Há seis meses, eram ministros. Hoje, são consultores, académicos e deputados

Em seis meses de Montenegro, metade dos ministros que integraram o último Governo de Costa saíram de cena. Duarte Cordeiro e João Galamba tornaram-se consultores - em setores que tutelaram. Lei das “Portas Giratórias” é muito difícil de aplicar. Aliás, “parece que ensina o aplicador a fugir à sua própria aplicação”, diz o jurista José Augusto Ferreira.

02 out, 2024 - 07:00 • Fábio Monteiro



Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Ilustração: Rodrigo Machado/RR

Em seis meses, desde que o Governo de Luís Montenegro tomou posse, o panorama político em Portugal mudou. Muitos dos protagonistas da última década desapareceram, outros entraram em cena.

O ex-primeiro-ministro António Costa, é sabido, mudou-se para Bruxelas, tornou-se Presidente do Conselho Europeu. O que menos portugueses podem ter reparado é que metade dos ministros que integraram o XXIII Governo debandaram.

Dos vinte governantes que integraram, ao longo período de dois anos, o último Executivo de António Costa, apenas dez continuam a frequentar o largo do Rato. Dos restantes, dois tornaram-se consultores, dois emigraram para o Parlamento Europeu, três regressaram à vida académica e quatro enveredaram por diferentes caminhos.


Duarte Cordeiro, ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática Foto: Filipe Amorim/Lusa
Duarte Cordeiro, ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática Foto: Filipe Amorim/Lusa

Os consultores

Saídos do Governo, Duarte Cordeiro e João Galamba rumaram ao setor privado, por diferentes motivos. Ainda assim, ambos acabaram a fazer a mesma coisa: consultoria.

O ex-ministro do Ambiente e Ação Climática colocou a sua carreira política em pousio – nem quis integrar as listas do PS nas legislativas – devido à “Operação Influencer”. Em junho, lançou, em conjunto com um dos filhos de Mário Centeno, uma consultora na área da sustentabilidade (setor ligado à área que tutelava): a Shiftify.

Já João Galamba é desde junho consultor na Enline Energy Solutions, startup portuguesa que fornece soluções a empresas de energia – setor do qual foi responsável, enquanto Secretário de Estado, antes de assumir o cargo de ministro das Infraestruturas. (A Renascença sabe que o ex-governante pediu um parecer a um escritório de advogados sobre potenciais incompatibilidades, antes de assumir funções.)

De acordo com a última versão da lei n.º52/2019, “os titulares de cargos políticos de natureza executiva não podem exercer, pelo período de três anos contado a partir da data da cessação do respetivo mandato, por si ou através de entidade em que detenham participação, funções em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado e que, no período daquele mandato, tenham sido objeto de operações de privatização, tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual, ou relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular de cargo político”.

Cordeiro e Galamba estão a infringir a lei do dito ‘período de nojo’?

José Augusto Ferreira, jurista, coordenador da Comissão da Administração Local da Associação de Direito Administrativo (ADA) e autor do livroComentário ao Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos”, entende que não.

Tal como está desenhada, a lei tem uma “válvula de escape”: para ser aplicada é necessário cumprir dois requisitos cumulativos. Primeiro: exercer funções no setor que tutelava. Segundo: a empresa tenha beneficiado de algum apoio do Estado ou que tenha tido uma “intervenção direta” do governante.

Segundo o especialista, o “espírito do legislador [Governo e deputados na Assembleia da República] parece ser: tirar com uma mão, e dar com outra mão. Parece que é claramente um falso impedimento. Ou pelo menos profundamente restritiva a sua aplicação”.

Em alguns casos, ironiza o jurista, a lei “parece que ensina o aplicador a fugir à sua própria aplicação”.

Não é relevante, portanto, que a consultora de Duarte Cordeiro, entre os serviços que ofereça, fale na criação de “legislação, regulação e programas estruturantes que fomentem o desenvolvimento sustentável”.

“Quando bem olhada a norma - as situações de impedimento posterior -, o período de nojo é muito mais fácil de viver. Só é preciso ver se houve benefício [de apoios do Estado] ou se o titular teve intervenção direta. O que quando são empresas novas, criadas para consultoria, este impedimento não se aplica”, diz José Ferreira.

