Os consultores
Saídos do Governo, Duarte Cordeiro e João Galamba rumaram ao setor privado, por diferentes motivos. Ainda assim, ambos acabaram a fazer a mesma coisa: consultoria.
O ex-ministro do Ambiente e Ação Climática colocou a sua carreira política em pousio – nem quis integrar as listas do PS nas legislativas – devido à “Operação Influencer”. Em junho, lançou, em conjunto com um dos filhos de Mário Centeno, uma consultora na área da sustentabilidade (setor ligado à área que tutelava): a Shiftify.
Já João Galamba é desde junho consultor na Enline Energy Solutions, startup portuguesa que fornece soluções a empresas de energia – setor do qual foi responsável, enquanto Secretário de Estado, antes de assumir o cargo de ministro das Infraestruturas. (A Renascença sabe que o ex-governante pediu um parecer a um escritório de advogados sobre potenciais incompatibilidades, antes de assumir funções.)
De acordo com a última versão da lei n.º52/2019, “os titulares de cargos políticos de natureza executiva não podem exercer, pelo período de três anos contado a partir da data da cessação do respetivo mandato, por si ou através de entidade em que detenham participação, funções em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado e que, no período daquele mandato, tenham sido objeto de operações de privatização, tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual, ou relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular de cargo político”.
Cordeiro e Galamba estão a infringir a lei do dito ‘período de nojo’?
José Augusto Ferreira, jurista, coordenador da Comissão da Administração Local da Associação de Direito Administrativo (ADA) e autor do livro “Comentário ao Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos”, entende que não.
Tal como está desenhada, a lei tem uma “válvula de escape”: para ser aplicada é necessário cumprir dois requisitos cumulativos. Primeiro: exercer funções no setor que tutelava. Segundo: a empresa tenha beneficiado de algum apoio do Estado ou que tenha tido uma “intervenção direta” do governante.
Segundo o especialista, o “espírito do legislador [Governo e deputados na Assembleia da República] parece ser: tirar com uma mão, e dar com outra mão. Parece que é claramente um falso impedimento. Ou pelo menos profundamente restritiva a sua aplicação”.
Em alguns casos, ironiza o jurista, a lei “parece que ensina o aplicador a fugir à sua própria aplicação”.
Não é relevante, portanto, que a consultora de Duarte Cordeiro, entre os serviços que ofereça, fale na criação de “legislação, regulação e programas estruturantes que fomentem o desenvolvimento sustentável”.
“Quando bem olhada a norma - as situações de impedimento posterior -, o período de nojo é muito mais fácil de viver. Só é preciso ver se houve benefício [de apoios do Estado] ou se o titular teve intervenção direta. O que quando são empresas novas, criadas para consultoria, este impedimento não se aplica”, diz José Ferreira.
João Paulo Batalha, da Frente Cívica, assume que há um potencial conflito de interesses ao ex-ministros, logo após exercerem funções, “colocarem no mercado os seus conhecimentos, não só sobre os temas, sobre o setor, mas sobre dossiers concretos, os decisores e a rede contactos que ainda têm no Estado e na Administração Pública”.
No entender do vice-presidente da Frente Cívica, um bom sistema de prevenção de conflitos de interesse teria um mecanismo para avaliar as situações “no concreto”.
“Devia haver um mecanismo para o exercício de cargos a seguir às funções públicas pudesse ser avaliar no concreto e identificar conflitos de interesse reais, potenciais ou aparentes, e que se estabelecesse remédios. Nomeadamente, que tipo de clientes é que pode ou não ter, se pode ou não exercer determinada atividade, que garantias é que precisa de dar em termos de supervisão externa”, diz.
Tal cenário só se poderia concretizar, em primeiro lugar, “com uma entidade quer fosse verdadeiramente independente e fizesse verdadeiramente esse trabalho. E o legislador nunca deu à Entidade da Transparência a possibilidade de fazer esse papel”.
Em segundo lugar, “o que seria uma coisa muito provavelmente impopular, teríamos de ter capacidade de remunerar os ex-políticos durante este período em que estão impedidos de ter determinadas atividades”.
Por outras palavras, teria voltar o subsídio de reintegração – abolido em 2005 pelo Governo de José Sócrates.