canais como Netflix ou HBO acha que o cinema vai sobreviver?

Acho que o cinema vai sobreviver, mas num formato diferente. Acho, realmente, que vai deixar de haver tantas salas de cinema. Acho que haverá mais "streamings". A combinação do confinamento da Covid com a Netflix fez com que as pessoas se sentissem realmente confortáveis com ver cinema e séries televisivas nos seus “ipads” ou telemóveis.

Não acho que vamos regressar ao que era. Acho que haverá salas de cinema que vão mostrar filmes de grandes heróis, e grandes filmes comerciais, e depois poderá haver algumas salas de cinema mais pequenas, como algumas que há em Lisboa, que irão mostrar filmes de nicho. Acho que a ideia normal de toda a gente ir ao cinema, morreu! Acho mesmo!


Cena do filme "Crimes of the Future"
Cena do filme "Crimes of the Future"

Como vê a guerra na Europa, com o ataque da Rússia à Ucrânia?

É um desastre total! É uma catástrofe! É uma guerra estúpida e desnecessária. Tudo vem do ego de Putin e dos seus sonhos de um novo império russo. O facto de haver uma guerra na Europa é impensável.

Pensamos que tínhamos aprendido as lições da I e da II Guerra Mundial, que mataram centenas de milhares de pessoas, e afinal parece que não! Há ainda pessoas que têm a teoria do destino da Rússia... Isto é uma loucura ditatorial, a ideia de um destino que temos de conquistar outros países, seja lá isso o que for. Infelizmente, é uma reciclagem da História antiga da Humanidade.

Que visão tem como canadiano do que está a acontecer neste continente?

Nós, os canadianos, temos uma relação muito próxima com a Europa, mais do que os americanos! No Canadá sentimos maior ligação com a Europa e a Grã-Bretanha. Acho que o Brexit foi um desastre completo! É estúpido! Não compreendo a mentalidade! Foram grandes erros.

Percebo os problemas da União Europeia, mas continuo a achar que é uma solução brilhante e eficaz para o que saiu das duas grandes Guerras Mundiais. Foi uma tentativa de impedir de que aconteçam outra vez. A Rússia está a tentar quebrar isso. Para os canadianos é muito preocupante, e um grande desastre.

Estamos muito ligados emocional e culturalmente com a Europa. Temos tantos emigrantes, mais do que os Estados Unidos e ainda sentimos essas ligações, por isso esta é uma época desastrosa.

Acha que este mundo, neste momento, é inspirador para o cinema que faz? Ou prefere as distopias?

Há e haverá quem esteja a fazer filmes e documentários relacionados com a Rússia e a Ucrânia. No Canadá temos muita gente quer da Rússia, quer da Ucrânia. Eu próprio experienciei isso.

A minha mãe era pianista e tocava para um coro ucraniano. Tinha músicos russos. Ela costumava tocar para as aulas de Ballet do [Rudolf] Nureyev. O facto de haver uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia é penoso. É como uma guerra civil. Não quero fazer um filme sobre isso. Os filmes que eu faço não são tão políticos, mas há um efeito, sem dúvida do que está a acontecer no mundo. Haverá muitos filmes sobre o que se está a passar, feitos por realizadores que são mais políticos no que fazem.

Interessa-se mais sobre outros temas?

Eu também me interesso por essas questões, mas nunca quis fazer um filme de guerra, por exemplo. Não só no cinema, mesmo na minha vida, ao observar as coisas, eu gosto de vida.

Tem uma missão, enquanto realizador?

Não, acho mesmo que não. Não sou messiânico ou profeta. A maioria dos meus filmes são muito pessoais. Mesmo que não o sejam literalmente biográficos ou autobiográficos, vêm da minha experiência pessoal de vida. É esse o objetivo do meu cinema. É isso que quero dizer quando digo que não sou um realizador político. Embora, eu considere que toda a arte é política, porque expressa cultura e uma sensibilidade que vem de uma cultura. Nesse sentido filosófico, acho que toda a arte é política.