João Paulo Batalha, da Frente Cívica, assume que há um potencial conflito de interesses ao ex-ministros, logo após exercerem funções, “colocarem no mercado os seus conhecimentos, não só sobre os temas, sobre o setor, mas sobre dossiers concretos, os decisores e a rede contactos que ainda têm no Estado e na Administração Pública”.

No entender do vice-presidente da Frente Cívica, um bom sistema de prevenção de conflitos de interesse teria um mecanismo para avaliar as situações “no concreto”.

“Devia haver um mecanismo para o exercício de cargos a seguir às funções públicas pudesse ser avaliar no concreto e identificar conflitos de interesse reais, potenciais ou aparentes, e que se estabelecesse remédios. Nomeadamente, que tipo de clientes é que pode ou não ter, se pode ou não exercer determinada atividade, que garantias é que precisa de dar em termos de supervisão externa”, diz.

Tal cenário só se poderia concretizar, em primeiro lugar, “com uma entidade quer fosse verdadeiramente independente e fizesse verdadeiramente esse trabalho. E o legislador nunca deu à Entidade da Transparência a possibilidade de fazer esse papel”.

Em segundo lugar, “o que seria uma coisa muito provavelmente impopular, teríamos de ter capacidade de remunerar os ex-políticos durante este período em que estão impedidos de ter determinadas atividades”.

Por outras palavras, teria voltar o subsídio de reintegração – abolido em 2005 pelo Governo de José Sócrates.


Pedro Nuno Santos herdou a liderança do PS. Foto: Pedro Castanheira E Cunha/Lusa
Pedro Nuno Santos herdou a liderança do PS. Foto: Pedro Castanheira E Cunha/Lusa

Os resistentes

À cabeça dos resistentes no Parlamento está, é evidente, Pedro Nuno Santos, atual secretário-geral do PS. O ex-ministro das Infraestruturas – que experimentou o comentário político durante umas poucas semanas, em 2023, na “SIC” – lidera a oposição a Montenegro.

Mariana Vieira da Silva, ex-ministra da Presidência, além de deputada e presidente do grupo parlamentar do PS, dá um toque no comentário político – inclusive na Renascença, onde faz parte do painel do programa Casa Comum. (Na rede social X, a socióloga e ex-nadadora leva uma vida paralela enquanto fã do Sporting.)

Fernando Medina, ex-ministro das Finanças (e “delfim” de António Costa), regressou à bancada do PS – após uma ausência de mais de dez anos. É quadro da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP). Nos últimos meses, já foi obrigado – em vários momentos - a defender o legado financeiro que deixou.

José Luís Carneiro continua no ativo. Integrou as listas e foi eleito deputado por Braga – em regime de exclusividade até ao final do passado mês de setembro. O ex-ministro da Administração Interna tem assento no programa de comentário político “A Bússola” na “CNN”.

Segundo o “ECO”, Carneiro pretende voltar à vida académica nos próximos tempos - foi professor na Universidade Lusíada e no Instituto de Ciências da Informação e Administração, em Aveiro, entre 1995 e 2005 – e completar o seu doutoramento em Ciência Política.

Ana Catarina Mendes e Marta Temido emigraram – mas prosseguem na vida política. Ambas são agora eurodeputadas no Parlamento Europeu.

A ex-ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, entre abril e maio, ainda desempenhou funções como deputada na Assembleia da República – casa que frequenta desde 1995. Em junho, foi eleita vice-presidente dos Socialistas e Democratas (S&D) no Parlamento Europeu (PE).

Já a antiga ministra da Saúde não integrou as listas do PS nas legislativas. Mas, pouco depois, foi escolhida por Pedro Nuno Santos para cabeça-de-lista nas Europeias. É possível, ainda assim, que a estadia fora do país seja curta: o nome de Temido tem sido equacionado como possível candidata à câmara de Lisboa no próximo ano. Em entrevista à Renascença, em junho, a socialista não descartou esse cenário.

