Está a menos de um ano de completar 80 anos, diz que já lhe doem os joelhos e ouve mal, mas considera o 80 “um número estranho”, até porque afirma: “não sinto que tenha 80 anos”. Vestido todo de preto, de forma desportiva, David Cronenberg sentou-se com a Renascença a conversar sobre o seu novo filme e o mundo que o rodeia.
Nesta entrevista aquando da sua passagem pelo Lisbon & Sintra Film Festival, o realizador canadiano fala sobre o futuro do cinema. Diz que a “ideia normal de ir ao cinema, morreu”, muitas das grandes salas vão encerrar, só irão ficar algumas para cinema comercial e outras para filmes de nicho.
Questionado sobre a guerra na Ucrânia, Cronenberg, cuja mãe era pianista num coro ucraniano e tocava nas aulas de ballet do bailarino russo Nureyev, considera uma catástrofe o que está a acontecer. Critica o “ego de Putin” e, embora perceba “os problemas da União Europeia”, continua a “achar que é uma solução brilhante e eficaz”.
Sobre o seu cinema, explica que é biográfico. No último filme, uma curta filmada pela sua filha, encenou a sua própria morte. Em sala estreia esta semana “Crimes of the Future”, um filme futurista num mundo onde humanos digerem plástico para regenerarem o corpo.
O filme que estreia nas salas de cinema portuguesas esta quinta-feira, “Crimes of the Future”, reflete sobre o uso do plástico no futuro. Quando tentamos acabar com o plástico, mostra uma nova forma de o usar, mas em benefício da humanidade. Que reflexão quer fazer com o filme?
Uma das discussões no filme é sobre a forma como estamos a tomar conta da nossa própria evolução. O corpo humano é diferente do que era há 100 anos. Depois da revolução industrial, houve muitas mudanças no ambiente, mas também no corpo humano. Uma das propostas do filme é, em vez de dizermos: "vamos nos livrar de todo o plástico do mundo que está nos oceanos e nas plantas", descobrirmos que a maior parte das pessoas no planeta tem microplásticos no seu sistema sanguíneo.
A proposta do filme talvez não seja inteiramente séria, é, em vez de nos tentarmos livrar de todo o plástico, aprendemos como o digerir, para o usar como comida, para que os nossos corpos o possam alterar e usá-lo como um nutriente. Assim resolveremos muitos dos problemas de fome no mundo e problemas de poluição.
É de certa forma uma proposta satírica, mas quase possível, porque já se descobriram bactérias que comem o plástico que nós produzimos. E elas vivem desse alimento, digerem-no e tiram-no do ambiente. Isto é uma brincadeira, mas ao mesmo tempo uma proposta séria que está no filme. É levado muito a sério no filme, as personagens levam-no muito a sério, e torna-se uma proposta, a qual devemos considerar.
Numa das frases do filme escutamos uma personagem a dizer que "o mundo é um lugar perigoso, agora que a dor desapareceu". Pode explicar em que medida a ausência de dor pode mudar o mundo?
O filme não apresenta uma discussão médica séria sobre o que acontece se a dor não for possível. Há uma personagem que diz isso. A dor é para nós um sistema de alerta. Claro que é algo de que nos queremos ver livres, mas sem dor não sabemos que partimos um osso, que há algo errado dentro de nós que tem se der tratado. Algumas crianças nascem sem a capacidade de experienciar a dor. E elas, normalmente, não vivem muito tempo, porque não têm os sinais que dizem aos pais que estão com algum problema que tem de ser resolvido.
Não quero ser muito explícito, mas há crianças que mastigam a própria língua, porque não percebem que estão a causar mal a elas próprias. Uma das razões por que propus no filme este universo alternativo, é porque estava interessado na ideia da cirurgia, sem anestesia. Então proponho que isso seja possível. A única razão pela qual tomamos uma anestesia é por causa da dor. Assim teríamos hipótese de fazer uma cirurgia, em locais públicos, como uma performance artística, e não teríamos de tomar uma anestesia, podíamos andar de um lado para o outro e a ser operado. Parece grotesco, mas no filme, acho que se torna uma possibilidade de uma beleza estranha, para a expressão e a arte.
O seu cinema reflete muito sobre o corpo e os seus limites. Como lida com o seu próprio corpo e o seu envelhecimento?
Acha que eu estou a envelhecer?! [risos]
Bem, acho que desde muito novo que penso no envelhecimento. Sempre tive pais e avós que estavam a envelhecer e observava o que isso significava. E, claro, também fui pensando que também eu iria experienciar isso se vivesse tempo suficiente.
Eu não considero que o meu olhar sobre o corpo seja muito diferente do de outras pessoas. É o meu corpo, eu tenho de aceitar que tenho quase 80 anos. É um número estranho, eu não sinto que tenha 80 anos, mas ao mesmo tempo, às vezes doem-me os joelhos, tenho uma prótese auditiva, as questões habituais. E lido com isso, como toda a gente. Tomo alguns comprimidos, faço alguns tratamentos.
Claro que agora todos vão para a internet e tornam-se os seus próprios médicos! Todos pesquisam para que serve este comprimido? Como é que o tomo? Será que o meu médico estava certo ao sugerir que tomasse aquele medicamento para aquela dor de cabeça ou será que é perigoso?
É um novo mundo com os conselhos médicos que estão na internet e que, claro, podem tornar-se confusos e podem ser perigosos, porque as pessoas se tornam paranoicas e entram em pânico, devido aquilo que leem na internet. É um mundo novo de tratamentos médicos e há muitos médicos a usar a internet também para pesquisar. Quanto a mim, não acho que seja muito diferente das outras pessoas.