Manuel Pizarro, que herdou a pasta de Marta Temido, em setembro de 2022, voltou ao Parlamento – que já havia frequentado entre 2005 e 2013. Acontece que, também para este socialista, a passagem pelo Rato pode ser curta. O ex-ministro da Saúde é um dos putativos candidatos à Câmara do Porto em 2025.

Ana Mendes Godinho, depois de quase uma década no Governo, em diferentes funções, optou por não voltar (até ao momento) à sua vida na Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Porquê? Faltava-lhe desempenhar “uma dimensão da vida democrática”, disse ao “Público”. A ex-ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social foi eleita deputada pelo círculo da Guarda.

Marina Gonçalves continua com o foco no problema da habitação. Desta feita, enquanto deputada. A ex-ministra da Habitação – jurista de profissão – é próxima de Pedro Nuno Santos, ganhou espaço dentro do PS e tornou-se uma das figuras da nova direção.

Ana Abrunhosa, após quatro anos enquanto governante, ficou como deputada. A ex-ministra da Coesão Territorial é docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra desde 1995. Se pretende voltar à academia, é ainda uma incógnita.


Elvira Fortunato e João Costa. Foto: António Cotrim/Lusa
Elvira Fortunato e João Costa. Foto: António Cotrim/Lusa

Os académicos

Três dos ministros do XXIII Governo regressaram à vida académica. E quase todos parecerem ter encerrado, a título definitivo, as suas carreiras políticas.

Elvira Fortunato, ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, voltou para o Centro de Investigação de Materiais da Universidade Nova de Lisboa (CENIMAT). (Ainda em março, foi eleita “Personalidade do Ano” pela revista “Seleções do Reader’s Digest” na área da Investigação e Ciência.)

Helena Carreiras, a primeira mulher (e única, até à data) a ser ministra da Defesa Nacional, regressou para o ISCTE, onde é professora catedrática, nas áreas da sociologia e políticas públicas. Voltou ao circuito docente e das palestras. Nos últimos meses, passou por França e pelo Brasil. (E, a título recreativo, aventurou-se pelo Inca Trail, no Peru.)

João Costa, ministro da Educação, retornou à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – instituição que dirigia antes de rumar ao Governo, em 2015.

O especialista em linguística, apesar de não ter assento no Parlamento, é um caso algo diferente do de Helena Carreiras ou Elvira Fortunato. João Costa continua a ter uma voz ativa no campo político. No último mês, teceu múltiplas críticas a Fernando Alexandre – o seu sucessor.

Em julho, assumiu a chefia da Agência Europeia para o Ensino Especial e Educação Inclusiva.

Os navegantes

Entre os quatro antigos ministros do XXIII Governo que deixaram de frequentar o largo do Rato, mas também não voltaram (logo) para a academia, há diferentes situações.

João Gomes Cravinho, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, continua de olho na política internacional – em particular na situação da Ucrânia e o conflito Israel-Hamas. Em setembro, foi escolhido para chefiar a missão de observação eleitoral da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) em Moçambique.

António Costa Silva, ex-ministro da Economia, vai comentando o estado do país – mas apenas à distância. Há poucos dias, no programa “Tudo é Economia” da “RTP”, afirmou estar confiante em consenso na aprovação do Orçamento para 2025. Depois de uma carreira no setor privado - entre 2004 e 2021, foi presidente da Comissão Executiva da Partex -, o engenheiro de minas confessou, em janeiro, que ser ministro “não foi uma das melhores experiências”.

Maria do Céu Antunes, ex-ministra da Agricultura, desapareceu totalmente de cena. A última publicação no Facebook oficial da governante data de 26 de março. De acordo com a imprensa, regressou à direção do Tagus Valley – função que havia abandonado há 18 anos.

Pedro Adão e Silva, ex-ministro da Cultura, mantém um espaço de crónica no “Público” e, em breve, deverá voltar à docência no ISCTE. Em abril, revelou que estava a pensar escrever um livro de memórias sobre os anos no Governo. (Na rede social “X”, resiste a curadoria musical e o hábito de partilhar playlists sazonais.)